Abandonando o lar para buscar o caminho

Quando Sidarta Gautama deixou o palácio e sua vida como príncipe, em busca da Iluminação


Por
Revisão: Cristiane Schardosim Martins
Edição: Carol Franchi
Tradução: Marcelo Nicolodi

O Saga Dawa é sagrado no calendário budista e marca o nascimento, a iluminação e o parinirvana de Buda Shakyamuni. É dito que durante esse período as ações virtuosas são acumuladas exponencialmente.

As histórias do Buda são contadas no Budadarma — O Caminho para a Iluminação e, para refletir sobre o dia de hoje, a Bodisatva traz um trecho desse volume, que conta como o príncipe Sidarta deixou o palácio para, mais tarde, tornar-se o Buda Shakyamuni.


Para descansar da fadiga do passeio daquele dia, o príncipe deitou em sua cama adornada por joias. Um grupo de belas cortesãs tentou confortar o príncipe cantando e dançando ao som da música. A qualidade belíssima de sua atuação e a graciosidade de suas formas faziam lembrar as donzelas celestiais. Mas até mesmo a habilidosa dança não foi capaz de afetar a mente do sereno príncipe, que rapidamente caiu em um sono profundo. As cortesãs perceberam, e perderam seu entusiasmo pela dança e pelo canto. Elas pararam a música e também foram dormir. Apenas a chama perfumada tremulava brincando na noite silenciosa. O príncipe acordou repentinamente de seu sono, sentou na cama e analisou a cena que o circundava.

A noite estava calma, o palácio era belo e a luz dos incensos emitia uma fragrância agradável. Mas quão repugnantes pareciam as dançarinas! Saliva escorria de suas bocas; elas rangiam os dentes e murmuravam durante o sono. Suas roupas e corpos estavam desalinhados, e elas estavam esquecidas de suas posições como mulheres. Em grupos de duas ou três elas se encontravam em sono profundo. Na verdade, o palácio que brilhara durante a tarde havia se tornado um cemitério. O príncipe ficou arrepiado de desgosto e levantou-se. Em seu coração, ele clamava: “Todas as coisas são como esta cena, não posso tolerar isto.” Ele decidiu fugir do palácio imediatamente; deixou seu quarto silenciosamente e se dirigiu ao portão do palácio. Ele chamou seu condutor, Channa, e ordenou que selasse seu cavalo. Então, retornou mais uma vez aos aposentos da princesa e abriu a porta com cuidado. No quarto, lamparinas perfumadas lançavam pálidas sombras na profunda escuridão da noite, e havia apenas a respiração silenciosa de alguém em sono profundo. Ele pensou: “Se eu abraçar meu filho e me entristecer por este encontro final, a princesa despertará e tentará me impedir de deixar o lar. Em vez disso, seria mais sábio visitar esta criança depois que eu atingir a iluminação.” Deixando o palácio e montando seu belo garanhão Kanthaka, ele se apressou em direção ao grande portão externo da cidade. Como precaução para o caso de o príncipe deixar o lar, o rei havia posicionado um grande número de soldados nesse portão, que tinham a ordem de guardá-lo. Além disso, os dois portões de ferro foram construídos de tal forma que mesmo a força de mil homens poderia abri-los apenas com dificuldade. Mas, talvez devido à ajuda de seres divinos, os guardas haviam misteriosamente adormecido, e mesmo aqueles grandes portões de ferro se abriram silenciosamente. O garanhão branco Kanthaka correu através do portão como uma rajada de vento. Era meia-noite do dia da lua cheia do quarto mês.

