Sequência desse precioso ensinamento oferecido por Dzongsar Khyentse Rinpoche
Na continuação desse ensinamento, Dzongsar Rinpoche destaca a importância da prática de Vipassana, que envolve ver a verdade diretamente. Apesar dos desafios da vida moderna, ele nos encoraja a encontrar momentos para cultivar a visão completa, mesmo que seja através do desconforto e da insatisfação.
A tradução e revisão é uma parceria entre a Bodisatva e a Siddhartha’s Intent Brasil. A parte 1 desse ensinamento você encontra aqui.
Vipassana na relação com o mundo
Então, o que há nisso que chamamos de vida? Trabalho, família, relacionamentos, segurança, diversão (muito importante!), planejamentos de longo prazo, gestão da própria vida, gestão da família, enfim, esse tocar a vida em frente. Acho que é isso que entendemos como vida e temos pouca chance de pensar nessas coisas de uma maneira original, sem a influência de outras pessoas. Isso praticamente não existe.
Se você é uma criança ou um adolescente, é provável que tenha seus pais em volta, vendo tudo que faz. Se não são seus pais, são seus pares, seus amigos e colegas da escola. Você vai querer fazer parte, se encaixar de alguma forma, ser parte do grupo, ser convidado para as festas. E é muito complicado! Eu suponho que você queira ser especial, único, mas, ao mesmo tempo, também não quer atenção demais, para não se sentir sufocado. Se você for muito diferente, fica alienado, porque as pessoas vão achar você estranho. É possível que sofra com a solidão e com todas as coisas que estão acontecendo nas mídias sociais: Instagram, Facebook, TikTok, o que quer que seja — eu nem mesmo conheço muito dessas coisas.
Quando eu era mais novo, meu desafio era me encaixar em relação a amigos humanos de verdade. Hoje em dia, a maioria dos jovens tem que se encaixar a amigos que nunca conheceram e talvez nunca conhecerão [pessoalmente]. Basta que eles enviem um polegar para baixo para você ficar deprimido por dias a fio.
Essa é a vida que vocês têm, que nós temos. Não acho que vá melhorar. Não sei, talvez já esteja boa. Não quero julgar, dizendo que seja ruim. Mas também não acho que seja muito boa, porque há muita ansiedade, muito estresse. O mundo inteiro é planejado com base na ideia de competição: o vencedor, o perdedor, quem faz mais pontos, quem ganha o melhor prêmio, quem tem mais reconhecimento ou mais aprovação.
Se você seguir acreditando nisso tudo, não terá vipassana. Lembre-se que, em sânscrito, vipassana (skt. vipaśyanā) significa ter a visão completa ou ver a verdade diretamente. Quando você vê seu mundo através do TikTok, do Instagram, da moda, da família, da aprovação ou das notas escolares, não está olhando para a vida diretamente. Você está olhando para a sua vida por várias lentes distorcidas, que nem sequer pertencem a você. Lentes que foram projetadas por outras pessoas.
Como disse antes, muitos de nós desejamos ser únicos e independentes. Estamos em busca da nossa independência. Quanto de vipassana tem nessa busca? Veja, queremos ser independentes, mas tudo que fazemos é exatamente o oposto. De fato, tudo que fazemos nos torna muito dependentes. Costumávamos fazer coisas que nos tornavam dependentes, mas isso levava um tempo. Hoje em dia, basta um segundo, um momento, para você se tornar dependente.
Basicamente, como muitos cientistas parecem estar dizendo, nossa mente foi hackeada. Somos muito hackeáveis. Um grande número de empresas, gigantes da tecnologia, sabe o que compro, o que leio, a que assisto. Já fizeram a curadoria e me enviaram mensagens, notícias, boletins cuidadosamente selecionados e elaborados para mim. E eu caio totalmente, mesmo sabendo que isso foi preparado para mim. É assim que perdemos o insight. Ao perder o insight, perdemos a verdadeira natureza da realidade. Temos uma visão parcial da nossa vida. Mas quanto entusiasmo você tem para sair dessa zona de conforto? Quanta coragem você tem para realmente não se importar? Ou, ao menos, para dar uma importância menor ao que os outros pensam e a quantas curtidas você recebe?
