Feirinha, de Irene Medeiros (Reprodução)

“Vamos reencantar o Brasil com a alegria”

Transcrevemos a inspiradora palestra oferecida pelo Prof. Luiz Gonzaga na mesa durante o evento 108 horas de Paz, que aconteceu no CEBB Caminho do Meio (RS)


Por
Revisão: Dirlene Ribeiro Martins
Edição: Janaína Araújo e Dirlene Ribeiro Martins
Transcrição: Audrey Ruggiero Pilli

A vida coletiva dos humanos sempre foi sobre o conhecimento que, aos poucos, vem nos chegando, de que o futuro contém cada vez mais o passado. À medida que vamos evoluindo conhecemos cada vez mais o passado. Coisas que a gente não sabia. Sempre me surpreendo com as novas descobertas do passado.

É como se o passado fosse mudando a cada passo que damos. Além de estarmos construindo o futuro, nós estamos vendo o passado mudar. Mas os humanos sempre foram capazes de produzir ideias e estruturaram suas vidas coletivas. Meu conhecimento sobre esse passado é pequeno, é de referências. Nunca me dediquei a estudar as tribos, as comunidades antigas, mas as vejo referidas em textos com os quais eu trabalho ou naqueles – alguns poucos – de que eu consegui fazer referências nos textos que eu escrevi.

Meu conhecimento também é limitado às sociedades da América Latina, da Europa, da África. Tenho sempre um grande fascínio pelo Oriente. Acho que as coisas lá devem ter ocorrido de maneiras diversas, mas não vou ter tempo… Nem o Islã, o mundo islâmico, também acho que as coisas ocorreram de forma diferente lá, mas não vai dar tempo de estudar árabe para aprender e ler. Então, me contento com a ignorância. É uma fronteira que existe no meu conhecimento.

Mas as sociedades humanas foram constituídas pela solidariedade, pelo amor, pela defesa comum, pela partilha de objetivos comuns. Assim foram surgindo os grupos humanos. As atividades eram baseadas em família, a família toda tinha de produzir sua existência, daí a solidariedade entre as famílias. Foi só assim que conseguimos ultrapassar as grandes dificuldades que se colocaram diante do crescimento da vida humana.

Nós humanos nascemos completamente desprotegidos, sem condições. Um gatinho é mais evoluído do que nós, porque em dois meses ele já se defende, e nós precisamos de muitos anos para sermos capazes de produzir nossa própria vida. No passado, as sociedades funcionavam não para produzir excedente, produzir capital, funcionavam para produzir a vida.

A economia nem era a coisa mais importante do mundo até recentemente. Para vocês terem uma ideia, em Veneza há calçada de mármore. Uma praça calçada de mármore carrara imensa, porque o excedente servia para isso, para embelezar a vida. Não era capital. Hoje, jamais fariam isso. Como gastariam isso para fazer a praça ser marca? Isso é absurdo. Tem de investir no mercado de capital, e isso vai dar não sei quanto em investimentos.

O conhecimento, essa construção nossa, essa produção nossa, nos envolve, nos condiciona e nos determina. Podemos ver que, por exemplo, até 600 anos atrás, nós achávamos que a Terra era o centro do mundo. Vocês têm ideia desse conhecimento do Ptolomeu quanto tempo durou? Durou dezessete séculos. E era óbvio. Estava demonstrado: todos os dias o Sol se põe. Ninguém tinha possibilidade de ter dúvida.

O Darcy Ribeiro faz uma lista, em uns ensaios dele, de uma quantidade de coisas que se achava que eram verdades absolutas e que não eram. Dentre as quais, por exemplo, que os pobres só conseguiam sobreviver por causa da bondade dos ricos. Se não fosse a bondade dos ricos, eles estavam ferrados – não existiriam pobres, só existiriam ricos.

Então, se convencia a sociedade de certas coisas. Depois, a vida era só um processo de passagem para o encontro que viria depois. A verdadeira vida era depois. Aqui nós estávamos só no vale de lágrimas. Tínhamos de fazer uma certa travessia, o objetivo era lá.

