“The Deep” de Shoshanah Dubiner

A urgência por mudanças internas e coletivas

No primeiro texto da série Teia da vida, o monge Emersom Karma Konchog investiga onde prática espiritual e ativismo ecológico se encontram.


Por
Revisão: Dirlene Ribeiro Martins

“Se o Buda voltasse ao nosso mundo, ele certamente estaria ligado à campanha para proteger o meio ambiente.”
Dalai Lama¹

 

Grandes líderes espirituais como o Dalai Lama, Karmapa Ogyen Trinle Dorje e o Papa Francisco têm enfatizado que praticar um caminho espiritual é inseparável do engajamento socioambiental. Esta visão é especialmente verdadeira em momentos críticos como o atual, em que o bem-estar de milhões de seres hoje, e também em gerações futuras, depende de nossas ações.

Apesar de no Brasil a opinião pública ainda não ter acordado para a gravidade da emergência climática e ecológica, ela já está afetando a todos de qualquer jeito — a uns mais do que outros, mas no final não haverá muito para onde ninguém escapar. Com nossa inação, a situação deve piorar, ameaçando a própria civilização humana como a conhecemos.

Este texto não é sobre os detalhes do colapso que se espreita, mas sim sobre as mudanças necessárias. Caso não esteja familiarizado com o tema, recomendo este curto vídeo da campanha Countdown do TED (link para o vídeo aqui, com opção de legendas em português). 

 

Mobilização

A transformação interior como base para uma mudança coletiva está no cerne de muitas tradições espirituais, como o budismo. No entanto, diante do nível avançado de degradação socioambiental em que nos encontramos, um foco exclusivo na transformação interior — ocupando-nos apenas com nossa mente, esperando que a interdependência faça o resto — agora já não parece ser suficiente.

Diante da gravidade da crise e do pouco tempo que resta para mudarmos o curso antes do ponto sem volta, pessoalmente não acredito que abordagens graduais, baseadas em mudanças de hábitos, bastarão. 

Ação direta, como protestos e desobediência civil, têm funcionado na Europa e EUA para forçar os governos a tomarem medidas e serão cruciais para a mudança. Essa é a abordagem de novos movimentos ambientais como Rebelião ou Extinção, Greve pelo Clima (transparência: ajudo nesses movimentos) ou o Sunrise, nos EUA.

Ao mesmo tempo,  a mudança interior  — ainda que sozinha não seja suficiente  — também terá um papel fundamental na possível transição para outro mundo. Não basta apenas trocar políticos e partidos ou adotarmos novas tecnologias, como energia renovável. Sem outra maneira de ver e se inserir no mundo natural, não há como evitar graves desequilíbrios ambientais recorrentes.

Para as mudanças necessárias, a prática de um caminho espiritual pode ajudar muito, tanto no nível individual como coletivo. Por exemplo, praticantes da solidariedade e compaixão universais — que se estendem a todas as formas de vida — deveriam estar na linha de frente dos movimentos em defesa da vida e das pessoas. Pelo menos em tese.

 

Governos

Geralmente costumamos esperar dos governos as mudanças necessárias. Por exemplo, ambientalistas — e muitos outros — respiraram aliviados com a derrota de Trump nos EUA. Sim, escapamos por pouco de uma caminhada sem volta rumo ao colapso climático global, já que os EUA são o país que mais consome recursos naturais e mais emite gases do aquecimento, além de terem influência-chave nas políticas de outros países. E Joe Biden se elegeu com uma agenda ambiental sólida. 

Já no Brasil, não há como se preocupar com a catástrofe ambiental sem olhar para o atual governo. 

Neste nível da emergência, sem ação coordenada dos governos não há chances de neutralizar os sintomas mais graves da crise, como emissão massiva de gases do efeito estufa e extinção em massa de espécies. Mas, a longo prazo, apenas trocar políticos resolve?

Não muito. Por exemplo, o modo como Barack Obama beneficiou as empresas de combustíveis fósseis foi um desastre. No Brasil, a destruição da Amazônia no governo Dilma também acontecia na velocidade de campos de futebol por minutos.

Políticos destrutivos são sintomas funestos de algo mais profundo. Afinal, com direita ou esquerda, conservadores ou progressistas, o modelo extrativista, de crescimento econômico contínuo e infinito, permanece sempre o mesmo. E esse modelo só tem uma fonte de onde extrair e lucrar: a natureza (incluindo aí seres humanos).

 

Crise de valores

A crise socioambiental, no fundo, é reflexo de uma crise de valores, de uma emergência mental. Escrevi mais detalhadamente sobre isso em outro texto — resumidamente: precisamos de um modo de pensar e ver a natureza sem separação. A própria expressão “recursos naturais” revela como enxergamos a natureza: algo a ser explorado. Nós nos vemos como separados e de certo modo superiores ao mundo natural. Obviamente, essa insanidade não tem como terminar bem.