Impermanência, insatisfatoriedade e não-eu
É isso que você precisa contemplar. Essa contemplação, em sânscrito, é chamada de bhavana, que significa treinamento da mente. E isso é muito relevante para todos, para quem deseja apenas levar a vida, para quem cuida dos filhos, para quem está administrando seus negócios, para quem está em um relacionamento, para quem quer se comunicar com outras pessoas. Em todos os aspectos da nossa vida, precisamos de vipassana.
Assim, na categoria budista clássica de vipassana, falamos sobre três características, principalmente na tradição Theravada: impermanência, insatisfatoriedade e ausência de existência intrínseca, ou não-eu.
No curso da vida a [ideia de] impermanência também é aplicável, seja por um adolescente, por pais e mães, por alguém que tem um negócio a gerenciar, um emprego para manter ou uma família. Trata-se de olhar para a vida com uma visão mais ampla.
A palavra impermanência às vezes pode indicar algo negativo ou desagradável, mas não precisa ser assim. Quando você está passando por um momento difícil, por ter o hábito de olhar para a vida de modo parcial, mesmo uma pequena dificuldade pode desencorajar, fazer você perder a esperança, perder a direção. Mas não precisa ser assim, se você desenvolver vipassana ou, em outras palavras, se você olhar a sua vida com uma visão ampla, com a visão de um pássaro.
Quantas vezes em nossas vidas coisas desagradáveis aconteceram, mas sempre conseguimos atravessá-las de algum modo? Quantas vezes em nossas vidas as coisas melhoraram? Quantas vezes chegaram boas notícias e coisas boas aconteceram? É claro que temos uma tendência a não apreciar as coisas boas que acontecem e a nos apegarmos ao que é desagradável.
Mas se você consegue olhar para a sua vida com uma visão de pássaro, considerando anicca, a impermanência, a mera observação dessa verdade traz muita confiança para gerir a vida, traz muita coragem, perseverança e [uma perspectiva] visionária.
E repito: precisamos nos acostumar com esse tipo de pensamento. É aqui que entra a sadhana, uma técnica para nos acostumarmos com essa verdade e disciplina, e para conservá-la nos bons e maus momentos. Desse modo, a técnica se torna você e você se torna a técnica. Assim, quando as calamidades surgirem, você aplica imediatamente esse conhecimento, essa sabedoria, essa atenção plena, a visão completa. Para isso, o treinamento da mente, bhavana, é necessário.
Agora, de volta à abordagem tradicional da sadhana, no sentido de sentar-se ereto, observar a entrada e a saída do ar, ou como uma prática de ir ao templo. Na verdade, se formos ao templo com uma flor ou incenso nas mãos e com a motivação de querer ver a verdade, com o desejo de ter a visão completa, de não ficarmos fixados apenas a uma visão parcial da vida, então essa visita ao templo pode ser considerada como uma prática de vipassana. Nesse caso, a visita a um templo ou à árvore Bodhi ou a uma estupa é uma sadhana, torna-se uma sadhana.
É verdade que nas sociedades budistas tradicionais os agricultores vão aos templos por outros motivos, tais como: pedir proteção, chuva, boa colheita, bons negócios, longevidade, proteção contra doenças e assim por diante. Essas [abordagens] também não são desencorajadas nos sutras e shastras, porque são meios hábeis para levar as pessoas, gradualmente, à liberação mais elevada.
A liberação mais elevada é alcançada através da visão completa. Quando temos a visão completa, chamamos isso de liberação. Quando você vê as coisas de todos os ângulos, quando conhece o princípio, o fim, o meio, todas as direções, quando conhece a fundação, a natureza, o impacto dessa coisa em particular… Se vai seguir com isso ou não, depende exclusivamente de você, mas você não estará limitado. Isso é chamado de liberação.
Nesse sentido, quando você tem o pleno amadurecimento de vipassana, chamamos de liberação ou nirvana. Assim, é possível perceber que a ideia budista de liberação não é uma coisa distante, que levaria uma eternidade para alcançar, como em geral somos levados a pensar.