Imaginem, no mesmo período pequeno, de menos de um século, nós vamos concluir, algumas pessoas vão concluir, que era o Sol o centro. Que Deus não é o centro da atividade humana, mas que é o homem o centro da atividade humana. Que nós tínhamos de submeter tudo ao nosso conhecimento, à nossa razão, e vão ser construídas as grandes construções da cosmologia, as grandes construções da filosofia sobre esses princípios, da física… E sabe o que aconteceu? Todos começaram a acreditar nisso, que era absolutamente improvável. Ninguém tinha condição de compreender que nós estávamos andando em torno do Sol, mas acreditaram, se encantaram com isso.

Depois o conhecimento foi mostrando que era assim mesmo, mas as pessoas começaram a acreditar e compraram essa ideia.

E compraram a ideia de que o objetivo da vida era o êxito individual. Que a razão e a natureza e tudo estavam à nossa disposição para usarmos para o nosso êxito pessoal.

Então, valia tudo. Tudo passou a ser legítimo, desde que racional, desde que produzisse o êxito pessoal. E ainda veio Lutero e o povo dele para falar o seguinte: “O êxito pessoal é a graça divina, é a demonstração da graça. Então está garantido que quem tiver êxito está abençoado”. Isso foi construindo o nosso mundo. O mundo no qual todas as outras coisas do passado perderam significado, e o significado passou a ser o mundo organizado em torno da economia, para a produção de riquezas.

Arte de Toninho de Souza (Reprodução)

Hoje, nossa geração – eu vou pular aqui, depois aprofundamos – é a primeira que está podendo fazer as contas sobre esses 500 anos de loucura. Nós sabemos que isso deu errado, que estamos destruindo nosso planeta, o único que a gente tem. As condições estão destruindo o mar, o oxigênio, as plantas da vida. Agora, enquanto a gente está falando aqui, está morrendo a vida.

O processo é de destruição da vida, sistemático. E nós caímos nessa armadilha. E é uma armadilha difícil de sair, porque produzir esse é nosso único modo de sobrevivência. Ou a gente entra nessa fábrica de produzir a morte ou estamos ferrados. Não conseguimos sobreviver, não conseguimos um lugar na sociedade, uma renda, reconhecimento social, carteirinhas, cartões de crédito, que são os novos cartões de visita. Se você apresenta o cartão de crédito, já sabem quem você é. Então, somos obrigados a nos submeter a isso.

Fomos encantados com essas ideias e não conseguimos ainda sair desse encantamento. Esse é o drama do cidadão da nossa espécie humana neste momento, e isso terminou unificando Ocidente e Oriente, que eram tão distintos até 500 anos atrás, de ideias, de concepções. Entrou todo mundo nessa canoa.

Não estamos conseguindo encontrar um modo de dissolver isso. E existe esse modo. Nós somos herdeiros desse modo. Porque esse modo levou embora o mundo antigo em pouquíssimo tempo, então, é possível um novo.

Um canteiro de obras

Nas minhas pesquisas, fui daqueles que tiveram a felicidade – a sorte ou azar, depende de que lado vemos – de ter uma formação regular, acadêmica, graduação, doutorado, pós-doutorado, e de ensinar em grandes instituições universitárias. Comecei em Milão, onde ensinei cinco por anos, assim que me doutorei lá. Depois veio a PUC do Rio, e depois vieram outras no Chile.

Numa dessas pesquisas, o Itamaraty pediu para apresentar as relações entre Norte-Sul e a distribuição dos países. Foram surgindo índices novos, qualidade de vida e tal, mas não tinha ainda essa formulação. E isso me deixou perplexo: como nosso conhecimento não era capaz de decidir ou recomendar quais países o Itamaraty deveria considerar Sul e quais países deveria considerar Norte? Que tipo de relação deveria ter entre os do Sul e os outros do Norte? Que tipo de relação estávamos tendo e o que deveria mudar – que era a finalidade da pesquisa?