Naquele momento, Mara apareceu no céu e gritou: “Ó príncipe, abandona a tua intenção tola de deixar o lar e retorna ao palácio cheio de flores. Se assim o fizeres, em sete dias tornar-te-á um rei universal que reinará nas quatro direções.” O príncipe respondeu: “Ó rei Mara, vai para longe! Demônio do mal, desapareça daqui! Ser soberano neste mundo não é meu objetivo, minha única aspiração é encontrar o caminho.” Quando o príncipe o rejeitou com aquelas palavras, o rei Mara silenciosamente se retirou desanimado. Mas ele pensou: “Mais cedo ou mais tarde, o pássaro do ódio construirá um dia um ninho no coração do príncipe; nesse momento, eu aproveitarei a minha chance.” Daquele dia em diante, como a sombra que segue o corpo, ele não saiu do lado do príncipe e fez o seu melhor para obstruir o caminho dele para a iluminação.

O príncipe, que havia deixado o palácio de forma resoluta, sentiu vontade de olhar uma última vez para sua cidade que estava gradualmente desaparecendo à distância; porém, ele repreendeu a si mesmo e apertou o passo. Devido à ferocidade da batalha em sua mente, a grande terra girou misteriosamente como a roda de um ceramista, e a cidade apareceu diante de seu olho mental. Mas, com determinação renovada, ele continuou galopando. Após cavalgar por sete milhas, chegou às margens do rio Anoma ao amanhecer. Continuando apressadamente, voou sobre o rio com um único salto.

Ele se abaixou até a areia que começava a brilhar, cintilante sob o sol da manhã. O príncipe tirou suas roupas e deu-as a Channa, dizendo: “Ó Channa, algumas pessoas servem com suas mentes, mas não com seus corpos; enquanto outros servem com seus corpos, mas não com suas mentes. Você me serviu tanto com seu corpo quanto com sua mente. As pessoas brigam para servir aqueles que são importantes e abastados, mas elas se afastam daqueles que são pobres e de nascimento inferior. Apenas você, entretanto, abandonou o próprio país e me seguiu por longas distâncias até este lugar. Sua ação é verdadeiramente admirável!” Soltando seu coque, o príncipe segurou uma joia e disse:

“Channa, volte ao palácio agora e ofereça isto ao grande rei. Transmita estas palavras a ele: ‘O príncipe não quer nada das coisas do mundo. As pessoas estão todas aprisionadas pelas emoções do amor e da afeição, mas no final elas não são capazes de enganar a velhice, a doença e a morte. Por favor, pondere sobre esta verdade e abandone a aflição. Enquanto o príncipe não alcançar a iluminação, ele não retornará ao palácio.’”

Então tirou um colar, entregou-o a Channa, e disse: “Por favor, leve isto à rainha madrasta, e diga a ela que o desejo é a raiz do sofrimento e que resolvi cortar a raiz do sofrimento e acabar com a aflição.” Mais uma vez ele entregou uma variedade de ornamentos e disse: “Por favor, leve-os à princesa e diga-lhe que no mundo dos homens, infalivelmente, há a dor da separação; e que o príncipe decidiu cortar a raiz desta dor. Se ela se abater pela emoção do apego amoroso, diga-lhe para não se afundar na aflição.”

Channa se desesperou, e chorando suplicou para seguir o príncipe como mendicante também, mas ele não permitiu. Então, Channa chorou em alta voz. O garanhão Kanthaka também dobrou suas patas dianteiras e lambeu os pés do príncipe, enquanto gemia tristemente. Ele tocou a cabeça de Kanthaka e consolou-o com estas palavras: “Ó Kantaka, você fez tudo o que lhe foi pedido, não há razão alguma para ficar triste.” Ele desembainhou sua espada com a mão direita, e com a esquerda segurou seus cabelos, e cortou-os. Ele lançou os cabelos no ar, exclamando: “Se eu for capaz de alcançar a verdadeira iluminação, possam estes cabelos permanecer suspensos no ar. Se eu for incapaz de tal tarefa, que eles caiam ao chão.” Os cabelos permaneceram suspensos no ar e não caíram. O deus Indra recolheu os cabelos e colocou-os em um vaso ornamentado por joias, guardando o vaso no céu de Tavatimsa. O príncipe vestiu-se com três mantos presenteados a ele pelo filho do deus Ghatikara, e com uma tigela em sua mão calmamente começou a caminhar. Aos prantos, Channa disse adeus ao príncipe, enquanto ele desaparecia ao longe. Com o coração pesado, Channa retornou ao palácio. Mesmo caindo na ira de todo o clã, especialmente do grande rei Suddhodana e da princesa Yasodhara, Channa transmitiu
fielmente as palavras do príncipe.