Não temos tempo para sentar
Agora vou aprofundar ainda mais a análise. Tradicionalmente, vipassana é [um método] abordado por diferentes escolas do budismo. Ou seja, em se tratando do caminho Shravakayana que é, em parte, o caminho Theravada, há bastante ênfase em sentar-se e observar a respiração, pois isso é muito virtuoso. Antes de mais nada, ao sentar, você já está se isolando de todas as distrações, que são, basicamente, a zona de conforto da qual falei anteriormente. Estamos sempre caindo nessa zona de conforto. Zona de conforto significa, aqui, a falsa visão parcial, que não é real, com a qual estamos habituados e nos sentimos confortáveis. Mas não é [assim] o tempo todo e esse é o desafio. Apesar de nos sentirmos confortáveis, sempre caímos em algum tipo de decepção ou ansiedade. Os problemas são infindáveis e simplesmente não sabemos como fazer de outra maneira. Estamos acomodados nessa zona de conforto.
O método tradicional, não apenas da tradição Theravada, mas das tradições Mahayana e Vajrayana, a princípio, a meditação sentada é muito boa. Então, observar a respiração, as sensações e assim por diante, no mínimo, nos isola dessa zona de conforto. Então, você se desnuda, por assim dizer, torna-se mais claro, independente. Você estará realmente olhando para a vida sem outras interferências, com uma visão completa, a visão de um pássaro.
Se apenas observar a inspiração, a expiração, as sensações e tudo o mais, [isso] lhe dará, imediatamente, uma noção da impermanência, anicca; da insatisfatoriedade, dukkha; da ausência de eu, anatta; e, na tradição Mahayana, de shunyata ou tathagatagarbha.
Basicamente, essa é a abordagem tradicional. De forma alguma estou dizendo que esses métodos estão ultrapassados. Sem dúvida, devemos mantê-los. Se você tiver tempo e meios, com certeza deve praticá-los, porque eles foram cuidadosamente desenvolvidos e projetados pelos grandes mestres do passado, por séculos. Repito sempre: há uma coisa que a antiga sabedoria indiana ou asiática tem, pelo menos no budismo, que são 2.500 anos de experiência em lidar com a mente. E a mente é o mais importante. Se você não tem mente, você não é nada mais que um corpo morto, um seixo, um pedaço de madeira. Por isso, definitivamente, essas técnicas não devem ser descartadas.
Entretanto, temo que a maioria das pessoas nos dias atuais — não apenas as crianças ou os adolescentes, mas todos, incluindo eu mesmo — não tenha tempo. Não temos tempo para sentar, nem desejo de sentar. Ou seja, são tantas coisas interessantes acontecendo lá fora, que a simples alusão a sentar é a última coisa que desejamos ouvir. Sentar? É a coisa mais chata de se ouvir. Sentar por quanto tempo? Um minuto? Mesmo um minuto parece um fardo. Foi assim que o mundo mudou, evoluiu. Evoluiu tanto, que hoje em dia as pessoas nem sequer têm tempo para ler um bom livro do início ao fim. Só querem ler algumas manchetes, anúncios, preferem as fontes maiores, não têm tempo para os detalhes. Descobri recentemente que existe um aplicativo para ler todos os livros importantes em cinco minutos. Você pode ler as coisas essenciais de cada livro em apenas cinco minutos. Isso indica que as pessoas não têm tempo. E o que isso quer dizer? A questão é: temos vida para vipassana?
Temos vida para vipassana?
Considero que sim, muita! Sentar, observar a respiração, fazer retiro, ir para a floresta… Sim, se você tiver tempo, vá à Tailândia, Mianmar, Sri Lanka, Nepal para fazer esses retiros. Isso sempre vai ajudar. Mas, se você não tem esse tempo, a melhor coisa é esse sentimento de estranhamento, de vazio. Sentir-se triste. Na verdade, estou citando um sutra que diz que há duas coisas indispensáveis, que são necessárias para aperfeiçoar vipassana. Uma, é a tristeza por tudo que você tem, seja lá o que for. Talvez tristeza não seja a tradução correta, mas você se pergunta: “estou com 60 anos e isso é tudo? É só isso o que chamamos de vida? O que tem mais? O que vem depois? A mesma coisa de novo e de novo?”