Fiquei uns seis meses lendo e não achava respostas. Pensei: “Vou pegar um país do Sul fácil de conhecer, que é o meu, que eu conheço, sei as coisas que foram escritas sobre ele, então, eu vou em cima dele”.

Fui em cima do Brasil, relendo as coisas, e não achava. Nas nossas diversas correntes, como nos classificam, nossas diversas vertentes teóricas: o subdesenvolvido, o pré-capitalista, o semifeudal, o semicapitalista. Nós somos “em emergência”. Um país emergente – parece que a gente está saindo de dentro do mar. Como emergente? Nós existimos há 500 anos. Todos nós emergimos como unidade política há 500 anos.

Então, de repente, uma luz me iluminou. Eu não sei de onde ela veio. Vim meditando no avião. Acho que podia ter sido porque, com 16 anos, eu vi a inauguração de Brasília, uns irmãos meus trabalharam em Brasília. Eles tinham uma pequena empresa de transportes, trabalhavam com caminhão, transportando. Então, é uma coisa normal ver cidades se fundando, fazer cidades.

Construção do Palácio da Alvorada (Acervo Público, Reprodução)

Uma luz que me veio foi lendo dois livros: um do Celso Furtado e outro do Joaquim Nabuco. Por acaso, li em seguida e tive a mesma luz. Eu pensei o seguinte: “Nossa, isso aqui foi um canteiro de obra. Isso aqui foi uma empresa”. Mas pensei: “Como foi um canteiro de obra, como foi uma empresa, se não se colonizava assim?”.

Se colonizava invadindo um país, dominando os povos, cobrando impostos, se apropriando de território, se apropriando de riquezas. Não se colonizava fundando empresas. Tirei isso da cabeça, mas aquilo ficou, e eu comecei a desenvolver a ideia de que aqui seria uma empresa, foram construindo uma empresa aqui.

Aos poucos, fui revendo quais características dessa empresa foi construída aqui. Era uma empresa moderna. Moderna porque foi inventada tecnologia para construir a empresa Brasil. Eu fui construindo, na minha cabeça, o fato de que nosso território foi uma experiência diferente. Portugal era pequenininho e muito avançado. Era o país mais avançado do mundo, mas não tinha população, tinha menos de 1 milhão de habitantes. Não podia colonizar um gigante desses, não tinha chance.

No entanto, o que eles fizeram? Pegaram este território e privatizaram. Foi a inovação chocante. Nesse período todo, só um historiador brasileiro pôde ler os documentos da época. Varnhagen, que era o Visconde de Porto Seguro, não viu porque não queria ver. Ele era amicíssimo do imperador, era um visconde, era da nobreza portuguesa. Então, ele não nos conta nada de como foram os estudos para se chegar a essa conclusão de: “Vamos pegar esse território, vamos privatizar”. Nos livros de história fala: “Para homens de cabedais”.

Não tinha ninguém em condição de fazer aqui a mais poderosa agroindústria do momento, que foi a mais poderosa agroindústria durante três séculos. Não eram homens de cabedais. Fui vendo: eram associações capitalistas. Os italianos, por exemplo, os banqueiros Médicis, que eram os poderosos, enviaram um funcionário deles, Américo Vespúcio. Ele era da nobreza de lá, era um cientista, era aluno do Toscanelli e tinha participado da representação dos Médicis e dos banqueiros em Paris.

Depois vi que se associaram outros capitais e que daí surgiram os grandes consórcios que disputaram as privatizações do território brasileiro. E esses consórcios que arremataram devem ter gratificado a Coroa, mas a gente não sabe quanto, porque todos os papéis queimaram e desapareceram no incêndio na Torre do Tombo, em Lisboa, onde eram guardados, onde as coisas eram tombadas. Então, sabemos pouca coisa.

