Uma visão budista para reverter o colapso ambiental
Hoje, 5 de junho, celebramos o dia mundial do meio ambiente. Ainda que esta deva ser uma celebração ininterrupta — a celebração da interdependência e da multiplicidade da natureza, que generosamente sustenta todas as dimensões da vida — é simbólico que haja um dia dedicado especialmente a isso. É simbólico porque, nestes tempos, a continuidade da vida como a conhecemos encontra-se na dependência de uma verdadeira revolução — talvez a mais radical revolução da história humana. Pela primeira vez ao longo da nossa existência enquanto espécie, defrontamo-nos com a possibilidade da completa extinção. Pela primeira vez, vemo-nos diante da urgente necessidade de desenraizar nossos hábitos e visões de mundo mais fundacionais.
Por este motivo, hoje, neste dia que é um convite à festa e à revolução, compartilhamos com vocês o texto que abre a seção especial da Bodisatva 31: O tempo da grande virada — que se debruça sobre a temática da crise ambiental. Este texto se engaja num processo de honesto desnudamento da nossa atual condição e apresenta a visão de Joanna Macy — ecofilósofa e estudiosa do budismo e da teoria geral de sistemas — sobre a Grande Virada, perspectiva que inspira o próprio título da edição.
No percurso pelo qual nos conduzem as palavras, gradualmente nos despimos dos véus da apatia e da negação até que, subitamente, encontramo-nos frente a frente com a dor mais profunda do mundo. E quando isto acontece nos é dada a chance de ver, ainda que num vislumbre, a potência imensurável que reside no ventre do sofrimento.
“Edward O. Wilson, da Universidade de Harvard, um dos mais respeitados biólogos do mundo, está entre aqueles que prognosticam que o modelo econômico atual irá levar à extinção da metade de todas as espécies do mundo ainda neste século. Para um budista, esta talvez seja a mais grave estatística de todas. O que significa para um Bodisatva, que fez o voto de salvar todos os seres sencientes, deparar-se com o fato de que a maior parte desses mesmos seres está sendo levada à extinção por nossa própria atividade econômica e tecnológica?”
David R. Loy, John Stanley e Gyurme Dorje, em A Buddhist response to the climate emergency
Estamos diante de um cenário inédito. Rios poluídos, plantações pulverizadas com substâncias tóxicas, cidades afetadas por nuvens de fumaça, espécies da flora e da fauna sendo extintas juntamente com a destruição de seus ecossistemas. Mas, ainda que os efeitos do uso de agrotóxico e do desmatamento sejam nefastos, o grande indicador de que estamos vivendo uma era na qual parece ser possível a espécie humana semear sua própria extinção é o aquecimento global e as mudança climáticas que dele decorrem.
O mais recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) reafirma como cientificamente incontestável a influência da ação humana, através do pervasivo uso de combustíveis fósseis, na elevação da temperatura do planeta: a atmosfera e os oceanos têm aquecido, a neve e o gelo têm declinado e o nível do mar tem se elevado graças ao modelo econômico atual, baseado em crescimento a todo custo. A contaminação do ar a partir da queima desenfreada de carvão mineral, gás natural e petróleo desde o início da era industrial está colocando em risco não apenas a vida de outros seres – como descrito na citação de abertura deste texto – mas, ao modificar a temperatura do planeta, gera uma macro cadeia de acontecimentos que pode tornar a Terra um planeta inabitável também para nós, seres humanos.
Para escrever uma das mais completas reportagens sobre as consequências econômica e social desse desequilíbrio ecológico, o jornalista ambiental David Wallace-Wells (New York Magazine) conversou com os mais respeitados climatologistas e pesquisadores em mudanças climáticas do mundo.
Em um texto repleto de dados perturbadores, ele nos fala que, além da já conhecida elevação do nível do mar e da decorrente migração de gigantescas populações que vivem em zonas costeiras, o aumento da temperatura global irá tornar, até o final deste século, vastas regiões da Terra parcial ou completamente inabitáveis.
