Foto: Claudia Allegro

A Terra é de Nhanderú

Kaká Werá fala sobre os quatro princípios da sabedoria ancestral da cultura Guarani em encontro de lideranças indígenas no Caminho do Meio


Por
Revisão: Bruna Crespo
Edição: Janaína Araújo
Transcrição: Ieda Estergilda

Num dia emocionante, marcado pelo som da maraca e o canto de crianças indígenas da aldeia Mbyá-Guarani, de Maquiné, região da Serra do Mar (RS), o Lama Padma Samten uniu os caciques André Benites (movimento de Retomada em Maquiné-RS), José Cirilo (Aldeia da Lomba do Pinheiro em Porto Alegre-RS) e o índio paulistano, Kaká Werá, no encontro com lideranças indígenas dentro do curso de Formação em Auto-Organização, realizado no último dia 24 de setembro, no CEBB Caminho do Meio, em Viamão (RS).

A Bodisatva, que acompanha a retomada das terras dos Mbya-Guarani, transcreveu a maravilhosa palestra “Os quatro princípios da cultura Guarani”, oferecida por Kaká Werá, educador social e integrante da Unipaz (Universidade Holística da Paz).

Da terra de Nhanderu, Kaká Werá nos fala amorosamente sobre a sustentação da sabedoria ancestral dos guaranis cultivada há milhares de anos com base em quatros princípios fundamentais do ser: a mãe, o cuidado ancestral, o acolhimento e a cooperação.

Neste diálogo, ele nos conduz gentilmente a uma conexão entre povos interligados pelo silêncio e a compaixão.“A tradição indígena, por exemplo, honra a dimensão da ancestralidade divina no seu silêncio, no espaço entre a fala e o canto, no espaço entre a respiração e o som das maracas, no interior de si mesmo. As terras que são importantes para o setor econômico têm silêncio e são vitais para nós porque é através da natureza que nós nos conectamos de uma maneira vibrante, de uma maneira pulsante com o sagrado mistério, com o sagrado silêncio. E isso é precioso para os guarani. O povo guarani é o povo da contemplação, o povo do silêncio”, descreve Kaká, como um poeta.

Confira a palestra completa.


Uma tradição cantante

Quero começar comentando sobre os cantos dos guaranis. Sempre tenho dito ao longo dos anos e pela convivência que mantenho com a cultura guarani que normalmente as pessoas falam que a tradição indígena é uma sabedoria oral e o conhecimento indígena é repassado de uma forma oral. Na verdade, a sabedoria indígena é uma tradição vivencial, é uma tradição mais cantada do que oral. Diria que é uma tradição cantante.

Existem alguns princípios na cultura guarani que permanecem há 5 mil anos, no mínimo. Me pergunto de que maneira esses princípios, esses valores, têm permanecido nessa cultura por tanto tempo? É possível, realmente, permanecer? Qual é a escola? Qual é o método? Qual é a pedagogia?

Respondo que é possível, sim! E o método, a escola, a pedagogia, a maneira como os guarani encontraram foi adotada pelos guaranis antepassados, que tiveram uma sabedoria incrível e acharam um sistema pedagógico para que esses princípios pudessem continuar vivos: cantando, dançando, permanecendo dentro do seu espaço sagrado e mantendo no seu espaço sagrado pontos de conexão com sua origem, que quer dizer “Opy”, traduzido como casa de rezas, casa de cantos.

O Opy é o ponto de conexão, da manutenção dessa memória fundamental. Sem essa memória fundamental não existe cultura guarani.

A memória fundamental sustenta e tem sustentado todo o saber ancestral da tradição guarani, que descende das matrizes da tradição tupi, e tem influenciado muitos outros povos, desde a Patagônia até o Nordeste do Brasil, nos últimos três a cinco mil anos. Bem antes da chegada dos europeus, muito antes mesmo.