Talvez apareça um pouquinho de depressão, ou mesmo uma grande depressão, talvez uma tristeza, um sentimento de vazio ou, como dizem os alemães, um angst¹ existencial. “Eu realmente existo? Quem sou eu? O que estou fazendo? Parece que sou como uma formiga seguindo uma norma comum a todos, [atrás de] comida, abrigo.” Bem, pelo menos isso é essencial; mas tem tantas outras coisas! Então, um sentimento de estranheza, um sentimento de que tem de haver algo mais, isso é uma coisa boa, pois mostra, de alguma forma, o alvorecer do insight. Mostra que você está começando a ver a vida de uma posição mais elevada, você não está só copiando.
Você deseja ser independente? Pois esse é o princípio da independência. Você está realmente se tornando independente quando se sente um pouco deprimido com o que quer que esteja acontecendo. Vamos ser cuidadosos com relação a esse ponto. Estou me referindo a uma depressão específica, relacionada ao vazio da vida. Não me refiro à vacuidade, shunyata, mas a um sentimento niilista, uma falta de propósito.
Esse é um aspecto muito importante e acho que as pessoas modernas já o têm. Conheço muitas pessoas modernas. Algumas delas já alcançaram tantas coisas, tudo que supostamente deveriam realizar ou que tenham sido pressionadas a realizar. Se foram pressionadas a ir à escola, elas foram. Se foram pressionadas a entrar em alguma universidade de alto prestígio, elas entraram. Se foram pressionadas pela família, por amigos a conseguirem os melhores empregos, elas conseguiram. No entanto, agora se perguntam: “isso é tudo?”
A importância da sabedoria
[Esse questionamento] é bom e muitas pessoas hoje em dia o fazem. Entretanto, elas não têm justamente o que o sutra está sugerindo. Você precisa da tristeza, mas também precisa da sabedoria. Sem a sabedoria, a tristeza toma conta, falta sentido, propósito. Tudo é inútil, como uma escuridão completa, que seria o resultado do que chamamos de angst existencial. E aqui entra a sabedoria, que precisamos para ir além disso.
Então, voltando àquelas pessoas modernas como você, como eu — embora eu nem saiba se posso me considerar uma pessoa moderna —, que vivem esse tipo de situação, que não têm nem um minuto para sentar, que nem mesmo desejam fazer isso, mas estão tristes. Mesmo nessa situação, de certo modo, conseguimos apreciar a sabedoria de vipassana. Consideramos que anicca faz sentido, dukkha faz sentido, anatta faz sentido, shunyata e tathagatagarbha fazem sentido. Mas, claro, não temos disciplina para fazer imediatamente algo a respeito. Então, o que fazemos? É isso que eu quero analisar um pouco mais.
Anicca, impermanência
De que maneira os jovens, os adultos, as pessoas que têm uma família, aqueles que trabalham podem se familiarizar com o mundo de vipassana? Vamos escolher um elemento ou um aspecto da vida, conforme falei anteriormente. Trabalho, relacionamento… Na verdade, são todos iguais. Todos os aspectos da nossa vida dependem muito de várias causas e condições.
Os relacionamentos, por exemplo. Uau! Fazer um relacionamento funcionar, seja lá o que isso signifique, depende muito de tantas causas e condições! E as causas e condições nem precisam ser tão grandes. Pode ser quanta água é colocada no café. Isso poderia acionar altos e baixos no relacionamento. Da mesma forma, a camiseta que você comprou, ou a posição em que você colocou o sofá são tão dependentes de todos os tipos de causas e condições… É interminável! Você não consegue resolver. [Ou melhor,] não é que não consiga. Talvez consiga consertar por uma semana ou um mês, mas novamente… Não vou dizer que “desmorona”, porque soa muito negativo; mas é assim que as coisas são. Mudam o tempo todo, porque são muito dependentes de causas e condições. Estão sempre evoluindo e muitas vezes isso também é bom. Muitas vezes a própria causa que destruiu o seu relacionamento pode torná-lo ainda melhor. Talvez a quantidade de água que você colocou no café tenha tornado o seu relacionamento emocionante, bonito e romântico, seja lá o que for. Não sabemos, mas é assim que as coisas são.