Eu tive que reconstruir as associações que deram origem. Então vi o seguinte: para vocês terem ideia, não existia usina de açúcar no mundo. Existiam pequenas coisas, quase de quintal, para produzir um pouco de açúcar. Açúcar era um produto raríssimo, constava até de testamentos de reis e rainhas: “Açúcar vai pra fulano”.

Então, de tão difícil que era obter, foram projetadas usinas capazes de produzir milhares de toneladas por ano, e muitas usinas. Na metade de 1500-1552, uns vinte anos depois da distribuição das capitanias, havia no Brasil mais de cem engenhos, segundo Celso Furtado, que pôde estudar em Cambrigde e nos conta no livro Formação Econômica do Brasil.

Obra: O Espírito criador do povo nordestino de Flavio Tavares (Reprodução)

Mas o açúcar não podia ser produzido no Brasil, porque não tinham a matéria-prima. Eles tiveram de importar a cana, construir canaviais maiores do que em Portugal. Os canaviais de Pernambuco e da Bahia eram imensos, de uma planta importada. E conseguiram fazer isso: trazer essa complexidade toda, essas caldeiras, os parafusos, as engrenagens, trazerem tudo naqueles pequenos navios.

E tinham de trazer porque, se quebrava parafuso, eles tinham de trazer também a matéria-prima para fazer o parafuso, o ferro, e tinham de trazer o ferreiro, tinham de trazer quem soubesse fazer o parafuso. Tinham uma equipe imensa, o pessoal técnico das usinas de açúcar, que, ao contrário do que a gente pode imaginar, eram de uma complexidade imensa.

Um jesuíta produziu um livro chamado Opulência e Riqueza do Brasil, no qual ele, por páginas e páginas, faz a lista das funções que eram necessárias para funcionar um engenho, pra dizer que “só quem tem muita grana vai fazer engenho, não experimentem!”. Essa era a finalidade do texto dele. E fui vendo que a única finalidade dessa privatização tinha sido a produção de lucros, de resultados econômicos.

Pensei: “Poxa, mas isso aqui é uma empresa moderna. Então, o Brasil já nasceu como uma empresa moderna, com a finalidade de produzir lucro para se levar para fora. E com associações de capitalistas europeus de tudo quanto é lugar para poder fazer isso. Será que é verdade?”. Então eu vi que era verdade na história.

Em 1580, a coroa portuguesa, por um problema dinástico, vai cair nas mãos da coroa espanhola, da Espanha. De 1580 a 1640 fomos colônia espanhola. Os espanhóis estavam afinados com o papa e contra os protestantes e os infiéis. Os espanhóis estavam patrocinando a inquisição. Os espanhóis significavam o atraso, naquele momento. O que aconteceu? Os capitalistas não toparam. Os que compraram os territórios com as privatizações, os que ganharam as concessões, não toparam. Então, eles se juntaram e fizeram a empresa, armaram um exército, vieram e tomaram as usinas que eram deles. Tomaram de Portugal.

Chamamos isso de Invasão Holandesa, o que é uma sacanagem. Não existia a Holanda. A Holanda vai existir 1640 e tantos anos depois dos Tratados de Vestfália. Foram empresas. O Maurício de Nassau era um gerente contratado de empresa. Era um príncipe: “Ótimo, vamos contratar um príncipe, uma pessoa capaz de nos dar algum respaldo”. Mas não tinha nada. Não existia Holanda. A Holanda estava em guerra contra a Espanha nessa época, inclusive, por isso eles foram para lá.

E sabe por que estava em guerra? Porque o povo dos Países Baixos não toparam a inquisição, não concordaram com o atraso, eles permitiam a liberdade religiosa, a autonomia de cada cidade. Não existia Holanda, cada cidade era autônoma. Qualquer negociação tinha de passar por todas elas. Um historiador brasileiro, Evaldo Cabral de Melo, escreveu um livro chamado O Negócio Brasil.