Para vocês terem uma ideia, a matriz linguística de cultura guarani, que é a língua tupi, influenciou e tem influenciado pelo menos centenas de outros povos naquilo que se refere ao seu saber preservado por essa memória ancestral, que é continuamente narrada ou cantada pelas crianças.

cultura guarani

Foto: Dan Rez

A influência não é no sentido de impor uma ideia, mas no sentido de construir a maneira de se relacionar em comunidade, de se relacionar em família. É um modo totalmente próprio e totalmente integrado. A manutenção da narrativa desses princípios são importantes de serem compartilhados porque eles não têm tempo, não têm idade, não são simplesmente crenças étnicas. Eles podem nos ajudar independente de civilização, cultura, língua, espaço. Podem nos ajudar na maneira de nos relacionarmos com a vida de um lugar onde o princípio da harmonia, o princípio da vitalidade e o princípio evolutivo são marcantes.

Por isso defendo essa tradição, não no sentido de ser uma tradição estagnada, fechada, reduzida somente a um povo, a um grupo, mas no sentido de que seus princípios, seus valores são possíveis de serem experimentados independente de qualquer sistema social, econômico. É por isso que coloco como princípios importantes e profundamente modernos também.

Para vocês terem ideia, hoje, uma das grande palavras de ordem ao longo dessas décadas tem sido a questão da sustentabilidade e, de certa forma, a sociedade como um todo tem canalizado esforços para encontrar modos de vida mais sustentáveis. Posso afirmar que a tradição ancestral tem princípios e práticas, modos de vida totalmente sustentáveis.

Fala-se numa sustentabilidade econômica, social, ecológica, mas os princípios que vêm dessa sustentabilidade ancestral têm quatro colunas de sustentabilidade, que não é só econômica, nem apenas social e ecológica. Existe uma quarta coluna que é a sustentabilidade individual. O indivíduo, o coletivo, o social e o econômico estão encontrados nesses princípios, que são cantados pelas crianças até hoje.

Naquilo que eu aprendi, os antigos sábios do povo guarani chamam esses princípios de Ayvu rapyta, os fundamentos do ser. É difícil traduzir a palavra ser, porque Ayvu, que nós traduzimos como ser, também é sopro, e também é vida. Quais são esses princípios contidos no Ayvu rapyta nos fundamentos do ser?

Creio que é isso que importa, porque isso que está além. Creio que, quando as sociedades entenderem esses princípios, elas vão compreender, por exemplo, a necessidade do povo guarani de habitar, cuidar e retomar suas terras, suas áreas, não do ponto de vista apenas do ter, mas do ter também para cuidar.

É sobre esses princípios que quero comunicar para vocês, do Ayvu rapyta.

Primeiro princípio: a terra como mãe

O primeiro princípio, que está presente como valor e tem atravessado milênios, é justamente a ideia da terra como mãe. Na língua guarani, ela é chamada Nhandecy: a nossa mãe. Alguns estudiosos até conseguem se identificar com esse princípio como uma bela metáfora, um belo símbolo.

Esse princípio da terra como mãe é fundamental para haver uma troca, uma interação, uma escuta com essa cultura ancestral. Porque realmente a terra é uma grande mãe, a terra é uma entidade viva, uma inteligência, uma consciência, não é simplesmente uma metáfora, uma força de expressão. E esse é o primeiro princípio.

É a terra que se estende através dos ecossistemas, da natureza, do ambiente; tudo isso é um corpo vivo dessa grande mãe. E ela é verdadeiramente a nossa mãe.

E não é a mãe do Guarani, a mãe do Tapuia, a mãe do Kamaiurá, ela é a mãe de toda a vida que floresce sobre a terra. Então, quando nós dizemos: somos filhos da terra, é por isso que, depois, fica difícil dizer a terra é nossa, não é?

Todos aqui temos e somos filhos de uma mãe. Então, eu pergunto: a sua mãe é sua propriedade? Você é propriedade da sua mãe? Trazendo aqui para essa dimensão genealógica, talvez fique difícil entender a dificuldade que a tradição indígena tem de dizer para sociedade: “Olha, a terra não é nossa, nós somos filhos da terra”.

Então, essa relação de propriedade com a sua mãe é uma coisa muito incongruente. Mas esse primeiro princípio de dizer que a terra é nossa mãe, mãe de todo ser vivente, também tem alguns compromissos e algumas responsabilidades.