Uma nova mentalidade, em que nos reconhecemos como parte interdependente de toda a teia da vida, já existe, é claro — por exemplo, na cultura de povos nativos ou na filosofia budista da vacuidade/interdependência. Isso só não está bem disseminado. 

Mas não é preciso converter ninguém para essas visões de mundo. Poderíamos começar com o reconhecimento coletivo da falência de nossa mentalidade dominante, e a abertura para aprender com culturas regenerativas desse tipo, além de coragem para se adotarem modelos econômicos mais humanos, como a economia donut.

 

Espiritualidade engajada

Não é coincidência que grandes ativistas ao longo da história fossem praticantes espirituais. Por exemplo, Gandhi, Martin Luther King Jr., Dalai Lama ou atualmente o estadunidense Bill McKibben, fundador da 350.org e referência mundial na causa climática — apesar de não proclamar publicamente, a fé cristã é parte fundamental de sua vida (como conta no livro “What We’re Fighting for Now Is Each Other”).

Para quem realmente considera o amor e a compaixão universais como o fundamento básico da vida, alienar-se das graves ameaças ambientais e sociais dificilmente seria uma opção. 

Essa é uma posição compartilhada também pelo 17º Karmapa, Ogyen Trinle Dorje, que costuma apontar a contradição entre um compromisso pelo bem de todos os seres e a inação ambiental, já que o número de seres sofrendo ou que sofrerão devido ao colapso ecológico é praticamente imensurável.

No budismo especificamente, a meditação e contemplação sobre a interdependência dos fenômenos pode ajudar em um despertar para a realidade do colapso em que nos encontramos. O mestre zen vietnamita Thich Nhat Hanh, por exemplo, fala que para salvar o planeta precisamos nos abrir para “o som da Terra chorando dentro de nós”.  

Quando reconhecemos que também somos natureza, inevitavelmente sentimos a dor do desastre ambiental pulsando em nossas próprias mentes e corpos. Abrir-se para isso é tão angustiante que mesmo praticantes de meditação podem preferir se fechar — inconscientemente até. Mas, após acolher e reconhecer essa dor como inseparável de nós, fica difícil não agir. 

A ativista norte-americana Joanna Macy, referência central nos movimentos ambientais mais holísticos, é um exemplo da visão budista integrada à transformação do mundo. No livro “Esperança ativa”, ela comenta a frase acima de Thich Nhat Hanh:

“Quando percebemos nosso eu mais profundo como uma identidade ecológica que inclui não apenas nós, mas também toda a vida na Terra, então agir pelo bem de nosso planeta não parece um sacrifício. É como uma coisa natural a ser feita.”

Esta própria crise já é um terreno fértil para as mudanças necessárias, pois ela escancara a falência de nosso sistema de valores como sociedade e indivíduos, mostrando o abismo de autodestruição para onde caminhamos.

De certo modo, as pessoas que reconhecem a gravidade da crise atual já anteveem uma mudança radical. Se ela será para pior ou melhor, depende de nós.

 

¹  Salvar o planeta depende de nós e, especialmente, dos políticos.


Emersom Karma Konchog é monge budista brasileiro e ex-jornalista. Entre 2013 e 2020, estudou língua tibetana e filosofia budista na Índia e Nepal, e completou o tradicional retiro de três anos Karma Kagyu nos EUA. Além do Darma e da propagação secular de valores humanos, ajuda na causa ambiental. Escreve também a newsletter Circular. Emersom é convidado da Bodisatva para escrever uma série de textos que chamamos de Teia da Vida explorando onde prática espiritual e ativismo ecológico se encontram.

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5 Comentários

  1. Maria Teixeira disse:

    Há muitos conselhos, mas falta a ligação para o dia a dia. Como fazer -passo a passo, alternativas viáveis, o que comprar, onde compar ou a troca ou o empréstimo ou usados. Reciclar, arranjar. As leis também têm que ser favoráveis. A plantação de árvores e plantas e cultivos próprias da região ex acabar com os herbicidas, etc..

  2. Regina Lage disse:

    Texto muito bom, uma boa reflexão para todos!

  3. Toninho Buta disse:

    Isto tudo é Védico, devo ainda que o homem desta cultura ocidental, não tem limites em seus desejos induzidos por estes sistemas piramidais, assim temos que agir pressionar e transformar estes sistemas impregnados do espírito de conflito e competição. A reforma do sistema político, abrindo espaço ao seres com vocação para o zelo e a cooperação, organizando e apoiando a sociedade na reconstrução e harmonização entre todas as Naturezas.
    Onde a Humanidade deve ser a guardiã.

  4. Adriana Leopoldino disse:

    grata pela bela reflexã0

  5. Cláudio Mappa disse:

    Muito boa reflexão!! Toca no ponto central, nosso entendimento sobre a natureza , o que ela representa pra nós. Somos parte, não estamos separados.

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