Lama Padma Samten no CEBB Mendjila (Foto: Zé Paiva / Vista Imagens)

“Precisamos entender que a deidade é viva”

No dia de Guru Rinpoche, o Lama celebra a conclusão da acumulação do Buda da Medicina e explica os aspectos sutil e secreto da deidade


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Edição: Caroline Souza
Transcrição: Caroline Souza

Na noite de ontem, 29 de julho de 2020, em meio ao retiro de inverno, o Lama Padma Samten e a sanga finalizaram os 108 dias de acumulação do mantra do Buda da Medicina. Ao longo desse período, o Lama ofereceu diariamente uma prática online de recitação desse poderoso mantra, com o propósito de pacificar os desafios que estão gerando tanto sofrimento neste momento.

Também era dia de Guru Rinpoche, e a energia que fluía pelas centenas de telas que acompanhavam o ensinamento foi muito particular. O Lama estava radiante e nos conduziu, como que pela mão, a uma visão elevada e celebrativa. Celebrávamos o retiro, celebrávamos a acumulação, celebrávamos o mérito de estarmos tão juntos mesmo que espacialmente distantes. Celebrávamos essa natureza intangível e sempre presente.

E nessa paisagem sutil de regozijo ele nos apresentou uma visão, ao mesmo tempo, rara e sofisticada: a percepção de que as deidades como o Buda da Medicina e Guru Rinpoche são vivas e sensíveis. Sua intenção iluminada é real enquanto um movimento e uma intencionalidade a nível sutil, a nível de sambhogakaya, e ela opera. 

Numa noite em que coincidia o dia de Guru Rinpoche e a conclusão de 108 dias de prática do Buda da Medicina, receber essa profunda transmissão sobre como se relacionar com as deidades foi, realmente, especial.

Com a aspiração de que a aprofundemos, oferecemos a transcrição desta fala à sanga:


 

Todas as situações que nós vivemos têm um impacto sobre o movimento da nossa energia. O que nós vemos ao redor é como uma manifestação energética sobre nós, porque não há nada que nós olhemos fora que não tenha uma dimensão de energia no olhar, na conexão. Contudo, essa construção que a gente faz das coisas ao redor tem dois lados: nós e o outro. Por exemplo, se eu digo que uma pessoa é horrível, não é que a pessoa seja horrível: eu já estou me sentindo mal junto ao dizer isso. Eu projeto aquilo na pessoa, mas já estou sentindo junto. Se eu acho uma pessoa maravilhosa, quando essa pessoa surge maravilhosa eu já me sinto com uma outra energia, ao mesmo tempo.

Assim, tudo o que nós vemos ao redor impacta diretamente, de modo não-dual, o mundo interno. Imagine que você está sempre num lugar – que é o modo como nós vemos o samsara – onde a energia que nós produzimos, que se relaciona com as aparências, nos impacta. É como se estivéssemos sempre com agulhas: estamos todos num tratamento de acupuntura, fincados pelas coisas que nós mesmos criamos. 

Desse modo, é crucial que, em todo processo de cura, pacifiquemos tudo em todas as direções. Nós vamos tirando as agulhas. E, nesse sentido, qual é o único jeito de eliminar o inimigo? Fazer com que ele não seja mais inimigo. Não o eliminamos matando-o. Se o matamos, não nos livramos dele. Para eliminar o inimigo, é necessário eliminar a inimizade. Nós precisamos fazer isso. 

Vamos supor que a gente tem aflições desse tipo e que, de repente, a gente olha em volta e entende aquela pessoa no mundo dela, até o ponto em que desenvolvemos uma empatia por ela que á a segunda sabedoria. A terceira sabedoria é assim: pensamos “uau, ela deve estar fazendo isso em muitas direções. Isso é um problema para ela”. E aí todos os pensamentos desse tipo que nós temos, associados a uma das sabedorias e ligados àquela situação, são positivos. É como se trocássemos uma agulha do mal por uma agulha do bem e tudo começasse a funcionar melhor.