Quais são o compromisso e a responsabilidade que o filho tem com uma mãe? Quais são o compromisso e a responsabilidade que a mãe tem com o filho? Todos nós sabemos, tem muitas mães aqui, tem pais também. E a gente sabe que a mãe, o que a mãe mais adora, o que a mãe mais reverencia, é justamente a arte do cuidado. E nós sabemos o que está subentendido nessa arte do cuidado, principalmente numa casa como essa, num templo como esse.

A arte do cuidado pressupõe um fundamento que é o principal: o fundamento da compaixão. Então, o compromisso da mãe para com o filho é cuidar. E nós podemos perceber isso através daquilo que estrutura a nossa própria existência até agora: nossa pele, nossos ossos, nosso organismo são um desenho, uma tessitura que vem dessa grande mãe antes de vir da mãe genealógica.

Então, esse primeiro princípio é a sabedoria de reconhecer a terra como uma mãe, como aquela que cuida, como aquela que ama de uma maneira incondicional. O que cabe ao filho para com uma mãe? E é daí que nascem os ritos de muitos povos de honrar a mãe através de um cuidado celebrativo.

Muitos dos cantos que os guarani cantam nada mais são do que poesias, poemas de gratidão à mãe. Se vocês forem ver as traduções de alguns cantos que as crianças cantam, elas estão agradecendo ao raio do sol que emerge na manhã, estão agradecendo ao rio que corre, estão agradecendo à folha que cai, estão agradecendo à honra de poder caminhar sobre a terra.

Gratidão é o primeiro compromisso que nós temos com a terra, para com a mãe. Não é colocar uma cerca, não é delimitar. A gratidão é o primeiro compromisso dentro desse primeiro princípio.

Segundo princípio: o cuidado ancestral

O segundo princípio é o cuidado. Não se muda o curso de um rio, não se desagrega, não se derruba uma área extensa de árvores. Por quê? Por conta desse segundo princípio. Primeiro: a terra é nossa mãe. Segundo princípio: todos nós somos parentes. Todos nós, quem? Todos nós homens, reino vegetal, reino animal, reino mineral, quer dizer, todos nós somos parentes. O reino animal antecedeu ao reino humano, o reino vegetal antecedeu ao reino animal, o reino mineral antecedeu ao vegetal, eles são os nossos ancestrais.

Muita gente diz o seguinte: os povos indígenas gostam de cultivar os ritos aos ancestrais, achando que os ritos são apenas para os ancestrais humanos, os avós, tataravós. Mas não são só aos ancestrais humanos. A Mata Atlântica é parente dos guaranis. Os animais são nossos parentes. Então, o segundo princípio é o cuidado dessa ancestralidade, que vai além da consanguinidade.

Os nossos ancestrais, nossos parentes, não são só nossos tios, avós, tataravós, sangue do nosso sangue; os nossos ancestrais vão além disso. As árvores são nossas avós, os animais são nossos bisavós, as pedras são nossas tataravós. É assim. Não é só uma força de expressão, não é mesmo, e vocês sabem disso.

Até do ponto de vista biológico, não é difícil saber quem nos antecedeu? E vocês acham que tudo aquilo que nos antecedeu foi de maneira casual? Será? Um rio não se forma por acaso, uma montanha não nasce à toa, eles escolhem um lugar para habitar. É uma consciência, uma inteligência, desenvolvendo um imenso trabalho, só que dentro de uma dimensão diferente de tempo e espaço que, para nossa percepção, é uma ideia difusa.

O que é a passagem do tempo para uma montanha? O tempo que uma montanha leva pra envelhecer é diferente da passagem do tempo para um ente humano envelhecer. E ambos desempenham uma tarefa dentre seu respectivo espaço e tempo. A gente não tem muito a dimensão de tempo.

O segundo princípio é o princípio do parentesco que é maior que os laços consanguíneos, nosso parentesco realmente é mais vasto e inúmeros cantos dos guaranis falam sobre isso, falam dos rios, das montanhas, da floresta como os que nos antecederam, nossos verdadeiros parentes.

Então, o segundo princípio é o princípio do alargamento do parentesco. E nesse princípio tem três dimensões ancestrais importantes que devem ser consideradas, reverenciadas. Se você reverencia essas três dimensões, você é uma pessoa harmônica, você é uma pessoa em equilíbrio; se você não reverencia, você é uma pessoa doente.

