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Um caminho simples

S.S. Dalai Lama ensina sobre os princípios básicos do budismo


Por
Revisão: Eloise Porto
Transcrição: Wimerson Gomes
Tradução: Marcelo Nicolodi

“As Quatro Nobres Verdades
são o verdadeiro fundamento
dos ensinamentos budistas”.

De fato, se as Quatro Nobres Verdades não forem compreendidas e a sua realidade não for experienciada pessoalmente, é impossível praticar o Darma do Buda. Por isso, eu sempre fico muito feliz quando tenho a oportunidade de ensiná-las.
De modo geral, acredito que todas as principais religiões do mundo têm o potencial de servir a humanidade e ajudar a desenvolver bons seres humanos. Por “bons” eu quero dizer que eles têm um coração bom e compassivo. É por isso que eu sempre afirmo que é melhor que cada um siga sua religião tradicional, pois ao trocar de religião podem ser encontradas dificuldades emocionais ou intelectuais.

Entretanto, para aqueles que realmente sentem que a sua religião tradicional não é efetiva, então talvez a forma budista de explicar as coisas possa fazer sentido. Talvez nestes casos seja bom seguir o budismo, eu acho que é melhor seguir algum treinamento religioso do que não ter nenhum. Se você realmente se sente atraído pelo enfoque budista e pelo caminho budista para treinar a mente, é importante refletir cuidadosamente e, apenas quando você sentir que o budismo realmente serve para você, deve adotá-lo como sua religião.

Há outro ponto importante aqui. Às vezes, a natureza humana é tal que, para justificar a adoção de uma nova religião, podemos criticar nossa religião anterior e afirmar que ela é inadequada. Isso não deveria acontecer. Primeiro, apesar da sua religião anterior não ser efetiva para você, isto não significa que ela não será de valor para milhões de outras pessoas.

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Como devemos respeitar todos os seres humanos, também devemos respeitar aqueles que seguem caminhos religiosos diferentes. Para algumas pessoas, é claro que o enfoque cristão é mais efetivo que o enfoque budista, depende da disposição mental do indivíduo. Devemos, portanto, apreciar o potencial de cada religião, e respeitar aqueles que as seguem.

A segunda razão é que estamos nos tornando agora conscientes das diversas tradições religiosas do mundo, e existe a tentativa de promoção da harmonia entre elas. Eu acho que já existem muitos círculos inter-religiosos e a ideia do pluralismo religioso está criando raízes. Este é um sinal muito encorajador.

Eu quis começar com estes pontos porque quando explico as Quatro Nobres Verdades, tenho que argumentar que o caminho budista é o melhor! Se vocês me perguntarem qual é a melhor religião para mim, pessoalmente, minha resposta será o budismo, sem a menor hesitação. Mas isso não significa que o budismo é a melhor para todos, certamente não. Portanto, durante a minha explicação, quando eu disser que o caminho budista é o melhor, por favor, não me interpretem mal.

Também gostaria de enfatizar que quando digo que todas as religiões têm um grande potencial, não estou sendo apenas polido ou diplomático. Tenho encontrado praticantes verdadeiros de outras tradições. Tenho percebido uma amorosidade legítima e vigorosa em suas mentes. Minha conclusão é de que todas estas religiões têm o potencial para desenvolver um bom coração.

O ponto principal não é se gostamos ou não da filosofia de outras religiões. Para os não-budistas, as ideias de nirvana e de uma próxima vida parecem não ter sentido. Do mesmo modo, para os budistas, a ideia de um Deus criador às vezes parece não ter sentido. Mas estas coisas não importam, podemos nos livrar delas. O ponto é que através destas diferentes tradições uma pessoa muito negativa pode ser transformada em uma boa pessoa. Esse é o objetivo da religião – e esse é o efeito real. Apenas isso já é o suficiente para respeitar outras religiões.

Tenho ainda um último ponto. Como talvez vocês saibam, o Buda ensinou de muitas diferentes formas, e o budismo possui uma variedade de sistemas filosóficos. Se o Buda ensinou de muitas formas diferentes, poderia parecer que ele mesmo não estava muito certo de como as coisas são! Mas este não é o caso, o Buda sabia das diferentes disposições mentais dos seus seguidores. Portanto, até mesmo o Buda Sakyamuni respeitou as inclinações e direitos dos indivíduos. Um ensinamento pode ser muito profundo, mas se ele não for adequado para uma certa pessoa, então para que explicá-lo?