No Brasil, um grande estudo sobre o impacto do aquecimento global em nosso território (“Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima”), apresentado em 2015, prevê um aumento de 3 graus na média da temperatura do país. O Acordo Climático de Paris, do qual o Brasil está ameaçando sair em um dos vários vai-e-vem do novo governo federal, estabelece como limite um aumento de 1,5 graus Celsius. Com a elevação prevista pelo estudo, o Brasil pode presenciar uma seca inédita na maior parte do território, afetando drasticamente a produção de grãos — a atual base da economia nacional — e causando diminuição da vazão na maior parte dos rios que abastecem a população, o que irá provocar migrações dentro do próprio país, e a isso se acrescentarão todos os problemas sociais relacionados a elas. É fácil ver que a crise ecológica é, de fato, uma crise social, econômica e política.
Diante deste trágico cenário, mestres e praticantes budistas têm se unido para responder à pergunta: o que uma tradição calcada na contemplação da interdependência e na prática da compaixão por todos os seres sencientes pode oferecer para este mundo em crise? Qual é a prática de um verdadeiro Bodisatva diante de uma ameaça à existência dos seres desta magnitude? Juntamente com os budistas, muitas outras tradições religiosas têm levantado as mesmas questões, e o diálogo entre espiritualidade e ambientalismo tem se estreitado e enriquecido.
Em 2015, o Papa Francisco lançou uma encíclica inédita abordando a crise ambiental como uma crise ética e moral, e clamando nações ricas a não penalizarem as mais pobres – ponto central na discussão sobre mudanças climáticas. Foi a primeira vez na história da Igreja Católica que o tema ambiental foi abordado por um Papa. E, ainda mais extraordinário: não foi um discurso apenas de diagnóstico, mas uma fala que expunha os verdadeiros causadores do problema. “As nefastas consequências de um desgoverno irresponsável da economia mundial, guiado apenas pela ambição de lucro e de poder, devem ser um chamado a uma severa reflexão sobre o homem”, falou o Papa em discurso na ONU, em Nova York, no mesmo ano do lançamento da encíclica.
No Brasil, o projeto Fé no Clima, uma iniciativa do Instituto de Estudos da Religião — ISER — tem reunido comunidades espirituais para compartilhar visões e ações em torno das mudanças climáticas. Lideranças de religiões de matriz africana, indígenas, cristãos católicos e evangélicos, judeus e tantos outros compartilham da mesma visão de que uma nova consciência ambiental é necessária e urgente.
Sob o ponto de vista de pensadores budistas dedicados ao tema da crise ambiental, assim como a emissão de gás carbônico, a cultura do consumo e a superpopulação se alimentam mutuamente desequilibrando a biosfera, também o fazem três venenos que são apontados nos ensinamentos como a raiz de todo o sofrimento humano: ganância, agressão e delusão (apresentados também como apego, raiva e ignorância).
Para muitos desses estudiosos, observando a estrutura social atual a partir de tais elementos, o consumismo pode ser visto como a ganância institucionalizada, o complexo industrial-militar como a agressão institucionalizada e a mídia controlada pelo Estado e por corporações como a delusão institucionalizada. Mas entre estes três venenos, um é apontado por eles – e também por muitos ativistas ambientais – como o grande obstáculo para a superação desse modo de vida autodestrutivo ao qual nos emaranhamos como sociedade: a delusão, manifestada pela maioria de nós como “negação” ou “apatia” diante do que está acontecendo com o mundo.
Não é difícil reconhecer em nós esta tendência. Se formos honestos e investigarmos com atenção, pode ser que identifiquemos em nós uma inclinação sutil a não encarar, a não olhar face a face para a realidade. Esta tendência à negação pode se manifestar como um comportamento cotidiano, bobo, e por isso mesmo difícil de ser superado: ainda que entremos em contato e nos sintamos tocados pelas tragédias ambientais e sociais que já nos cercam, facilmente redirecionamos os olhos. Vemos diante de nós uma pilha de contas para pagar, lembramos que temos uma viagem para ser planejada ou mesmo um retiro de meditação para fazer, e rapidamente esquecemos o impacto que tiveram no nosso coração as notícias sobre a devastação da Amazônia ou do Cerrado brasileiro, ou o aumento fatal da temperatura na Terra.
Esta negação tem sido amplamente discutida pela ecofilósofa e estudiosa budista Joanna Macy. Talvez a mais influente pensadora budista que trabalha diretamente com ambientalismo,
Macy se deu conta do obstáculo representado pela apatia logo no começo de seu envolvimento com ativismo ambiental, na luta contra a instalação de usinas de energia nuclear, em São Francisco (EUA), onde morava.