São três dimensões ancestrais que precisamos reverenciar. A primeira dimensão são os nossos pais, avós e tataravós; isso é um ponto básico, devem ser reverenciados. Essa primeira dimensão a sociedade até reconhece, embora tenha dificuldade de honrar, muitas vezes, tanto é que uma das grandes terapias que tem se multiplicado no Brasil e em outros lugares nesses tempos é a constelação familiar, para curar essa doença da não reverência aos antepassados consanguíneos, não é?

Mas o segundo nível, a segunda dimensão de ancestralidade que devemos reconectar, reconciliar, é a nossa ancestralidade com as entidades da natureza. O espírito dos rios são nossos avós. O espírito das árvores são nossos avós. Eles são parentes nossos, não são parentes distantes.

cultura guarani

Kaka Wera. Foto: Lia Beltrao

E a marca deles, os guaranis cantam muito isso, a marca dos nossos ancestrais estão em nós. A marca do reino vegetal está em nós, a marca do reino mineral está em nós, nós somos minerais, nós somos vegetais, nós somos dois terços de água no nosso organismo físico.

A herança genética desses ancestrais estão presentes no nosso corpo, no nosso organismo. O que acontece quando falta um mineral no nosso organismo? Não tem uma medicina que procura equilibrar o mineral no organismo, na saúde? Olha a presença dos nossos ancestrais aí.

A segunda dimensão de ancestralidade a ser reconsiderada é com a natureza. Mas não como metáfora, nem como preservação e nem com esta soberba de achar que temos que salvar a natureza. Quem somos nós pra salvar? Nós temos que nos salvar de nós mesmos! Nós temos que nos salvar. Porque a natureza é rápida. Passa um furacão e ela se renova em três tempos.

Então, a segunda dimensão de ancestralidade que a gente tem que reconectar, que é essa que nós aprendemos com os guaranis, por exemplo, é honrar os ecossistemas, não somente como ecossistemas nem como fontes de recursos, mas como seres.

A negação dessa segunda dimensão de ancestralidade é uma falha grave na sociedade, na civilização não indígena. Veja bem, não estou dizendo que não devemos acolher o que a natureza nos oferece como minérios, alimentos, recursos para a construção. Mas é o como fazemos isso. Com relação a isso nós temos muito a aprender realmente, não só com os guaranis mas com inúmeros outros povos. Não sei se vocês sabem, mas o que vemos hoje como Amazônia, essa imensa floresta, há menos de 10 mil anos era um deserto, era só areia.

Ao longo de alguns milênios, inúmeros povos chamados indígenas é que criaram a Amazônia. Por onde os nossos antigos passaram, não só preservaram como inventaram ecossistemas. A Amazônia é um ecossistema inventado, foi criado. Por onde esses povos passaram, por onde os nossos antigos passaram, não só usufruíram do que a terra ofereceu como deixaram algo a mais.

Isso contradiz, inclusive, uma teoria científica que diz que onde o homem passa, uma floresta se desfaz, pois onde os guaranis passaram, recriaram e ampliaram as florestas. Isso por quê? Por conta desse princípio de reconhecer uma floresta como seu ancestral, seu antepassado, seu avô, sua avó.

E a terceira dimensão de ancestralidade é igualmente preciosa para a civilização contemporânea, que é a nossa ancestralidade divina. Existe uma origem, existe um ancestral dos ancestrais, existe aquele que antecede eu e você, existe aquele que nos antecede, que é a mãe terra, e existe aquele que antecede, inclusive a mãe terra, inclusive as estrelas que olhamos no céu: o ancestral do ancestral.

Então, tem uma terceira dimensão. Quem é o nosso ancestral do ancestral? Existe o ancestral do ancestral, existe uma terceira dimensão de ancestralidade que deve ser honrada, que é a ancestralidade divina, não é? É o que fazemos aqui neste templo. Mas isso infelizmente não é algo que é comum, a gente sabe disso. Essa ancestralidade da ancestralidade da ancestralidade é a terceira dimensão que nós devemos honrar.

Só que existe uma diferença entre a maneira como os guaranis fazem, até mesmo a maneira como algumas tradições fazem e a maneira como a sociedade contemporânea entende. Existe uma diferença. A tradição indígena, por exemplo, honra essa terceira dimensão de ancestralidade no seu silêncio, no espaço entre a fala e o canto, no espaço entre a respiração e o som das maracas, no seu silêncio, no interior de si mesmo.