Princípios Básicos do Budismo

Sempre que introduzo os ensinamentos budistas, faço questão de apresentá-los em termos de dois princípios básicos. O primeiro é a natureza interdependente da realidade. Toda a filosofia budista consiste na compreensão desta verdade básica. O segundo princípio é o da não violência, que é a ação tomada por um praticante budista que compreende a natureza interdependente da realidade. Não violência significa, em essência, que devemos fazer o nosso melhor para ajudar os outros, e, se possível, deveríamos pelo menos evitar prejudicá-los. Antes de explicar as Quatro Nobres Verdades em detalhes, eu proponho esboçar estes princípios como introdução.

Tomando Refúgio e Gerando Bodichita

Primeiramente, vou introduzir estes princípios na forma budista tradicional. Tecnicamente, tornamo-nos budistas quando decidimos tomar Refúgio nas Três Joias e quando geramos bodicita, que é definida como compaixão, a mente altruísta ou nosso bom coração. As Três Joias do Budismo são: o Buda, o Darma (seus ensinamentos) e a Sanga (comunidade de praticantes). A ideia de ajudar os outros é um ponto claro e central de refúgio e bodicita. A prática de geração de bodicita implica no compromisso com atividades que objetivem ajudar os outros; ao passo que a prática de tomar Refúgio é fundamental para o praticante guiar sua vida através de um caminho ético e disciplinado. A não ser que tenhamos uma boa experiência na prática de tomar Refúgio nas Três Joias, não seremos capazes de atingir um alto nível de realização de bodicita. É por esta razão que a diferenciação entre um praticante budista e um não-budista é feita tomando como base o fato do indivíduo ter tomado Refúgio nas Três Joias.

Entretanto, quando falamos sobre tomar Refúgio nas Três Joias, não deveríamos imaginar que isto simplesmente envolva uma cerimônia na qual tomamos formalmente refúgio através de um mestre. Existe uma cerimônia budista formal, mas a cerimônia não é o que importa. O ponto essencial é que como resultado de sua própria reflexão, mesmo sem um mestre, o indivíduo se torne completamente convencido da validade do Buda, Darma e Sanga como objetos de refúgio último, e é aí, então, que ele se torna realmente um budista. Entregar o seu bem-estar espiritual às Três Joias é o verdadeiro significado de tomar Refúgio. Por outro lado, se houver qualquer dúvida ou apreensão na mente sobre a validade do Buda, Darma e Sanga como objetos de refúgio último, mesmo que participe de uma cerimônia de refúgio, a dúvida não permitirá que se torne um verdadeiro budista, pelo menos por enquanto. Portanto, é importante compreender o que são estes objetos de refúgio.

Quando falamos sobre o Buda, neste contexto, não deveríamos restringir nossa compreensão da palavra ao personagem histórico que viveu na Índia, mas sim sobre a nossa compreensão de que o estado búdico deveria se dar a partir de níveis de realização espiritual. Deveríamos compreender que o estado búdico é um estado espiritual do ser. É por isso que as escrituras budistas citam Budas do passado, do presente e do futuro.

Agora, a próxima pergunta é: de onde vem um Buda? Como um ser se torna completamente iluminado? Quando refletimos sobre o estado búdico, necessariamente perguntamos a nós mesmos se é possível para um indivíduo atingir tal estado, tornar-se um ser iluminado, um Buda. Neste ponto, descobrimos que a chave reside em compreender a natureza do Darma.

Se o Darma existe, então certamente a Sanga também existirá – a Sanga são aqueles que seguem o caminho do Darma e que perceberam e realizaram a sua verdade. Se existem membros da Sanga que alcançaram estados espirituais em que pelo menos os níveis grosseiros de negatividade e emoções aflitivas foram superados, então podemos visualizar a possibilidade de atingir a liberação total da negatividade e das emoções aflitivas. Este é o chamado estado búdico.

No contexto apresentado, acho que devemos fazer uma distinção entre o emprego do termo “Darma” como genérico e o seu uso na estrutura específica do refúgio. Genericamente, ele se refere ao Darma das escrituras – os ensinamentos do Buda e as percepções espirituais baseadas na prática destes ensinamentos. Em relação ao refúgio existem dois aspectos: um é o caminho que leva à cessação do sofrimento e das emoções aflitivas, e o outro é a própria cessação. Apenas através da compreensão da verdadeira cessação e do caminho que leva à cessação é que podemos ter alguma ideia do que é o estado de liberação.

