Crédito: Aron Visuals

A Morte, essa nossa companheira de vida

A praticante Carmem Navas Zamora escreve com leveza sobre os seus insights sobre a morte e a impermanência


Por
Revisão: Cristiane Schardosim Martins

Neste relato de praticante, Carmem Navas Zamora nos toca com leveza sobre um tema que poucos apreciam contemplar: a morte a impermanência


 

“Ame a si mesma. Valorize-se. Aquele Prosecco que fiquei te devendo, beba-o sozinha. Seja feliz. Dê uma olhada nos meus filhos de vez em quando”.

Minha namorada escreveu essas palavras num centro cirúrgico, alguns minutos antes de receber a anestesia. Sabia que a operação seria arriscada e estava olhando serenamente para a possibilidade de jamais nos reencontrarmos com os mesmos corpos com que nos conhecemos. 

Em meio à preocupação que sentia por ela, agradeci intimamente pelo fato de poder falar desta forma, sem nutrir a ilusão de que seremos eternas. Com quantas pessoas podemos ser assim, diretas, sem medo do terrível tabu que é a morte em nossa sociedade? E ela, com dois filhos recém ingressando no mundo da economia e do trabalho, demonstrou ter mais lucidez e cabeça fria do que eu esperava. A maioria das mães que conheço nunca se permitem sequer pensar em deixar essa vida. 

Meu pai, que recém completou 88 anos, já me confessou que não quer chegar aos cem. Ele gosta da vida e tem bom preparo psicológico nas situações difíceis, mas também é perseguido pelo medo de perder a autonomia, passar por doenças terríveis e ser privado de tudo que um dia amou, principalmente da minha mãe, se ela morrer antes. Muitos idosos se sentem assim, confrontados de um lado pelo medo de morrer e de outro pelas mazelas da idade. 

Quando começou a pandemia de COVID-19, meu pai comentou comigo que talvez fosse um ótimo momento para partir de vez. Argumentei que não temos, é claro, nenhum controle sobre o “cronograma”, mas que se possível esperasse passar a “era de ouro” do coronavírus.

“Não pega esse bonde não, papi”, sugeri, “melhor ficar trancadinho em casa, tomar as vacinas quando chegar a hora e sobreviver. Morrer isolado, longe da gente, e amarrado a uma parafernália médica não é uma boa maneira de bater as botas.”    

As coisas andaram razoavelmente bem e ele está vivo, vacinadíssimo e enfrentando os problemas normais da velhice: ossos que doem, veias que incham, memória que falha. De todos os privilégios que tenho, poder tomar vinho com meu pai e falar de novelas com minha mãe é o maior e mais inacreditável. 

Meu vizinho é daqueles que adora tomar chimarrão enquanto filosofa sobre tudo na face da Terra. Nesse outono que passou, quase todo dia tomamos chimas em seu pátio. Vivemos num pequeno povoado, um lugar onde vizinhes se conhecem e se ajudam. Trabalhávamos juntos na horta, eu às vezes fazia um pão pra compartilhar. Observávamos a natureza com seus ritmos: as cigarras se calaram, os pés de amora perderam as folhas, as madrugadas se tornaram geladas, as chuvas estancaram e o nosso rio, que havia bebido abundantemente das chuvas do verão, foi secando até se reduzir a um fiapo. 

Numa de nossas conversas, falei que a transição para o inverno tem muito a ver com envelhecimento e morte. Talvez por isso os países frios enfrentam todos os anos uma espécie de epidemia de depressão sazonal, exatamente nesse período. Com o mate na mão e me olhando nos olhos, meu vizinho disse:  

“Não tenho tempo pra depressão, queixas, desânimo. Tenho 56 anos e sei muito bem que estou em contagem regressiva”.

Respondi que sua frase traduz maravilhosamente as lições de meus mestres budistas. Agradeci. Quando anoiteceu, já sozinha no meu pátio, olhei o frio céu de outono, repleto de estrelas impassíveis. Eu vivi toda uma maravilhosa vida sob esse céu, e tudo seguirá depois que eu morrer. “Todo o universo está tão intacto quanto antes”, diz a velha canção do Fito Páez. Chorei, e aqueles milhões de corpos celestes dançaram diante dos meus olhos marejados. Faz algum tempo comprei uma canequinha de cerâmica branca com a frase “Soltar” escrita em vermelho. Naquela noite, enchi a caneca com água e a deixei ao lado da porta, onde também mantinha a imagem de Guru Rinpoche. Solta, guria. Vai soltando agora, enquanto tu tens a escolha. Vai aprendendo a nadar antes que o oceano te alcance.  

Outro dia, no meio de uma animadíssima festa junina, me flagrei conversando sobre morte com uma grande amiga e seu marido, que nasceu na Alemanha. Contei-lhes sobre meu sonho de que minha morte seja comemorada com uma grande festa e que todos dancem, bebam e se alegrem o mais que possam. Comentei que seria difícil, no entanto, achar alguém que tenha a distância emocional necessária para cumprir a tarefa de promover o tal evento.

“Deixa isso com um advogado, é a melhor maneira. Deixa o dinheiro também. Para as bebidas, o DJ, etc”, aconselhou ele.

A praticidade alemã nos fez cair na risada. Pelo amor da Deusa, precisamos de mais conversas assim. Precisamos de menos tabu e mais conselhos práticos. Não há nada de errado com a morte. Ela é, digamos assim, o que temos pra hoje. Tem que querer ser muito, mas muito negacionista mesmo pra não entender. Esses cabelos ficando cada vez mais brancos, repare bem, significam morte. Essas mãos repletas de veias saltadas, esses olhos esmaecidos, essa pele que já nenhum creminho dá jeito, tudo isso é morte, senhoras e senhores.        

Enfim, minha amada saiu vivinha daquele centro cirúrgico. Difícil agora é convencê-la de que precisa beber menos vinho, adotar rotina de oito horas diárias de sono, comer menos carne, entrar para o Pilates. Mas isso é assunto pra outro texto. Vamo que vamo! 

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2 Comentários

  1. Adriana Leopoldino disse:

    Texto leve, inteligente e muito verdadeiro

  2. Henrique Andrade disse:

    Adorei! Deixar fluir _/\_

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