Essa é a ancestralidade de todas as ancestralidades, é a matriz de todas as matrizes. Nesse segundo princípio do Ayvu rapyta dos fundamentos do ser, isso é algo que eu preciso compartilhar com vocês, as três dimensões de ancestralidade a serem honradas: a genealógica, a da alma dos seres da natureza e a do sagrado mistério, que nós chamamos de Nhamandu, que nós chamamos de Tupã, que nós chamamos de Nhanderu.

É que na verdade tem muitos nomes e nenhum nome lhe explica, mas o silêncio nos abarca, o silêncio toca, a contemplação nos toca, por isso que a floresta em pé é tão importante para nós. O Lama Padma Samten estava dizendo agora, né? Muitas vezes, terras que são importantes para o setor econômico, mas tem a presença da natureza, tem silêncio, são vitais para nós porque é através da natureza que nós nos conectamos de uma maneira vibrante, de uma maneira pulsante com o sagrado mistério, com o sagrado silêncio.

E isso é precioso para os guaranis. O povo guarani é o povo da contemplação, o povo do silêncio, e quando fala, procura falar palavras formosas. Então, esse segundo princípio desdobra nessas três dimensões da ancestralidade que nós devemos recuperar, nós devemos resgatar.

Terceiro princípio: o acolhimento

Tem um terceiro princípio importante para a tradição guarani que é o princípio da hospitalidade nas relações. Esse princípio da hospitalidade parte da ideia de que nós só evoluímos nas relações, nós crescemos nas relações. Esse princípio eu pude viver no ano de 1981.

Vim de uma família Tapuia que migrou de Minas Gerais para São Paulo e minha família já era desaldeada, não habitava mais em aldeia, meus pais foram morar em São Paulo nos anos 60. Nasci em 1964. Morávamos mais ou menos a 5 km do lado de cá da represa, onde do lado de lá ficam os guarani da aldeia de Krukutu e da aldeia Morro da Saudade. E meus pais fizeram a passagem muito cedo, eu tinha 9 anos quando minha mãe fez a passagem para o mundo espiritual e meu pai morreu quando eu tinha 17 anos.

Depois dos 17 anos, eu pude conviver melhor com os guaranis, que me acolherem pelo princípio da hospitalidade. Os guaranis, na verdade, não veem diferença entre o preto, o amarelo, o azul, o branco. Os guaranis não veem dessa maneira. Eles me acolherem como um parente, somos todos parentes.

E mesmo os guaranis quando falam o juruá, o branco, eles não estão separando porque o termo branco, nem é um termo guarani, é um termo de Hollywood. Esse termo veio com os filmes de Hollywood na década de 60, que eles chamam de Bang Bang, pele vermelha, homem branco. Não tem esse negócio de pele vermelha, entende? Mas é assim, tem o juruá, que é aquele que chegou depois, aquele que atravessou o rio e veio pra cá.

Mas voltando para esse princípio da hospitalidade, eu fui recebido como parente e fui convivendo. Tive um pai guarani, um avô guarani de acolhimento, o Werá, e o Guira-pepó, outro grande pajé da aldeia Morro da Saudade. Fui acolhido e, passado um tempo, fui nomeado no rito do Nhemonkaraí como meu nome Werá e eu fiquei assim. Mas como?

Eu não sou guarani e eles me disseram: “somos todos parentes”. Quando os italianos chegaram aqui por essas terras, eles acolheram os italianos. Tem um grande italiano que tem uma obra de dez volumes, de mais de duzentas páginas cada volume, falando sobre medicina guarani, astronomia guarani, culinária guarani. Ele registrou e recebeu permissão para escrever sobre isso, só que é assim: ele é um italiano, mas para os guaranis não tem italiano. Ele foi adotado pelos guaranis assim que chegou por aquelas terras.

Outra pessoa que foi acolhida pelos guarani é o Nimuendaju, considerado o primeiro estudioso e etnólogo brasileiro. Embora não seja brasileiro, ele é um alemão que chegou aqui perdido, não sabia como viver na Mata Atlântica, no Paraná, e a família dele estava morrendo. Os guaranis acolheram o Kurt Henkel e, um ano depois, o Kurt Henkel vira Nimuendaju.

