Lama Elizabeth Mattis Namgyel. Foto: Arquivo Instituto Paz & Mente Brasil, tirada durante o retiro 2019 da Lama organizado pela Paz & Mente

Abrindo o Sutra do Coração

A Lama Elizabeth Mattis Namgyel fala sobre um tema que tanto lhe toca, e que é essencial ao despertar: Prajnaparamita


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Tradução: Jana Macedo, com apoio de Cerys Tramontini, Diretora América Latina da MWI

Em dezembro, a Lama Elizabeth Mattis Namgyel irá oferecer um retiro, com tradução para o português, ampliando o tema que mais lhe toca o coração: Prajnaparamita. Chamado de “Abrindo o Sutra do Coração: A Arte da Contemplação”, o retiro inclui ensinamentos, investigação contemplativa, discussão e prática com a Lama Elizabeth e convidados especiais, como Dungse Jampal Norbu, herdeiro da linhagem e filho de Elizabeth, o compositor e músico Chime Mattis, irmão de Elizabeth, e o tradutor Greg Seton. 

O texto abaixo é uma transcrição do mais recente episódio do podcast da Lama Elizabeth, Open Question. É um louvor a este sutra e expressa a devoção da Lama a este tema, completamente crucial para o despertar. 


O Sutra do Coração nos leva a um cenário: à Montanha do Pico dos Abutres, no norte da Índia, onde encontramos uma grande reunião de monges, monjas, leigos e uma comunidade de bodisatvas, cujas mentes estão prontas para despertar por meio de seu compromisso de servir a todos os seres vivos. Há também outros seres presentes, tanto visíveis quanto invisíveis, que se juntam à assembleia em um estado de grande expectativa para receber os ensinamentos do Buda.

Curiosamente, o Buda fica sentado em silêncio durante a maior parte do sutra. Ele exala a energia do despertar e da compaixão, descrita no sutra como “iluminação profunda”. Não há um único átomo em seu corpo ou momento de sua consciência que não esteja imbuído de, e respirando, sabedoria viva. Seu silêncio sugere que o despertar não pode ser capturado em palavras e que a verdadeira natureza de todas as coisas emerge das costuras de nossas ideias.

Do profundo silêncio do Buda, o venerável monge Shariputra corajosamente faz uma pergunta:

“Como deveria treinar um filho ou filha de uma família nobre que desejasse praticar a profunda Prajnaparamita?”

É por meio da pergunta de Shariputra que todo o ensinamento se revela. 

Budistas em todo o mundo reverenciam o Sutra do Coração. Monásticos e leigos recitam sua mensagem profunda em suas respectivas línguas, com melodias rítmicas, tambores e símbolos. Com reverência, entramos em uma experiência do Coração da Perfeição da Sabedoria. Em sânscrito, Prajnaparamita

O termo sânscrito sutra significa “fio” e está etimologicamente ligado à palavra “sutura”. Um sutra é uma coleção de sons e sílabas que, como fios de uma linha, são tecidos ou costurados em um discurso espiritual. O uso da palavra “coração” pelo Buda refere-se à essência – a própria natureza da realidade.

Muitos cantam o Sutra do Coração por pura devoção. Mas saiba que ele contém uma mensagem clara: seu propósito maior é nos lembrar quem realmente somos; apontar a magnificência do mundo em que nos movemos; e nos dar as informações vitais que precisamos para navegar através da beleza e da dor da vida com compaixão e graça.

Como deveria treinar um filho ou filha de uma família nobre que desejasse praticar a profunda Prajnaparamita?”

A pergunta de Shariputra acende uma resposta compassiva do bodisatva Avalokitesvara, cujo nome em sânscrito significa “aquele que nunca desvia seu olhar do sofrimento do mundo”. Ele responde à pergunta de Shariputra, demonstrando o poder dos sons e das palavras para transmitir informações vitais necessárias para o despertar.

Muitos cantam o Sutra do Coração por pura devoção. Mas saiba que ele contém uma mensagem clara: seu propósito maior é nos lembrar quem realmente somos

 

Em quase todo o sutra, Avalokitesvara – por meio do poder da presença iluminada do Buda – descreve a natureza de todas as coisas conhecíveis quando percebidas por uma mente desobstruída, livre de confusão conceitual. Suas palavras são concisas e ele afirma claramente que “Aquele que deseja praticar a profunda Prajnaparamita deve ver desta forma: veja os cinco skandhas como sendo vazios por natureza.”

A palavra sânscrita skandha refere-se às 5 categorias de experiência: formas, sensações, percepções, formações mentais e consciência – a totalidade do mundo de aparências e possibilidades. Tudo está incluído nesses cinco, que compreendem o mundo objetivo que encontramos, momento a momento – seja material ou consciente, sublime ou mundano, e quer estejamos ou não confusos com o que vemos. 

Ao longo do restante do sutra, Avalokitesvara descreve como compreender, com precisão, a natureza dos cinco skandhas. Ele revela que, embora os fenômenos se apresentem em uma variedade infinita, tudo compartilha a mesma natureza: a natureza da vacuidade.