Esse é um processo de cura: nós vamos curando o mundo pela cura do olhar. E quando a gente termina de curar o mundo, nós nos curamos. O Tokuda San dizia que nós precisamos pacificar em todas as direções. Quando a gente termina de pacificar todas as relações, a gente se cura. Se a gente não se curar, a gente morre. Quando a gente morre, morre curado. Porque a cura mesmo não é apenas a cura do corpo: é a cura, uma coisa maior. Esse é um ponto super importante.

Desse modo, quando nós vamos olhando o mundo ao redor e o compondo, por meio do olhar, de uma forma elevada, estamos criando a terra pura do Buda da Medicina. No fim desse período, está tudo arrumado. Por exemplo, se a questão é uma questão de saúde mental ou física, ou mesmo de relações, também podemos usar o próprio mantra do Prajnaparamita ou o mantra do Buda da Medicina, enquanto vamos olhando e reconhecendo.

Entretanto, pode ser que a gente diga: “o Buda da Medicina não existe. Ele não entra aqui, não vem aqui, não fala. Que se saiba, ele nunca veio em corpo físico a lugar nenhum.” Mas o Buda da Medicina é super real. A gente precisa entender isso. Ele é como Samantabadra. O aspecto grosseiro é sempre o aspecto de nirmanakaya; é problemático. O aspecto sutil – ou seja, sambhogakaya – é real.

Enquanto eu estou explicando isso, isto em si já é a compreensão da manifestação do Buda da Medicina. Se as pessoas entenderem essa forma de pensamento [associada ao Buda  da Medicina], mudarem a sua energia e funcionarem, isso vai operar. É como se o Buda estivesse num âmbito de sambhogakaya ou de dharmakaya. De lá, ele produz a compreensão, a visão. Ele é inseparável de rigpa, que produz a visão. Desse modo, o Buda da Medicina surge inseparável de rigpa focando nas questões dos sofrimentos dos seres no mundo. E, enquanto uma manifestação de rigpa focando nisso, ele entende as soluções. E disso surge um movimento de energia inseparável de bodicita, que vai naquela direção. Esse movimento de energia já é o lung, já é a própria deidade viva se manifestando. Portanto, é melhor imaginar que o Buda da Medicina existe de uma forma sensível e operativa. E ao recitarmos mantemos essa clareza, procurando nos associar a esse tipo de compreensão, a essa forma de ver.

O Chagdud Rinpoche tinha uma visão muito clara disso. Podemos imaginar que nós, em corpo grosseiro, temos intencionalidade e movimento. Se eu pensar: “eu sou meu corpo, é meu corpo que tem intencionalidade e movimento”, rapidamente eu percebo que não são meus ossos, minha pele, minhas unhas, meu cabelo nem minhas células que têm intencionalidade e movimento. Até mesmo porque eu posso mudar a intencionalidade para cá ou para lá e as células, e todo o resto, vão seguir iguais. A intencionalidade não vem nem do que eu como nem do que não como. Esse movimento é o movimento de sambhogakaya, que posiciona o tipo de energia e de referencial que a gente vai usar. Só que esse aspecto de sambhogakaya é livre, ele não necessita do aspecto grosseiro para operar. 

Lama Padma Samten com Chagdud Rinpoche (Flickr CEBB)

O Chagdud Rinpoche tinha uma fé muito próxima da intenção iluminada de Guru Rinpoche. Quando ele rezava para Guru Rinpoche, era como se ele estivesse com o pai, com a mãe ou com alguém, de uma forma muito próxima. Ele sentia que podia haver essa intencionalidade que não brotava da própria mente dele; que ele podia rezar e essa intencionalidade da intenção iluminada de Guru Rinpoche ia surgir e impulsionar o movimento numa direção favorável.

Especialmente no budismo tibetano, eles desenvolvem essa proximidade. Para nós, se há alguém vivo, capaz de fazer alguma coisa, ele está com um corpo. Se terminou o corpo, acabou. Os tibetanos, por outro lado, veem esse aspecto de sambhogakaya e a intenção iluminada de Guru Rinpoche. Guru Rinpoche olha tudo em todas as direções. É uma mente lúcida que olha em todas as direções. Só que não apenas olha: tem uma energia junto. Portanto, Guru Rinpoche manifesta essa intenção iluminada, e essa intenção iluminada é capaz de produzir movimentos favoráveis. Chagdud Rinpoche tinha essa clareza.


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