Meu livro estava praticamente pronto e, quando eu li aquilo, aliviei. Falei: “Olha, vai rolar”. Que é como o Brasil foi tratado, vendido e comprado, que era o mesmo que eu achava que era. E ele também, pesquisando no canto dele, foi chegando a essa mesma conclusão, e me deu um imenso conforto.

Nós nascemos como uma empresa moderna. Nós somos o filho primogênito dessa loucura que institui a economia como o significado da vida, subordinando todas as atividades da existência à economia e, dentro disso, nós viramos um canteiro de obras.

E dentro desses canteiros de obra, o povo foi colocado nas respectivas funções. Alojamento dos engenheiros, alojamento dos peões, alojamento não sei de que, foi isso que foi acontecendo. Só que, aos peões, aos operários, aos trabalhadores, não era reconhecida a condição de humanos. Aos indígenas, inventaram o questionamento de se teriam alma ou não, para poder liberar – e essa discussão acaba depois que os indígenas tinham quase acabado –, e os escravos vinham como propriedades, eram peças.

Então, existia a economia, mas não existia povo. Existia uma economia poderosíssima. O Brasil, com essa produção dessa agroindústria poderosa – não fiz essa conta ainda, mas o PIB deve ter ocupado o primeiro lugar do mundo durante mais de um século. E o que isso resultava? Não tinha povo.

A administração colonial, aquele que vai virar esse nosso Estado, que função tinha? Tinha a função de fazer com que o negócio desse certo. A finalidade da política no Brasil é que o negócio dê certo para garantir os investimentos e levar os lucros embora. É o que nós estamos vendo hoje. Continua igual. O Estado brasileiro voltou à sua verdadeira função, que é garantir que os negócios deem certo e que o povo não exista.

Bem, aí têm muitas conclusões que poderíamos chegar, mas a verdade é que, na hora que me veio essa luz, eu escrevi um pequeno texto que mudou minha vida, mas que nunca foi publicado. Ficou só entre amigos meus. Mudou minha vida porque eu fui convidado a fazer uma porção de outras coisas depois, que deram no meu modo de viver.

Falei que éramos uma empresa moderna, aí eu faço uma lista de tudo o que é modernidade e mostro que nós já estávamos plenamente exprimindo o que era. Bem, eu pensei que eu tinha saído de uma bolha de conhecimento. Eu tinha saído da cosmologia do Ptolomeu para poder ver. Eu tinha visto uma verdade invisível. Existem as realidades verdadeiras que são invisíveis. Eu tive a graça de ver uma e não acreditei.

Eu comecei a ver o seguinte: “Eu devo ter lido isso em algum lugar”. Eu fiquei uns dez anos lendo tudo o que eu já tinha relido, ouvido, perguntado, para saber se eu tinha tirando isso de algum lugar. Depois eu vi e concluí que não. Dez ou doze anos depois, eu fiz uma viagem à Itália, conversei com meus antigos mestres, que já estavam aposentados, e eles ficaram encantados. Falaram: “Luiz, não existe, eu nunca te ensinei isso. Nunca li isso em lugar nenhum”. Aí eu voltei aliviado, mas me faltou coragem. Me faltou coragem pela tradição acadêmica que eu tinha, faltou coragem de dizer: “Está tudo errado. A gente é uma empresa moderna e o negócio é outra coisa”. Eu fiquei indeciso. Aí um dia me convidaram para escrever um texto sobre a condição humana e comecei a ver como os humanos eram, como estavam distribuídos. Comecei do início. Não comecei com os indicadores, comecei com os humanos.

Nós somos tão diversos, vivemos em condições tão diferentes, somos uns bichos engraçados. Por exemplo, vivemos aqui nesta região, nós podemos estar vivendo completamente diferente de um pessoal que está a um quilômetro. Nenhum bicho é assim. Só nós! Nenhum bicho pode ter tudo para comer e o outro não ter, ficar olhando aquele comer. Para poder comer tem de roubar dele. Não é assim. Eles disputam, têm uma disputa normal. Os bichos não se diferenciam como nós, e nós somos os inteligentes! Como pode?