O termo “vacuidade” aqui não se refere a um vazio, a um mero nada. A vacuidade não é uma rejeição à experiência, nem pretende minar o poder e a eficácia do mundo fenomênico. Em vez disso, o vazio se refere ao fato observável de que nada existe fora da natureza dos relacionamentos dependentes.

Não é explicitamente mencionado no Sutra do Coração que tudo surge devido à natureza da interdependência, ou surgimento dependente. No entanto, está implícito e serve como o princípio subjacente para a compreensão da natureza do vazio e de tudo o que pode ser conhecido.

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Lama Elizabeth Mattis Namgyel. Foto: Arquivo Instituto Paz & Mente Brasil, tirada durante o retiro 2019 da Lama organizado pela Paz & Mente

Para nos ajudar a entender a conexão entre a vacuidade e o surgimento dependente, vamos examinar nossa identidade: podemos ser uma mãe ou um pai em relação aos nossos filhos; uma criança em relação aos nossos pais; um irmão ou irmã em relação ao nosso irmão ou irmã. Podemos ser alunos em um contexto, e professores em outro; um paciente quando visitamos o dentista e um cliente na loja. Mas algum desses rótulos realmente captura quem realmente somos?

Todas essas características que usamos para nos definir ganham significado e função apenas em relação. Quem somos nós? Bem, isso tudo depende.

Avalokitesvara explica que, quando procuramos um eu singular, permanente ou independente – fora da natureza das relações – descobrimos que o eu não possui características intrínsecas por si só. 

Então, é porque não podemos nos separar do mundo no qual nos movemos – e do qual estamos sempre cientes, nos chocando contra e interagindo com outras coisas – que somos vazios ou livres de características limitantes. Se não fosse pela natureza do surgimento dependente, tudo seria inerte.

Poderíamos chamar o surgimento dependente de “gênese da expressão”, mas ele não é controlado por uma entidade dominante. Ele não tem começo nem fim. Ocorre sem interrupção, por meio do jogo dinâmico de contingências infinitas, um mundo onde todas as coisas se misturam e influenciam umas às outras, aparentemente empurrando umas às outras para dentro e para fora da existência aparente.

O princípio do surgimento dependente não nega a singularidade de nossa expressão individual, o poder de nossa capacidade de educar nossos filhos com eficácia, ou o funcionamento e a precisão de causa e efeito. Mostra-nos que, para que as coisas funcionem e se movam, têm de ser interdependentes.

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Como cidadãos da grande natureza das contingências infinitas, podemos ler padrões e responder ao mundo ao nosso redor de maneiras poderosas e criativas. E, no entanto, o mundo das aparências e possibilidades nunca se prestará a ser conhecido de forma determinada. O fato da vida resistir à definição não representa uma falha em nossa capacidade de saber. Não precisamos olhar para o mistério como uma limitação da nossa inteligência básica. A capacidade de suportar o mistério pode evocar clareza, curiosidade e humildade. Isso gera um tipo diferente de compreensão.

O fato da vida resistir à definição não representa uma falha em nossa capacidade de saber. Não precisamos olhar para o mistério como uma limitação da nossa inteligência básica

 

E por dentro deste tipo de compreensão, podemos descobrir que o maior respeito que podemos estender a nós mesmos e ao mundo que encontramos é ver que as coisas não se limitam aos rótulos que atribuímos a elas. Quando nos percebemos de acordo com a natureza da vida, ficamos maravilhados.

O Sutra do Coração captura a sabedoria de estar de acordo com a natureza da vida. E se expressa no mantra:

Om gate gate para gate parasamgate bodhi sva ha

Ido, ido, ido além, ido completamente além.

Do que vamos além? Estamos indo além de nossa maneira habitual de ver as coisas, para uma forma mais ampla de compreensão, conhecida como Prajnaparamita, a Perfeição da Sabedoria.

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No final do sutra, o Buda se dirige diretamente à assembleia, pela primeira vez, afirmando a autenticidade da instrução do bodisatva Avalokitesvara. “Excelente, excelente, assim é”, diz ele, “Assim é.”

Toda a assembleia se regozija ao ouvir suas palavras. Suas mentes estão rompendo as costuras dos conceitos limitantes. Eles celebram seu verdadeiro modo de ser, a expressão criativa natural da vida e seu compromisso de navegar pelo mundo com respeito, visão e compaixão.

Eu humildemente concluo este breve, mas sincero louvor ao Sutra do Coração da Perfeição da Sabedoria. Que apenas ouvir seu título possa evocar insight!


  • O retiro Abrindo o Sutra do Coração irá acontecer de 9 a 12 de dezembro de 2021, com tradução para o português. Explore o território onde a prática do Darma encontra a criatividade, com Elizabeth e seus convidados especiais. Inscrições abertas aqui (role a página para versão em português).
  • Este texto é a tradução da transcrição do episódio 208 do podcast Open Question: A Call to Inner Brilliance, uma produção de Michael Velasco, da Middle Way Initiative, com música original de Chime Mattis. Agradecimentos especiais ao Grupo de Tradução de Nalanda pela tradução do sutra. Ouça aqui o podcast em inglês. 
  • Acompanhe o trabalho da Lama Elizabeth no Brasil pelo www.pazemente.com.br.
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