Agora o príncipe havia se tornado um humilde mendicante. Ele se sentiu renascido tanto em mente quanto corpo, e com a tigela na mão pediu por comida nas casas da vizinhança. Mas, no início, o príncipe, que estava acostumado a se deliciar com as generosas refeições do palácio, não conseguiu comer a comida desagradável que havia conseguido juntar. Dirigiu-se a um local sob uma árvore e tentou comer, mas hesitou; sem pensar, ele estava no ponto de jogar a comida fora. Mas, repentinamente, atingido pelo pensamento de que agora era um mendicante buscando o caminho, ele partilhou daquela comida graciosamente. Daquele momento em diante, durante toda a sua vida, o príncipe nunca sofreu por comida. Ele entrou, então, em Vesali e visitou o asceta Bhaggava para observar as práticas de seus seguidores. Ele percebeu que eles se vestiam com roupas feitas de folhas e cascas de árvores, e comiam raízes e frutas. Às vezes, comiam uma vez por dia; outras vezes comiam uma vez a cada dois ou três dias. Eles veneravam o fogo e a água e dormiam em becos. O asceta explicou os benefícios da mortificação. Ele afirmou: “No futuro, devido a essas práticas, você renascerá nos reinos celestiais.” Mas o príncipe o pressionou com questões como: “Quando a alegria dos céus chegar a um fim, não teremos que afundar novamente no mundo do sofrimento? Por que você e seus seguidores cultivam as sementes do sofrimento e buscam seus frutos?” O asceta Bhaggava não foi capaz de responder de uma forma satisfatória. O príncipe, então, pensou: “Mercadores buscam tesouros e se lançam aos mares. Reis buscam expandir seus territórios e guerreiam com outros países. Estes ascetas buscam os mundos celestiais e se entregam a práticas ascéticas.” Desta forma, as questões e respostas continuaram até o cair da noite. O príncipe passou a noite ali, mas estava convencido de que essas práticas não eram o caminho verdadeiro. No dia seguinte ele partiu, e ao cruzar o Ganges, em direção ao sul, aproximou-se das vizinhanças de Rajagaha. Então ele visitou um asceta de nome Alara Kalama, que vivia no Monte Sumeru, e perguntou-lhe sobre o caminho. “Ó Kalama, desejo praticar o seu ensinamento.” O asceta respondeu: “Permaneça aqui comigo se desejar; esse ensinamento pode ser realizado por qualquer um em um curto tempo.” O príncipe rapidamente chegou à perfeição daquele ensinamento.

O príncipe pensou: “Quando Kalama afirma ter realizado este ensinamento, ele não apenas acredita que isto é verdade. Ele não tem dúvidas de que realizou completamente o ensinamento.” Desta forma, o príncipe perguntou: “Kalama, qual é a natureza de sua iluminação?” Kalama respondeu falando sobre o estado da nulidade infinita. “No estado da nulidade infinita, os pensamentos sobre coisas materiais são transcendidos e todas as coisas existentes são vazias. Este é o estado meditativo no qual realizamos que apenas o vazio existe na nulidade infinita.” O príncipe pensou consigo mesmo: “Alara Kalama não é o único que possui fé, eu também possuo fé. Não apenas ele, mas eu também possuo esforço, atenção mental correta, meditação e sabedoria. Irei me esforçar para alcançar o estado que, assim se diz, ele alcançou.” Em pouco tempo o príncipe realizou aquele ensinamento, e aproximando-se de Kalama, disse: “Kalama, é esta a amplidão do ensinamento que você afirma ter alcançado?” “Esta é a amplidão”, respondeu Kalama. O príncipe disse: “Eu, também, realizei este ensinamento.” Kalama disse: “Amigo, eu sou afortunado por ter recebido um aluno como você. O ensinamento que realizei, você também realizou. O ensinamento que você alcançou, eu também alcancei. Você e eu alcançamos o mesmo estado. Portanto, vamos juntos guiar os discípulos.”