Originação Dependente

Nos sutras, o Buda afirmou diversas vezes que aquele que percebe a natureza interdependente da realidade vê o Darma; e aquele que vê o Darma, vê o Buda. Acreditamos que existem três níveis de significado aqui.

Primeiramente, a compreensão do princípio da originação interdependente, que é comum a todas as escolas budistas, explica este princípio em termos de dependência causal. Este princípio propõe que todas as coisas condicionadas e eventos no universo existem apenas como resultado das várias causas e condições. Isto é significativo por excluir duas possibilidades. Uma é de que as coisas podem surgir do nada, sem causas ou condições, e a segunda é de que as coisas surgem devido a um criador transcendente. As duas possibilidades são negadas.

Em segundo lugar, podemos compreender o princípio da originação dependente em termos de parte e do todo. Todos os objetos materiais podem ser descritos em termos de como as partes compõem o todo, e de como a própria ideia de todo depende da existência das partes. Tal dependência existe claramente no mundo físico. Do mesmo modo, as entidades não físicas, como a consciência, podem ser consideradas em termos de suas sequências temporais: a ideia de sua totalidade é baseada nas sequências sucessivas que compõem um continuum. Assim, quando analisamos o universo nestes termos, não apenas vemos cada coisa condicionada como originada dependentemente, mas também compreendemos que todo o mundo fenomênico surge de acordo com o princípio da originação dependente.

Existe um terceiro aspecto no significado da originação dependente, o de que todas as coisas e eventos surgem apenas como resultado da simples aglomeração dos múltiplos fatores que os compõem. Quando analisamos as coisas mentalmente, decompondo-as em seus elementos constituintes, chegamos à compreensão de que qualquer coisa vem à existência apenas na dependência de outros fatores. Portanto, não existe nada que possua identidade intrínseca ou independente isoladamente. Qualquer identidade que damos às coisas depende da interação entre a nossa percepção e a realidade. Porém, isto não significa que as coisas não existem. O budismo não é niilista. As coisas existem, mas não possuem uma realidade autônoma, independente.

Voltemos agora à afirmação do Buda, quando ele disse que compreender a originação dependente leva à compreensão do Darma, que correspondem aos três diferentes níveis de significado da originação dependente.

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Primeiramente, podemos relacionar o Darma ao primeiro nível de significado da originação dependente, que é a dependência causal. Através da compreensão profunda da natureza interdependente da realidade em termos de dependência causal, podemos perceber os efeitos do que chamamos carma, isto é, a lei cármica de causa e efeito que governa as ações humanas. Esta lei explica como experiências de sofrimento surgem como resultado de ações, pensamentos e comportamentos negativos, e como experiências desejáveis, tal como a alegria, surgem como resultado de causas e condições que correspondem àquele resultado – ações, emoções e pensamentos positivos.

Desenvolver uma compreensão profunda da originação dependente em termos de dependência causal nos leva a uma percepção fundamental da natureza da realidade. Quando percebemos que tudo que experienciamos surge como resultado da interação e junção de causas e condições, nossa visão muda completamente. Nossa perspectiva de nossas próprias experiências internas e do mundo todo muda à medida que começamos a ver tudo em termos deste princípio causal. Uma vez que tivermos desenvolvido esta visão geral, seremos capazes de introduzir nossa compreensão do carma dentro desta estrutura, visto que as leis cármicas são um caso particular deste princípio causal superior genérico.

“A lei cármica de causa e efeito que governa as ações humanas explica como experiências de sofrimento surgem como resultado de ações, pensamentos e comportamentos negativos, e como experiências desejáveis, tal como a alegria, surgem como resultado de causas e condições que correspondem àquele resultado – ações, emoções e pensamentos positivos.”

Da mesma forma, quando tivermos uma compreensão profunda das outras duas dimensões da originação dependente – a dependência das partes e do todo, e a interdependência entre percepção e existência – nossa visão se ampliará, e poderemos perceber que existe uma disparidade entre a forma com que as coisas aparecem para nós e a forma como elas realmente são. O que aparece como um tipo de realidade objetiva e autônoma no mundo externo não está de acordo com a verdadeira natureza da realidade.

Quando pudermos apreciar esta disparidade fundamental entre aparência e realidade, alcançaremos a percepção de como nossas emoções funcionam e como reagimos aos eventos e objetos. Por trás das fortes respostas emocionais que temos frente às situações, podemos perceber que existe uma suposição de que algum tipo de realidade independente existe no mundo externo. Assim, desenvolvemos a percepção das várias funções da mente e dos diferentes níveis de consciência em nosso interior. Também crescemos para compreender que, apesar de certos tipos de estados mentais parecerem tão vividos, na verdade eles são apenas ilusões. Eles não possuem uma existência real da forma que pensamos que eles possuem.