Nós, pessoas modernas, mesmo sem sentar [para meditar], sem observar a respiração podemos nos educar e refletir vez após vez, por exemplo, sobre o trabalho, o relacionamento, não apenas o relacionamento com um namorado ou namorada, mas com o patrão, com um colega, com um amigo. Isso depende muito de causas e condições e, portanto, pode mudar. Mudança não significa, necessariamente, [algo] bom ou ruim. Pode ser bom. Pode ser ruim. Amanhã será outro dia. Esta tarde, esta noite… É outro dia. Não sabemos o que está guardado. Nós realmente não sabemos o que está reservado para acontecer. Sim, em geral tem sido bom. Então, tudo bem, devemos apreciar; mas não sabemos realmente. É muito incerto.
Agora, se você tiver esse tipo de consciência, esse é o jeito de uma pessoa do século XXI viver e ter um relacionamento saudável e funcional. Porque há essa visão de um pássaro com relação ao relacionamento. Assim, sempre há espaço para perdão, abertura, aceitação. Acho que isso é muito vipassana. Mesmo que você não se sente nem por um minuto, se você realmente disser isso a si mesmo, se educar, se influenciar, refletir — porque, afinal, bhavana, meditação, treinamento da mente são uma reflexão —, isso será uma sadhana de vipassana do século XXI.
Dukkha, insatisfatoriedade
De modo semelhante, o que significa dukkha? Insatisfatoriedade. [Como exemplo,] podemos escolher uma coisa em nossas vidas. Qualquer coisa que consideremos muito valiosa, como, por exemplo, justiça. É provável que tenhamos a mais alta consideração por justiça, liberdade e independência. Todos são dukkha. Digamos que você repentinamente se tornasse independente. Você realmente ficaria satisfeito? Dukkha é algo oposto à satisfação. Estou me referindo à satisfação total. Se você fosse completamente independente, você ficaria realmente satisfeito com isso? É algo a se pensar, porque, se você finalmente se tornar independente, do jeito que costumamos desejar, como eu disse antes, vai ser complicado. Porque muitas vezes queremos ser independentes, mas queremos que os outros dependam de nós.
Queremos que as outras pessoas dependam de nós? Pois bem, não vai dar certo, isso é pedir para ter um problema. Ninguém será corajoso o suficiente para dizer: “Ok, você quer ser independente, eu quero ser independente. Você faz as suas coisas, eu faço as minhas.” Essas coisas são ditas apenas em um nível teórico, mas, de fato, ninguém nos dá espaço e nós não damos espaço a ninguém. E quando, finalmente, temos o nosso próprio espaço, do jeito que queremos, isso não nos garante satisfação plena. Precisamos refletir!
Assim, se pudermos ver a vida e os nossos valores dessa maneira, isso vai matar todo o preconceito, porque você estará olhando para a vida e para esses valores de todos os diferentes ângulos. Pode ser que você não sente em meditação nem por um minuto durante um ano inteiro, mas se puder olhar por todos os ângulos para as coisas que valoriza e ver que não serão cem por cento satisfatórias, você é um sadhaka, um praticante de vipassana.
Isso é uma coisa que nós, pessoas modernas, podemos fazer enquanto andamos de táxi, de ônibus, metrô, enquanto comemos, bebemos. Isso é possível e nós somos inteligentes o suficiente para fazer. Detestamos o que chamamos de lavagem cerebral. Essa é a melhor maneira de não deixar nenhuma circunstância ou situação fazer uma lavagem cerebral em você.