Nós temos a nossa vida, o nosso planeta, nós estamos destruindo ele. Chegamos a essa situação em que somos obrigados a destruir para sobreviver. Olhem que armadilha terrível! Isso é a armadilha de um suicídio social, quer dizer, como a única possibilidade de vida é a produção da morte, então, você está se suicidando.

À medida que eu fui desenvolvendo – isso é um capítulo do meu livro, a fundação sobre a condição humana –, eu comecei a ver que o Brasil começou essa loucura. Não é que ele começou, ele foi o primeiro exemplo histórico. Nós somos filhos primogênitos dessa loucura. Então eu falei: “Agora eu vou e pronto”. Escrevi em 2011. No início de 2012, estava tudo prontinho.

Eu dirigia um grupo de estudos em Petrópolis e resolvi oferecer uns capítulos para leitura desse grupo de estudos. Foi a coisa mais importante que eu podia ter feito. Até porque, um desses capítulos veio parar na mão do Lama Padma Samten, enviado por não sei quem, e daí nasceu uma amizade imensa e uma admiração imensa que eu tenho por ele.

A coragem chegou e publiquei o livro. Consegui ultrapassar essa bolha e propor uma outra coisa, outro modo de entendimento do nosso país e da vida social no nosso país. Não sei, acho que foi só uma primeira olhada, outras pessoas verão melhor e vão desenvolver mais. Foi só uma saída, um encontro com a verdade invisível. O que eu posso dar de testemunho aqui é que vamos olhar. Dependendo do olhar, nós vamos encontrar o estalo pra sair desse estranho domínio da nossa consciência sobre nós mesmos, que está nos levando a uma tragédia social infinita.

reencantar o brasil

Tia Maria do Jongo da Serrinha (Madureira, RJ), a alegria em pessoa (Reprodução)

Alegria, uma força misteriosa

Temos de construir o que nós todos sempre sonhamos – uma harmonia, uma vida alegre, feliz. O planeta tem condição, mesmo com sete bilhões de pessoas, tem condição até para mais. Não tem de haver essa preocupação com o número que nós somos. Isso a gente sempre regula, a natureza regula, o número de cachorros, de gatos, de coisas. Não vai existir excesso de gatos. Os gatos não vão tomar o planeta Terra, nem os cachorros, nem os elefantes, nem os leões.

Nós temos a possibilidade de viver essa vida que a gente sonha, de criar uma harmonia na vida social, de reencantar uma vida social. Mas para isso temos de ultrapassar, ser capaz de inventar esse encantamento, e nós estamos com dificuldade disso. Porque estão se afirmando, cada vez mais, outras coisas. Está se afirmando a intolerância, está se afirmando a violência institucionalizada e de todos os lados, de todas as partes, de todos os atores. A obtusidade, a restrição.

Então, eu sou daqueles que acredita que a gente possa sair disso, e convido vocês a “sairmos juntos”, aqui no Brasil, a podermos ultrapassar e fazer desta empresa, que dura há 500 anos, uma sociedade humana. Nós somos mestiços, e têm umas coisas importantes, e é com isso que eu vou concluir. Esse processo todo teve duas coisas que não eram para vender. As coisas que eram pra vender – o açúcar, o café, o cacau, o minério, o ouro –, tudo isso foi vendido e se transformou em dinheiro para os outros, ficou aqui um pedacinho só. Mas a história humana tem surpresas e belezas no meio das tragédias. Esse processo fez nascer o primeiro povo mundial.

A gente pensa que os africanos são todos um. Não! Os africanos do norte da África são diferentes dos do sul, são diferentes dos do centro, são diferentes dos do Ocidente. A África Oriental é diferente da África Ocidental. É um mundo. E os indígenas também são muitas etnias. Hoje já tem trezentas e tantas etnias, duzentas e tantas línguas, imagina então naquela época. E depois os europeus vieram. E foi juntando, foi juntando, vieram os asiáticos, e mais recentemente os italianos, alemães e outros, mas não conta. Nós já tínhamos nos formado como etnia.

