Imagem: @khyentse

Vipassana: uma sadhana | Parte 1

Em homenagem ao aniversário de Dzongsar Khyentse Rinpoche, publicamos a primeira parte deste ensinamento oferecido por ele, em março de 2022


Por
Revisão: Luciana Marques, Luciano de Topin e Clarissa França
Edição: Rosana Folz e Carol Franchi
Tradução: Neuza Lopes Ribeiro Volle

“É possível que esta seja a primeira vez que você tem contato com o caminho budista, em geral, ou com a prática de vipassana, em particular. Então, tentarei falar sobre vipassana usando menos jargões tradicionais e conectar com a nossa vida diária. Quer você seja um monge, uma monja, um praticante leigo, uma criança ou um adolescente: de que maneira shamatha e vipassana podem ser relevantes para você, como ser humano? Como isso pode ajudar em sua relação com o mundo?”

A tradução e revisão é uma parceria entre a Bodisatva e a Siddhartha’s Intent Brasil. A segunda parte deste ensinamento será publicada em breve.


Quando este ensinamento foi solicitado, originalmente pensei em falar sobre vipassana. Essa técnica tem sido ensinada repetidas vezes e provavelmente é uma das mais exclusivas do budismo.

Acho que uma parte de mim também queria fazer isso porque exercícios de atenção plena (mindfulness) de muitos tipos estão se proliferando pelo mundo todo. Como budista, eu tinha a preocupação de que a ideia e a essência de vipassana pudessem se perder na tentativa de torná-la acessível. Algumas vezes acrescentamos muita água e perdemos o sabor essencial.

Adicionei o termo sadhana como uma espécie de provocação, porque sadhana é muito Mahayana. Na verdade, é um termo bem tântrico, usado no tantra budista, assim como no tantra hinduísta. Decidi fazer essa ligação entre os dois termos porque a quintessência — o núcleo, a espinha dorsal, o sangue ou o elemento — da sadhana não é outra senão vipassana. Por conta da natureza da sadhana, ela algumas vezes pode parecer bastante religiosa e envolver cerimônias, além de coisas simples e mundanas, como oferendas de flores e incensos ou, até mesmo, sentar-se sobre um cadáver para meditar por dias e noites.

A sadhana pode se manifestar e tem se manifestado como um ritual. Por essa razão, algumas vezes, o ponto essencial da sadhana, da vipassana, se perde, principalmente no budismo. Então, é por isso que quero nos provocar e lembrar que sadhana e vipassana realmente têm que vir juntas. 

 

Vipassana: visão ampla e experiência direta da vida

Vipassana é algo realmente muito vasto. É infinito. No entanto, hoje ela foi reduzida à prática budista de sentar-se ereto, consciente do ambiente ao redor, da respiração, além de alguns níveis mais avançados da técnica. Acredito que, para muitas pessoas, vipassana tem a ver com a meditação sentada e isso está privando o mundo inteiro de vipassana. Espero que desta vez possamos abrir nossos olhos e mentes para abordar vipassana de uma maneira muito mais rica e infinita.

Vipassana, como o termo indica, tem a ver com visão, com ter insight. Vou tentar explicar de uma maneira mais comum, numa linguagem cotidiana. O budista pensa da seguinte maneira: no dia a dia, quando interagimos com nossa vida, em geral,  vemos apenas um ou dois ângulos estreitos. Nunca temos uma visão ampla, a visão de um pássaro.

Desta forma, a nossa perspectiva é sempre muito distorcida, parcial, enviesada e com bastante preconceito. Não temos a visão completa, em vários sentidos. Na verdade, para entender melhor, acho que poderíamos traduzir vipassana como uma técnica para ver o mundo e nossa vida de maneira completa. Não apenas uma visão parcial, mas sim uma visão do todo.

A ideia de vipassana também tem a ver com a experiência direta. Em geral, quando interagimos com a vida, em qualquer de seus aspectos, qual é a parte mais importante? A parte mais importante da vida é o eu, o self, o si mesmo. Quando interagimos com esse eu, com esse ser humano ou seja lá quem for, recorremos a todo tipo de pensamento racional, lógico, provavelmente à ciência e, é claro, a um pouco de conhecimento empírico.

Assim, quando nos olhamos dessa forma, através da razão, da lógica, da linguagem, da cultura, nunca estamos tendo uma experiência realmente direta de nós mesmos. Por exemplo, eu sou um homem, gênero [masculino]. Chego à conclusão de que sou um homem baseado em todo tipo de razão. O senso comum diz que sou um homem. Os outros acham que sou um homem, meus pais me criaram como um homem e, ainda, biologicamente eu sou um homem. Nunca há nisso uma experiência direta.

Pode-se traduzir vipassana, de outra forma, como uma técnica para experimentar a vida diretamente. Então, vipassana é sobre como ver a vida — não só a vida, mas todas as coisas — de uma maneira completa, e não apenas parcialmente. Ou ainda, sobre como ver a vida diretamente, sem usar quaisquer referências. Provavelmente esta é uma boa maneira de compreender o que é vipassana. E acho que, se pudermos construir essa fundação, vipassana não é só observar a inspiração e a expiração. Vipassana é muito mais do que isso. É até mais do que uma ciência: é uma experiência direta.

 

Sadhana: um meio para ter a experiência direta

Agora, tendo isso em mente e considerando que parte da nossa conversa tem a ver com sadhana, pode-se dizer que sadhana, basicamente, significa uma habilidade, uma técnica. Na verdade, é um truque, um meio. Uma sadhana sempre tem um objetivo, é um meio sistemático para alcançar algum objetivo. Assim, no contexto de vipassana, o objetivo é ter uma experiência direta, uma visão completa.