Ele aprendeu a falar guarani antes de falar português; falava duas línguas – alemão e guarani – e só depois ele aprendeu português. Mas como acontece isso? É parte do princípio guarani, há pelo menos 12 mil anos, o princípio da hospitalidade: acolher o outro como parente.

Esse princípio não tem sentido nos dias de hoje? Nós não deveríamos ser acolhedores, acolher a diversidade, acolher a pluralidade de culturas? Os guaranis sempre tiveram isso. Eles partem da ideia de que todos somos parentes. E isso não é uma ideia, não é uma crença, isto é uma verdade: todos nós somos parentes.

O que nos difere talvez seja o peso, a altura, um tom… O que nos difere? Mas em essência todos nós somos parentes. Quando me perguntam assim: como os guaranis conseguiram sobreviver por tanto tempo? Porque vários povos aqui do litoral foram destruídos, mas os guarani estão aqui? Porque eles seguem os seus princípios. Mas como assim? Você pode vir armado, você pode vir com um canhão, pode vir sem arma… Você é acolhido, não tem oposição, somos parentes.

cultura guarani

Registro do encontro de lideranças indígenas. Foto: Lia Beltrão

O princípio da hospitalidade parte dessa ideia de que somos todos ancestrais, resultado de uma ancestralidade que é treinada, somos todos filhos de uma mesma mãe, consequentemente de um mesmo pai. Esse princípio da ancestralidade custou caro aos guaranis porque foi assim que os gananciosos foram chegando e ocupando.

Tanto é que, hoje, para a sociedade, do ponto de vista da organização do Estado, do ponto de vista dos estatutos federais, os guaranis, meus antepassados e outros povos são considerados mendicantes. Mas, na verdade, aqueles que escreveram lá atrás essas primeiras leis, considerando os povos indígenas como mendicantes, foram acolhidos com hospitalidade que vem do coração.

Simplesmente foram acolhedores, e mesmo sendo usurpados, continuaram acolhendo. Os séculos se passam e os guaranis continuam acolhendo; chegaram depois os africanos e os guarani acolheram. Chegaram os italianos, os guaranis acolheram; chegaram os alemães, e acolheram; chegaram os japoneses e acolheram. As terras em São Paulo, da aldeia Morro da Saudade, têm uma situação meio diferente em termos de posse de terra, onde vivi com os guaranis de lá.

Tem a aldeia de baixo e tem a aldeia de cima.  A aldeia de baixo era de uma família de japoneses, e quando o japonês ficou bem velhinho, doou as terras da aldeia guarani. Lá não é terra demarcada da União, a terra é doação de uma família japonesa, e o doador, esse japonês doador, falou assim: “Meus avós foram acolhidos pelos guaranis, nada mais justo que eu nomear, eu registrar, e passou a escritura para o antigo cacique, lá na década de 60”. Uma reciprocidade da hospitalidade.

Então, esse princípio da hospitalidade é imprescindível para o aperfeiçoamento nas relações, porque com certeza os guaranis aprenderam muito com esses que foram acolhidos e com certeza os acolhidos aprenderam muito com os guaranis. É o princípio de honrar relações através da hospitalidade.

Quarto princípio: a cooperação

O quarto princípio é o princípio do Puxirum, que é uma palavra estranha, mas todos vão saber o que é essa palavra. Todo mundo sabe o que é o Puxirum. Puxirum foi se aportuguesando, virou Mutirun, foi se aportuguesando, virou mutirão. O princípio do mutirão, do moitará. Dependendo de algumas, de alguma região, se fala moitará ou mutirão. O que é o princípio do Puxirum, Mutirun, mutirão, moitará?

É um princípio que está presente há milênios aqui entre os povos, é o de ajuda mútua. Uma família ajuda outra família a construir a casa dela. Até hoje, uma das principais festas em alguns povos que eu visito – e eu visito vários povos – é a festa do Puxirum, a festa do moitará, que é de ajudar na construção de  templos e casas para famílias.