Em muitos lugares, as etnias, os povos do mundo, se encontraram, mas só aqui eles se misturaram. Pelo poder e pelo tesão da mistura. Aqui no Brasil é normal. A diferença é tesuda, dá tesão, não bloqueia. Esse é um dado cultural nosso, a favor ou contra, alguém pode ser diferente, mas é assim. E esse povo foi se misturando e continua se misturando. Continuamos.

Se, um dia, os povos do mundo todo se encontrarem e vier a existir só uma população terrestre, ela vai ser igual à população brasileira.

Esse povo também produziu uma coisa que não era pra vender, era só pra ele mesmo, só para o deleite, para o prazer dele, que produziu um jeito de olhar, um jeito de ficar alegre, um jeito de namorar, um jeito de falar, um jeito de comer, e foi nascendo uma cultura de gente de tudo quanto é lugar do mundo.

Imaginem numa senzala, como era uma senzala, com africano do oriente, do ocidente, do norte, do sul, indígenas… E todo mundo ali amarrado, trabalhava amarrado. E de noite, só de estar vivo, era uma alegria: sobreviveram. Tanto que nós temos uma alegria explosiva, é a alegria de estar sobrevivendo.

Nos outros lugares, os povos já sabem que vão sobreviver. A alegria da sobrevivência é uma coisa brasileira. Oswald de Andrade até falou o seguinte no Manifesto Pau-Brasil: “A alegria é a prova dos nove”.

Ser alegre na Suécia é legal, mas ser alegre no Brasil é uma força misteriosa. É uma força que sai e que ninguém segura. A alegria do morro, do samba, do berimbau, da capoeira, é essa alegria que vai e que está contagiando o mundo. Essa alegria foi capaz de produzir uma cultura, e uma cultura que não era igual a outras culturas. Não era uma cultura ligada a um território, não era cultura ligada a uma etnia. Era uma cultura desterritorializada, era uma cultura que não tinha fidelidade étnica, era uma cultura mundial.

Eu poderia dar aqui milhares de exemplos da universalidade da cultura brasileira, mas cito só a música. A música brasileira não é só aquela que é mundial. Os americanos acham que a bossa-nova é deles e se surpreenderam um dia quando eu falei que a bossa-nova é brasileira. “Bossa-nova brasileira? Mas não foi o Frank Sinatra?” Eles se identificam tanto que acham que é deles! Os africanos também acham que a percussão brasileira é deles. Mas eles não têm ela.

Eu vi escola de samba desfilar na Itália, com italianos tocando surdo, tamborim e cantando em português samba-enredo do Rio de Janeiro. Outras pessoas viram a capoeira ou reuniões do santo-daime, ou o que for, o povo cantando em português em uma porção de lugar. Essa cultura é abraçada pelo mundo. O mundo ama a cultura brasileira independente de dinheiro. Nós não controlamos nenhuma mídia mundial. As coisas vão ocorrendo pelo afeto do mundo com a cultura brasileira.

Acho que é uma cultura mundial e, se o mundo vier a ter uma cultura só, a cultura da Terra, ela vai ter muito da cultura brasileira. Então, é isso que me faz ter força para convidar vocês: vamos seguir o que nos ensina nossa cultura e vamos criar um país ou uma sociedade, alegre, harmônica, garantindo a vida. A vida aqui é a coisa mais garantida, porque a natureza foi de uma generosidade incrível com nossa população.

Então fica o convite: Vamos reencantar o Brasil com a alegria, com a felicidade.


Saiba Mais

  • Veja aqui os links do início e final da palestra.
  • Sobre o livro A Refundação do Brasil, confira a resenha feita por Dirlene Ribeiro Martins para a Bodisatva neste link

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