Só de ter esses dois ângulos, essas duas visões — a impermanência de todas as coisas e a insatisfatoriedade de tudo —, já faz uma grande diferença em nossas vidas. Como muitos de vocês já devem ter percebido, não é nada religioso, nada mítico, nada místico. Isso é cru. É uma ciência, a ciência de como viver e de como ver a nossa vida.
Anatta, não-eu
Agora, o terceiro ângulo: ausência de existência intrínseca ou não-eu. Para começar, anicca, dukkha e anatta são, na verdade, interconectados. Em certo sentido, ao entender que tudo é impermanente, você já está no caminho para a compreensão do não-eu. Quando você descobre que nada satisfaz completamente, você já está se dando conta de uma boa parte de anatta, o não-eu. No entanto, dito isso, o ensinamento sobre o não-eu, anatta, é o mais essencial do Buda. E como eu dizia anteriormente, isso vai se tornar mais importante do que nunca.
Farei uma relação com os tempos modernos. De modo geral, acho que é possível dizer que estamos bem melhor do que aqueles que viveram em épocas passadas, quando as pessoas basicamente precisavam procurar por comida, tinham medo de pragas ou de que alguém invadisse seus territórios. Mesmo na época em que eu era mais jovem, levava alguns meses para uma carta chegar para a minha mãe. Levava muito tempo para chegar até ela e depois mais alguns meses para eu receber a resposta. Eu não sei, mas, provavelmente, [o fato de isso ter mudado] é uma coisa boa.
Agora podemos falar ao vivo, pelo Zoom, como estamos fazendo aqui. Não sei se é algo bom, mas é o que está acontecendo. Talvez seja bem verdade que nós, pessoas modernas, sofremos muito com crises de identidade. Quem somos nós? Esses ensinamentos sobre anatta são realmente a desconstrução do dilema da identidade.
O mundo inteiro tenta resolver essa crise de identidade. De que maneira? Sei lá, pintando o cabelo, usando sapatos de grife, recebendo um alto título em alguma universidade, comprando carros esportivos. Acho que isso também tem a ver com crise de identidade. Ou mudar de sexo. Ou mesmo pequenas coisas, como falar fazendo chiados ou rindo como um cavalo. Sei lá, as pessoas fazem essas coisas para tornar suas identidades únicas. Olhe só para nós! Tudo isso tem a ver com identidade: arte, música, afirmação por meio da moda. Estamos falando de identidade. Definitivamente, existe uma crise de identidade e, para resolvê-la, existem esses remédios. Assim, politicamente, existem a cultura, a tradição, os nacionalismos (como o chinês, o indiano, o egípcio) e também as visões (como a democracia, o socialismo, a identidade).
Então, enquanto o mundo inteiro está tentando resolver a crise de identidade com essas identidades, o budismo, por sua vez, tenta resolvê-la de uma maneira totalmente oposta. Identidade é uma ilusão. É o maior mistério. É totalmente infundada.Não existe, realmente, algo como um “eu” ou um “você”, de modo independente. Isso é uma ilusão.
Mas você não pode simplesmente dizer que é uma ilusão e, por isso, não vai se importar com ela, porque a ilusão é poderosa. Mesmo um espantalho faz seu trabalho e, ainda que não seja humano, que seja só uma ilusão, cumpre sua função e afasta os corvos. Da mesma forma, essa identidade ilusória que nós temos não é muito fácil de resolver, porque se eu beliscar você, você sentirá dor. Se na sua rede social aparecer um joinha para cima, você ficará feliz, mas se aparecer um polegar para baixo, você ficará infeliz.
Essa crise de identidade é resolvida pelo Buda em ensinamentos como anatta ou shunyata ou tathagatagarbha. Mas este último provavelmente requer um pouco mais de contemplação, estudo, escuta, análise e você precisa colocar mais tempo e energia para entender. Mas se puder fazê-lo, essa é a chave para resolver todos os problemas. Eu estava lendo um pergaminho manuscrito do Sutra do Coração, o Prajnaparamita, e o conteúdo desse sutra é realmente a quintessência dos ensinamentos para enfrentar este, que é o problema maior e mais pernicioso: a crise de identidade, o eu. Porque essa identidade é a principal culpada, digamos, de todas as calamidades, ansiedades, sofrimentos, desilusões, confusões, dor, samsara.