Ao lado do filho adolescente, Macy participou de passeatas e campanhas, completamente convencida de que o uso de energia nuclear não era uma escolha lúcida e que, se os fatos fossem conhecidos pelos moradores da cidade, o bom senso iria prevalecer. Mas ela logo se deu conta da impotência e ineficácia da sua ação – aquele mesmo sentimento de fracasso que tantos ativistas reconhecem. Em encontros e jantares com amigos, ao mencionar o tema da energia nuclear e o perigo que eles e seus filhos corriam, as feições de seus amigos mudavam, “um brilho em seu olhar se perdia. Ninguém queria falar daquilo. Falar de problemas ambientais é desagradável”.
Esta experiência simples a levou a insights profundos sobre a apatia e o caminho para superá-la. Em palestras e formações pelo mundo, ela tem explorado o sentido original desta palavra – que significa a inabilidade ou o rechaço a sofrer – para explicar a relação da nossa sociedade com temas como aquecimento global. “Não é que as pessoas não se importem, elas se importam! Mas elas não querem entrar em contato com o sofrimento”, conclui.
Outro professor budista, este ligado à tradição Zen, David R. Loy, acrescenta à atitude interna de negação ou apatia o ingrediente da manipulação das informações. “Infelizmente, nossa tendência coletiva à negação tem sido violentamente reforçada e manipulada por forças econômicas e políticas, cujas bem financiadas campanhas de publicidade e de relações públicas têm tido sucesso em enganar as pessoas a respeito do tema do aquecimento global”. Sua fala ressoa com a de milhares de ativistas pelo mundo, que lutam contra a disseminação, impulsionada pela grande mídia, do discurso segundo o qual não há evidências de que o aquecimento global tenha causas humanas. É a chamada corrente negacionista, com inúmeros adeptos no congresso americano, além do próprio Presidente Donald Trump. Infelizmente, esta corrente também tem ganhado força no Brasil. “Hoje, nós precisamos de um despertar coletivo das delusões – incluindo aquelas delusões manipuladas por corporações de combustível fóssil”, diz Loy.
Mas, como gerar esse “despertar coletivo das delusões”? Joanna Macy aponta o começo do caminho: escolher a história que vamos nos contar. Histórias são versões da realidade, as lentes através das quais entendemos o mundo. Ela nos fala das três principais histórias que nos são repassadas nesse tempo, e que passamos a contar a nós mesmos sem nos questionarmos.
A primeira história é a história do business-as-usual: as coisas são o que são e não há necessidade ou possibilidade de mudar o jeito que nós vivemos. É a história da Sociedade de Crescimento Industrial, que nos é contada por políticos, empresários, corporações e a grande mídia. As visões que negam o aquecimento global, por exemplo, são reações que defendem a manutenção desta narrativa.
Em contraponto, a segunda história – chamada por ela de The Great Unraveling, A Grande Revelação – é a história que explicita a falência do modelo econômico atual e o perigo do colapso dos sistemas biológico, ecológico, econômico e social. É contada por cientistas, ambientalistas e jornalistas independentes, e é aquilo que assombra o coração e nos deixa assoberbados com tanta dor e devastação. É também a história contada no começo deste texto.
Finalmente, a terceira história nos é contada por aqueles que conseguem ver que a realidade não é sólida, e que notam uma gigantesca transformação em curso, por meio da qual podemos migrar juntos de uma Sociedade de Crescimento Industrial para uma Sociedade que Promove e Sustenta a Vida. Esta história é chamada por Macy de The Great Turning, A Grande Virada.
Na metodologia desenvolvida por Macy para formar ativistas – em sua definição, pessoas que de fato estejam dispostas a colocar o futuro do planeta como prioridade em suas vidas e saibam como agir para promover as transformações necessárias -, mergulhar na narrativa da Grande Revelação e olhar de frente o sofrimento é um importante passo a ser dado. Apenas se estivermos dispostos a não simplesmente nos entristecer com dados abstratos mas, de fato, sentirmos a dor dos seres diretamente impactados por nosso estilo de vida ancorado em ganância e agressão, abriremos nosso coração e daremos lugar à compaixão genuína, ingrediente fundamental da Grande Virada. Esta visão ressoa com a do Lama Padma Samten, que no retiro 108 Horas de Paz 2018-2019, nos disse: “Nós somos uma grande comunidade, uma grande rede. Nosso papel é integrar, ouvir silenciosamente, entender e repercutir dentro de nós. Que isso nos transforme em pessoas melhores e que a gente siga”.