É através deste tipo de reflexão e análise que ganharemos a compreensão do que, em linguagem técnica budista, chamamos de “origem do sofrimento”, em outras palavras, das experiências emocionais que levam à confusão e que afligem a mente. Quando esta percepção se combina com a compreensão mais sutil da natureza interdependente da realidade, conquistamos a percepção do que chamamos “a natureza vazia da realidade”, cujo significado é de que cada evento ou objeto surge apenas como combinação de muitos fatores, e não possui existência autônoma ou independente.

Nossa compreensão da vacuidade nos ajudará a entender que quaisquer ideias baseadas em uma visão contrária, de que as coisas existem intrínseca e independentemente, são errôneas.

Estas são compreensões errôneas da natureza da realidade. Percebemos que elas não possuem fundamento válido, seja na realidade ou em nossa própria experiência, enquanto que a natureza vazia da realidade possui fundamento válido tanto na apreciação lógica quanto em nossa experiência. Gradualmente, chegamos ao ponto em que sentimos que é possível atingir um estado de conhecimento em que tal incompreensão seja eliminada totalmente, e este estado é a cessação.

Em sua obra “Palavras Claras”, Chandrakirti afirma que se for possível postular a vacuidade, então é possível postular o mundo originado dependentemente. Se for possível postular este mundo, então pode-se postular a relação causal entre o sofrimento e sua origem. Ao aceitarmos isto, também podemos conceber e acessar a possibilidade de existir um fim para o sofrimento. Se pudermos fazer isto, argumenta Chandrakirti, então também poderemos aceitar que é possível para os indivíduos perceberem e realizarem aquele estado. E finalmente, por consequência, podemos conceber que existem Budas que atingiram a perfeição deste estado de cessação.

O ponto principal é que através do desenvolvimento de uma compreensão profunda do princípio da originação interdependente, podemos compreender as duas verdades das origens sutis do sofrimento e da cessação. Este é o significado da afirmação do Buda, de que através da compreensão da originação dependente podemos chegar ao Darma. Desta forma, podemos visualizar a verdade da cessação e o caminho que leva à cessação. Ao compreendermos estes princípios, podemos conceber que é possível para os membros da Sanga entender e realizar estes estados, e para os Budas é possível levá-los à perfeição. Finalmente, chegamos à compreensão do verdadeiro significado do estado búdico.

As Duas Verdades

Para desenvolver uma compreensão clara das Quatro Nobres Verdades, é também necessário familiarizar-se com as Duas Verdades: a verdade convencional ou relativa e a verdade última.

Como podemos desenvolver uma compreensão pessoal da doutrina fundamental budista das Duas Verdades? Ao analisar nosso mundo de experiências diárias, observamos o que é conhecido como samvaharastava, o mundo da realidade convencional no qual o princípio causal opera. Se aceitarmos a realidade deste mundo como convencional, então podemos aceitar a natureza vazia deste mundo, o que segundo o budismo é a verdade última, paramarthasatva. A relação entre estes dois aspectos de realidade é muito importante. O mundo das aparências é utilizado não apenas em contraste ou oposição ao mundo da verdade última, mas sim como evidência, a própria base sobre a qual a natureza última da realidade se estabelece.

Apenas quando alcançarmos a compreensão da natureza e da relação entre estas Duas Verdades poderemos compreender completamente o significado das Quatro Nobres Verdades. E quando compreendermos as Quatro Nobres Verdades teremos uma sólida base para desenvolver um bom entendimento do que significa tomar Refúgio nas Três Joias.


Este texto é a introdução do livro “A Simple Path” (Harper Collins Publishers, 2003). Tradução Marcelo Nicolodi.

O texto acima foi publicado originalmente na edição n.15 da revista Bodisatva, em agosto de 2007.


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2 Comentários

  1. Lucas disse:

    Grato por compartilharem. Acho que tem um errinho aqui:

    Princípios Básicos do Budismo
    Sempre que introduzo os ensinamentos budistas, faço questão de apresentá-los em termos de dois princípios básicos. O primeiro é a natureza independente da realidade

    Não seria interdependente

  2. Polliana Zocche disse:

    Arrumado! Obrigada, Lucas!

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