Ilustração: Joana Ludwig

A Velha Mulher e Naropa

O lendário encontro entre Vajrayogini, manifesta no disfarce de uma velha mulher, e Naropa, grande estudioso inigualável nos debates filosóficos budistas


Por
Revisão: Cristiane Schardosim Martins
Edição: Carol Franchi
Tradução: Gabriel Sardeto

Esse é mais um capítulo do Livro The Hidden Lamp: Stories from Twenty-Five Centuries of Awakened Women, ainda sem tradução para o português (clique aqui para acessar os outros) uma compilação maravilhosa de ensinamentos e instruções transmitidas por praticantes e mestras budistas, ao longo de vinte e cinco séculos, através de suas experiências de vida e realizações. Cada história é comentada por professoras do Darma contemporâneas, que nos ajudam a interpretar os ensinamentos e a praticá-los nos dias de hoje. 

Nesse capítulo, Naropa encontra uma velha mulher que questiona sua verdadeira compreensão (interna) da sabedoria do Darma.


ÍNDIA, SÉCULO X………………………………………………………………………………

Um dia, o grande estudioso Naropa estava quieto, estudando em seu quarto. De repente, uma sombra se projetou no chão e, de lá, uma velha mulher surgiu na sua frente. Ela perguntou: “O que você está lendo?”

Naropa respondeu: “Estou estudando os ensinamentos do Buda.”

A velha mulher perguntou: “Você os compreende?”

Sem hesitação, Naropa respondeu: “Eu entendo cada palavra.”

“Que sorte para essa terra que tal estudioso exista!”, ela exclamou com alegria. Então, ela perguntou: “Você entende o significado literal dos ensinamentos, mas você entende seu significado interno?”

Naropa respondeu: “Sim.”

A expressão da velha mulher se transformou de alegria para tristeza. Com o coração trêmulo, ela chorou: “E pensar que um grande estudioso como você sabe como contar mentiras!”

O envergonhado Naropa indagou: “Existe alguém que verdadeiramente entende o significado interno do Dharma?”

A velha mulher respondeu, “Sim, meu irmão, Tilopa.”

Os olhos de Naropa se encheram de lágrimas. Ele perguntou: “Aonde eu posso encontrar esse mestre?”

A velha mulher respondeu: “Ele não está em alguma direção específica; ele pode estar em qualquer lugar. Se sua mente estiver repleta de devoção e você aspira encontrá-lo, então essa é a direção correta.” A velha senhora que, na verdade, era Vajrayogini, uma manifestação corpórea da energia iluminada na forma feminina, sumiu como um arco-íris desaparecendo no céu.

Devido a sua mente deludida, Naropa não foi capaz de ver a sua forma verdadeira. 

Reflexão de Karma Lekshe Tsomo

O lendário encontro de Naropa e a velha mulher é uma fonte de muitos ensinamentos espirituais. Nascido em uma família indiana Brâmane no século X, Naropa se tornou altamente renomado como um grande estudioso que era inigualável no debate filosófico. Como resultado de sua sabedoria superior e de seu renome, ele se tornou um pouco exibido. Com uma cutucada da velha mulher na história, ele reconheceu suas limitações. Ao procurar pelo grande yogi Tilopa, ele se tornou um grande meditador e se engajou com perfeição nas Seis Yogas de Naropa, práticas tântricas avançadas ainda preservadas nos dias de hoje. Ele é um dos 84 mahasiddhas, praticantes de grande realização e poder.

Quando a velha mulher perguntou se Naropa entendia o significado interno dos ensinamentos do Buda, ela fez referência à vasta diferença que existe entre a sabedoria dos livros e a sabedoria interna. A sabedoria, especialmente a sabedoria do Budadarma, é essencial e é uma realização magnífica. Mas academicismo sem presença interna é insuficiente. O despertar profundo requer uma realização ampla dos ensinamentos que transforma completamente a mente.

Como um resultado do seu encontro com a velha mulher, Naropa iniciou uma árdua jornada para encontrar o lendário Yogi Tilopa, irmão da mulher. Sua jornada foi literalmente uma trilha pelos nevados Himalaias e também, metaforicamente, para um lugar de realização interna. A jornada foi cheia de aprendizados, que só se intensificaram quando ele finalmente encontrou seu professor.

Quando Naropa começou sua busca, esperava encontrar um mestre glorioso, cercado de assistentes e admiradores. Por fim, ao invés disso, encontrou um sadhu nu, ou homem santo, comendo peixe vivo e fresco de um rio. Como um Brâmane rigoroso e vegetariano comprometido, ele ficou chocado pelo comportamento nada ortodoxo do mestre. Imediatamente desafiou Tilopa a se explicar quando, então, o sadhu nu soltou o peixe ainda vivo de sua boca de volta para o rio, explodindo todas as noções pré-concebidas de Naropa a respeito de maestria espiritual e de sua própria superioridade intelectual. Cada passo da jornada foi uma lição e uma presença fresca em si, validando a efetividade dos ensinamentos.

Vajrayogini, manifesta no disfarce de uma velha mulher, aparece em um ponto crucial para iluminar Naropa em sua própria jornada. Em uma época em que o potencial espiritual das mulheres era raramente reconhecido, ela transverte a ideia com sua percepção intuitiva. Se ela apareceu como uma pessoa real, histórica ou um arquétipo milagroso pode ser irrelevante, já que ela desencadeou a epifania de Naropa. Sua aparência no corpo de uma mulher abatida quebrou significativamente os preceitos bramânicos de Naropa sobre idade, beleza, gênero e sujeira. Sabemos que como uma consequência de sua sabedoria manifestada na forma feminina, a linhagem de Tilopa continuou através de Naropa até os dias atuais. E ainda que a velha mulher não tenha um nome e não conste nas linhagens tradicionais, ela merece ser incluída não somente como a expressão plena da sabedoria feminina, mas como a manifestação de Vajrayogini, a iluminação feminina na forma humana. Sua aparição para Naropa, que é de fato uma figura histórica, aconteceu em um tempo no qual ele havia atingido o apogeu de sua carreira acadêmica, e sua aparência foi o catalisador que o empurrou além de sua complacência.

O arquétipo de uma mulher que age como um catalisador espiritual é comum na literatura yogi. Geralmente velha, desgrenhada, sedutora ou ultrajante, ela aparece em um momento particular para acordar a presença espiritual, geralmente em um homem de alta casta, altamente realizado, arrogante ou nervoso. Sem dúvida Naropa era muito bem versado nos tantras (rituais e práticas mistas) e começou praticando-os de forma simulada por algum tempo, mas foi necessário o estímulo da velha mulher para despertar um nível mais elevado de consciência e para torná-lo aberto a novas percepções. Nesse caso, ela expôs seu orgulho e as limitações de sua percepção.

O encontro de Naropa com a velha mulher desperta um momento de experiência intuitiva direta, de uma forma tanto comum quanto transcendente, alterando sua visão de realidade e criando espaço para a realização posterior. Não é que sua erudição seja irrelevante — de fato, a erudição é a completude do caminho de sua vida até aquele momento — mas agora um nível totalmente diferente de realidade é revelado. Incorporar essa revelação é tudo que resta para ser feito. E para isso, a velha mulher o direciona a Tilopa, alguém que “de fato entende o significado interno do Darma”. Professores como esses podem aparecer em qualquer hora e em qualquer forma para despertar nossa própria sabedoria do Dharma.

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