Mesmo eu olhando a flor à minha frente, estou tendo realmente uma experiência direta dessa flor? Por que eu considero isso uma flor? Vejam, eu tenho uma cultura e me foi ensinado que isso é uma flor. Na verdade, eu nem mesmo sei o nome dessa flor. É uma flor cor-de-rosa e assim por diante. Portanto, eu não tenho uma experiência direta, já existe um preconceito. Minha própria visão dessa flor passa por muitos filtros, por muitas interferências.

 

O que é praticar vipassana?

Se estamos olhando para vipassana a partir dessa definição, o que na verdade queremos dizer com “praticar vipassana”, “vipassana: uma sadhana”?

Praticar vipassana pode significar muitas coisas, até mesmo discutir sobre o termo, como estamos fazendo agora. Estamos falando sobre visão completa, real; estamos questionando: será que vemos as coisas apenas de modo parcial, através de uma mente distorcida e já condicionada?

Pode-se dizer que esse tipo de análise, esse tipo de pensamento crítico já é uma prática de vipassana em andamento. [Isso está presente] em muitos sutras, nos shastras e, especialmente, já foi ensinado pelos grandes eruditos. Eu quero dizer isso porque hoje em dia muitas pessoas, quando dizem que estão praticando vipassana, em geral, se referem a sentar-se ereto, observar a respiração ou as sensações do corpo, e assim por diante. Não estou dizendo que isso não é correto. Está correto e muito de vipassana tem a ver com isso; mas é muito mais que isso. Pode-se mesmo dizer que o desejo de ver a verdade, de ter a visão completa da vida já é o início da prática ou da sadhana de vipassana.

E quem não quer ter a visão completa? De certa forma, todo mundo quer. Esse é um aspecto esquizofrênico de seres humanos como nós. Há uma parte de nós que gostaria de ter a visão completa e uma parte que quer controlar tudo, especialmente o entorno e os outros, se possível. Há uma parte que não quer ser deixada de fora, não quer perder nada. Há uma parte que deseja ter a experiência direta; nós temos isso desde a infância até a idade adulta. De fato, a maior parte da nossa insegurança e ansiedade surge de não sabermos se temos a visão completa ou não. “Tenho a visão completa da minha vida? Tenho a visão completa de mim mesmo? Tenho a visão completa dessa flor, ou de qualquer outra coisa?” E o mais importante: “Tenho a visão completa do pensamento discursivo que está ocorrendo neste exato momento?” Esse é o nível mais alto de pensamento, não é? Isso deve ser considerado como uma busca, o caminho, ou a sadhana de vipassana.

Vipassana, que significa ver a verdade, ver as coisas como são, apresenta muitos desafios, e o grande desafio aqui é o seu oposto: o hábito, esse padrão habitual de nos sentirmos confortáveis em não ver as coisas como são. Isso é um problema realmente muito grande.

Estamos confortáveis, não queremos cavar muito fundo. [Mas] vipassana é realmente uma máquina de cavar. Você cava e cava, cada vez mais fundo, até que vê a imagem completa. Nós desenvolvemos esse hábito de não querer ver o todo, temos muito medo de ter a visão completa das coisas. Estamos felizes vendo apenas um lado.

É assim que o mundo funciona. Se olharmos para o sistema educacional e político da sociedade humana, assim como as outras coisas, negócios, moda, comida, tudo tem a ver com esse satisfazer-se com a verdade parcial. De alguma forma, desenvolvemos um sentimento de conforto nesta zona de verdade parcial. Esse é um desafio para os praticantes de vipassana, [pois] viver olhando para uma verdade parcial nunca compensa realmente. No fim, isso sempre nos conduz a alguma decepção ou ansiedade.

Ao chegar nesse ponto, tentamos ver a verdade real, mas o velho hábito de querer ir para a zona de camuflagem, a zona de conforto é muito forte. Esse é o maior desafio para a prática de vipassana, porque essa zona de conforto deixa a sua mente rígida, não maleável; deixa a sua mente fora de controle.

 

Shamatha e vipassana são sempre complementares

É por isso que, quando falam em vipassana, muitos grandes mestres de todas as tradições  Theravada, Mahayana e Vajrayana — falam sobre shamatha, que serve basicamente para tornar a mente maleável, trabalhável. Para enfrentar melhor as constantes quedas nessa zona de conforto, aplicamos a técnica de shamatha.

Provavelmente, é isso que muitas pessoas estão fazendo hoje em dia, pensando que estão praticando vipassana. Não posso desencorajá-las, mas em algum momento é importante perceber que o objetivo real de shamatha é tornar sua mente maleável, para que você esteja no controle. Em outras palavras, para que você não caia naquela zona de conforto e almeje ver a verdade, ver o cenário completo, ter a experiência direta, que é inabalável, sem alterações e incorrupta. Por isso, shamatha e vipassana são sempre complementares.

Isso é apenas uma espécie de resumo geral, digamos, do que chamamos de vipassana junto com sadhana. É possível que esta seja a primeira vez que você tem contato com o caminho budista, em geral, ou com a prática de vipassana, em particular. Então, tentarei falar sobre vipassana usando menos jargões tradicionais e conectar com a nossa vida diária. Quer você seja um monge, uma monja, um praticante leigo, uma criança ou um adolescente: de que maneira shamatha e vipassana podem ser relevantes para você, como ser humano? Como isso pode ajudar em sua relação com o mundo?

Você pode conferir o vídeo referente a esse ensinamento aqui.

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1 Comentário

  1. sergio luis bravo disse:

    Que todos os seres possam se beneficiar

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