Desde esse lugar mais amplo, onde há compaixão e a percepção nítida de que somos seres em rede, de que temos uma relação de interdependência direta com o planeta, é possível tomar decisões sobre a forma como conduzimos nossa própria vida, reconhecendo honestamente nossos impulsos consumistas e escolhas cotidianas que degradam o meio-ambiente. Nas palavras de Dzigar Kongtrul Rinpoche, “precisaremos de disciplina interna para nos libertar dessa cultura de vício e escolher um estilo de vida com necessidades mínimas e máximo contentamento. É crucial entender isto por muitas razões, incluindo a saúde e integridade do nosso próprio fluxo mental. Se não conseguimos alcançar isso, progredir no caminho espiritual vai ser difícil.”
Como no caminho do Bodisatva, o treinamento do ativista da Grande Virada também é baseado em compaixão, de um lado, e sabedoria, de outro. A partir do aspecto de sabedoria, da investigação da natureza das coisas, nos deparamos, na visão de Macy, com este outro ingrediente fundamental: a incerteza. A verdade é que, se acreditarmos nas duas primeiras histórias que nos contam, estaremos cegos para a verdadeira natureza das coisas, que é incerta, móvel, plena de possibilidades. “Não acredite em ninguém que diga para você como isso tudo vai acabar. Porque é a incerteza desse momento, esta incerteza tão radical quanto o fio de uma navalha, que nos mantém presentes e focados o bastante para oferecer o que temos que oferecer e fazer o que temos que fazer. Se eu dissesse, ‘na verdade vai ficar tudo bem’, você ficaria parado e não faria nada. Se eu dissesse ‘já é tarde demais, não há nada a fazer’ – e muitas pessoas estão dizendo isso -, você não iria sequer tentar. Mas não é muito tarde, porque nós estamos aqui e cada ação que nós fazemos tem consequências imprevisíveis”.
Esse discurso da Joanna Macy é muito mais do que uma “traquinagem da imaginação”, como diria o poeta Manoel de Barros. Mesmo a ciência aponta possibilidades de reversão da crise ecológica causada pelo aquecimento global. O IPCC diz que, se queremos limitar o aquecimento a menos de 1,5 graus, a margem segura para impedir mais degelo e mais efeitos sobre a agricultura, precisamos cortar as emissões de gás carbônico imediatamente – com 50% de redução global até 2030 – mas também precisamos trabalhar para diminuir os gases do efeito estufa que já estão na atmosfera, através de um gigantesco reflorestamento global. Muitos países têm trabalhado nesta perspectiva. A China tomou a vanguarda deste movimento, mantendo seu compromisso com o Acordo Climático de Paris de 2015, e investindo massivamente no desenvolvimento de tecnologia de geração e distribuição de energias limpas (solar e eólica) em grande escala. Em um nível político, a crise ambiental tem explicitado de maneira inédita os limites do capitalismo, e introduzido justiça social na pauta, uma vez que os mais prejudicados são quase que invariavelmente as populações de países mais pobres.
Na verdade, a visão que Macy nos oferece é a de que a Grande Virada já está acontecendo. Segundo ela, “quando as pessoas do futuro olharem para trás, para este momento histórico que estamos vivendo, elas verão mais claramente do que nós podemos ver hoje quão revolucionárias nossas ações foram. E chamarão este momento de a Grande Virada”.
Você pode adquirir a Bodisatva 31: O tempo da grande virada na nossa loja virtual! E também pode acessar informações complementares a este texto na página especial da 31.
Esperança ativa, por Joanna Macy e Chris Johnstone (Bambual editora, 2020)
A Buddhist response to the climate emergency, editado por John Stanley, David R. Loy e Gyurme Dorje (Wisdom Publications, 2009)
Nossa vida como Gaia: Práticas para reconectar nossas vidas e nosso futuro, Joanna Macy e Molly Young Brown (Gaia Editora, 2004)
Lotus in the nuclear sea: Fukushima and the promise of Buddhism in the nuclear age, editado por Jonathan S. Watts (International Buddhist Exchange Center – IBEC, 2013)
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