Apenas para dar a vocês algumas informações adicionais, vipassana é realmente um caminho para ver a verdade completa, a verdade direta, a perspectiva completa, a visão do insight, a verdade real.
Bodhicitta, aspiração de iluminar todos os seres sencientes
Em geral, [o caminho para se ter a visão completa] é ensinado, principalmente na tradição Theravada, por meio das três características: anicca, dukkha e anatta. De igual modo, na tradição Mahayana, esses ensinamentos são muito aceitos, venerados, apreciados. E mais: no Mahayana, exclusivamente, eles são abordados com a bodhicitta.
Nesse âmbito, há a bodhicitta relativa que, como um treinamento da mente, bhavana, [se manifesta] pela aspiração de iluminar todos os seres sencientes — o que é um ensinamento muito vasto. Além disso, desejar iluminar os seres sencientes não é uma atitude filantrópica. Na verdade, é muito mais do que isso. Também não é como querer dar a eles boa saúde, boa comida. Não é disso que se trata. Não estamos falando em dar-lhes algum ganho temporário, como comida ou abrigo, mas sobre querer despertá-los para essa verdade.Portanto, existem duas bodhicittas: a relativa e a absoluta, também conhecida como shunyata. A esse respeito, a abordagem do Mahayana pode se parecer bastante com a da tradição Theravada para anatta, mas parte de um ângulo diferente. Logo, é uma abordagem diferente.
Ela também pode ser vista como muito desafiadora, porque, do ponto de vista Mahayana, não só o samsara — dukkha, o mundo — é uma ilusão, mas até mesmo moksha — a liberação, o nirvana — é uma ilusão. Então, pode-se dizer que os ensinamentos Mahayana são muito audaciosos. E, dentro do Mahayana, também temos o Tantrayana ou Vajrayana, que, na verdade, é o Mahayana com maneiras únicas e corajosas de enxergar a realidade.
No contexto do Mahayana, quando falamos sobre a bodhicitta absoluta, um ângulo é shunyata. Não apenas o samsara é shunyata, mas também o nirvana. No entanto, o outro ângulo do Mahayana é olhar para as coisas a partir de tathagatagarbha, o ponto de vista da natureza búdica, especialmente com relação aos seres sencientes. Todos os seres ignorantes possuem a natureza de buda.
Vipassana, então, é sobre olhar as coisas com a visão completa. Um ângulo dos ensinamentos Mahayana é olhar para a coisa toda, ou para os seres sencientes, com a visão de que todos têm a natureza búdica. Esse é um ângulo único; vipassana, na verdade.
No Vajrayana é muito parecido. Se a natureza dos seres sencientes já é buda, então por que não interagir com eles, agora mesmo, como sendo buda? Sempre dou o seguinte exemplo: [imagine que] você é um ourives e recebe um minério de ouro, que ainda não está polido nem brilhando, é apenas uma rocha. Você recebeu 1 Kg de ouro, que nem remotamente se parece com ouro. Ainda assim, se você é um ourives, sabe que recebeu ouro e vai tratá-lo exatamente como se fosse ouro polido. De igual modo, por que já não olhar para as pessoas como deidades, como budas? Não apenas olhar, mas conversar, comer, morar, interagir com elas dessa forma?
Portanto, por que não ver o mundo em que vivemos como um campo búdico, e assim por diante? Isso é realmente vipassana — a vipassana do Vajrayana. Como eu dizia desde o início, vipassana é algo muito vasto. De fato, eu diria, é o que há de mais singular [no budismo]. Se tirarmos vipassana e deixarmos apenas shamatha, isso é encontrado em muitas tradições indianas. Mas vipassana é muito especial. Dentro do Vajrayana, existem tradições como mahamudra e mahasandhi. Elas são basicamente o epítome, ou a parte mais refinada de vipassana.
Você pode conferir o vídeo referente a esse ensinamento aqui.
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1 Comentário
Riquíssimo ensinamento deste grande Mestre. Gratidão