Quando a pessoa vai casar, então todos os amigos vão lá e constroem a casa para aquela pessoa casar e fazem a roça juntos. Vamos traduzir? É o princípio da cooperação, de operar com. Esse princípio é um princípio que, inclusive, influenciou o povo brasileiro. Essa tradição de um grupo ajudar a construir a casa do outro, o grupo ajudar a construir o templo.

O princípio da troca, por exemplo, é baseado na cooperação. Foi dessa maneira que os povos da Amazônia trocavam raízes da mandioca com os povos do Sul, que tinham a semente do milho. Trocavam mudas, artesanato, etc.

É o princípio do Puxirum, Mutirun, do mutirão, da cooperação. São esses quatro pontos somente que nós queremos preservar, são esses quatro pontos que são caros para manter a tradição. Os outros pontos, a gente dialoga, mas são esses quatro pontos que vêm da tradição ancestral que eu tenho, ao longo de vinte e cinco anos de trabalho com a causa, procurado comunicar à sociedade. São somente esses quatro pontos.

Finalizo deixando a vocês esta reflexão: vocês acham que esses pontos são importantes somente para os guaranis? Vocês acham que esses pontos não poderiam ser uma tecnologia compartilhada e utilizada pelo Brasil e além do Brasil? Quatro pontos, somente, e os demais a gente dialoga.

A cooperação é o quarto ponto; o terceiro: a hospitalidade ou acolhimento; o segundo: a ancestralidade vertical, não a ancestralidade só horizontal, e o primeiro ponto: somos todos filhos da terra. É essa partilha que eu quero dividir com vocês, são os pontos que eu considero importantes, fundamentais, não só para a manutenção de uma cultura indígena, mas para a manutenção de um cultivo próspero e evolutivo entre todos nós.

Muito obrigado!


Para saber mais

Confira o vídeo do encontro com lideranças indígenas, com Lama Samten, Kaká Werá, José Cirilo, André Benites no curso de Formação em Auto-Organização no CEBB Caminho do Meio.


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10 Comentários

  1. Gabriel disse:

    Linda matéria. Parabéns pela qualidade e dedicação! Sou um admirador
    As verdades guaranis são para todos nós. Como foi dito aqui, não existe tanto essa coisa de ser uma coisa diferente um do outro: somos todos interligados, primos. A física quântica começou a dar sinais disso quando entende que o universo molecular é todo interligado. A ciência guia a civilização, e aos poucos estamos nos reconectando, como civilização, a essas quatro sabedorias:
    Somos filhos da mãe terra
    Somos gratidão pela nossa ancestralidade
    Somos acolhimento
    Somos cooperação (mutirum)

    Muito bom

  2. Carlos Vizioli disse:

    Esse texto com certeza mudou meu ser.
    Uma resposta para tudo o que eu sempre acreditei, para os valores que sempre existiram dentro de mim e que de alguma forma eu não os compreendia ou não os enxergava com clareza. Que presente do acaso eu ter encontrado este ensinamento tão direto, tão claro e tão simples! Parabéns pelas palavras e farei o que estiver ao meu alcança para passar essa mensagem adiante. Muito obrigado!

  3. Shirley disse:

    Lindooo… mtas sabedorias a ser aprendidas com eles, muita gratidao!

  4. Alex Assunção Rebello disse:

    Quero, de verdade, agradecer pelo compartilhamento dessa matéria.

  5. Elizabeth Nazzari Verani disse:

    Quanta sabedoria! Temos que trabalhar para que ela sobreviva na consciência da nossa sociedade como conhecimento e como prática. Muito obrigada! Que sigam promovendo e divulgando esses encontros.

  6. Gustavot disse:

    Muito obrigado!
    Aprendizados fundamentais nas palavras de Kaká…

  7. Jelder Loourenço disse:

    Um respiro em formato de texto, muito agradecido pela hospitalidade em compartilhar esta riqueza.

  8. Klenn Kollen Kascher disse:

    Wëy, kuruwa! (Olá, parentes!) O que significa WERÁ no nome do Kaká? Na minha língua, kan’xi, Werá significa Ave. Wapu (Wapoo) Werá (Weraa) = Ninho de Ave.

  9. Iracema Cortez disse:

    Maravilho. São ensinamentos para a humanidade.

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