Mas o príncipe pensou: “Este ensinamento não leva à liberação da delusão. Este não é o ensinamento verdadeiro e iluminado que é livre de cobiça. Através deste ensinamento atinge-se apenas um estado chamado nulidade infinita.” Insatisfeito com o ensinamento, o príncipe colocou-se novamente a buscar. Então, procurando pelo caminho que leva à paz, ele foi até Uddaka Ramaputta e praticou seu ensinamento.

Ali o príncipe realizou o ensinamento de Uddaka. Ele descobriu que o ensinamento de Uddaka levava apenas à realização de um tipo de estado meditativo no qual não há nem consciência, nem ausência de consciência. Ele pensou: “Este ensinamento também não leva à liberação da delusão; este não é o ensinamento verdadeiro e iluminado que é livre de cobiça.” Ele pensou que se o estado de nem consciência nem de ausência de consciência fossem desprovidos de ego, então mesmo os termos “nem consciência nem ausência de consciência” deveriam, por bem, existir. Se, por outro lado, houvesse um ego, então,
inevitavelmente deveria haver alguma consciência. Se houvesse consciência e o ser ficasse confuso nas conexões mundanas, então o apego surgiria. Pensando que isto não podia ser encarado como liberação, ele deixou Uddaka e colocou-se, mais uma vez, na estrada em busca do caminho.

Incitando-se a seguir a estrada, o príncipe chegou a Rajagaha e foi de casa em casa mendigando por comida. As pessoas da cidade perceberam a nobre aparência do príncipe e se empurravam para caminhar atrás dele. Devido à comoção, o rei Bimbisara finalmente se alarmou. Subindo à torre do palácio, ele viu a aparência majestosa do príncipe à distância. Ele foi atrás do príncipe em sua carruagem até chegar à colina Pandava, fora da cidade. Após uma troca de saudações, o rei disse: “Apesar de ser um mendicante, você ainda é jovem; você parece ser um príncipe de nobre nascimento. Se tiver a vontade de reinar, eu gostaria de dividir o país em dois e você teria a metade.” O príncipe respondeu:

“Sou um príncipe do clã Sakya, que mora nas colinas ao pé dos Himalayas. Tendo compreendido que a cobiça é a raiz do sofrimento, eu abandonei toda a cobiça e agora aspiro à paz do nirvana. Esta é a única coisa que busco.”

O rei ficou profundamente comovido pela nobre mente do príncipe e disse: “Se você alcançar a iluminação, eu gostaria de ser o primeiro a ser salvo por você.” O príncipe aceitou silenciosamente a súplica do rei, e partiu. Ele viajou na direção sudoeste, cruzou o rio Neranjara, e entrou na silenciosa floresta de Uruvela. Essa floresta exuberante e de um belo verde, situada próximo ao rio Neranjara com suas margens de areia branca pura, tornou-se para o príncipe o local para um período de seis anos de prática do caminho do bodisatva. Logo depois que o príncipe entrou no caminho da mendicância, seu pai, o rei Suddhodana, escolheu cinco homens, Kondanna e outros quatro pertencentes ao clã Sakya, e ordenou que eles seguissem o príncipe. Ao cumprirem as ordens, eles acabaram juntando-se ao príncipe e iniciaram as práticas espirituais também.

Ilustração: inteligência artificial do Canva
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1 Comentário

  1. Verônica disse:

    Essa história é cativante, mesmo tendo mais de 2000 anos. |Eu sempre desejo ler mais.

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