Alunos da Escola Francisco Varela (Fonte: site oficial da escola)

Aprendendo com alegria: SEE Learning e a Escola Francisco Varela

Entrevista com María Rosa Casanova, bibliotecária do Colegio Francisco Varela (Chile), sobre a experiência da escola com o SEE Learning


Por
Revisão: Daniel dos Santos Leite
Edição: Polliana Zocche
Transcrição: Sergio Neveu e Siene Pacher
Tradução: Cecilia Dalotto e Polliana Zocche
Entrevista por: Polliana Zocche

A escola Francisco Varela surgiu de uma aspiração: educação com um olhar para o mundo interno. Embora os caminhos percorridos e métodos necessários para chegar até este objetivo não estivessem muito claros no início, foram o exemplo de grandes seres – como o que deu nome à escola –, a conexão com práticas contemplativas e a ciência da mente que permitiram que esta aspiração se tornasse realidade. 

Desde 2013, quando a escola foi criada, este caminho vem sendo permeado com a contribuição de mestres e mestras que frequentam o ginásio. Isso mesmo: neste local não são realizadas apenas atividades escolares. Lá também é o Espaço Dharmakaya, onde são oferecidos ensinamentos abertos aos estudantes, aos pais e à comunidade. Já passaram por lá professoras e professores como Jetsunma Tenzin Palmo, Tenzin Wangyal Rinpoche e Matthieu Ricard. Desta forma, a escola, que atualmente possui cerca de 400 estudantes de 3 a 18 anos, cria espaços para o cultivo de qualidades para a comunidade como um todo, da maneira como toda educação que reconhece a interdependência deveria ser.

E, como por sorte (na verdade por essa rede interdependente), chegou até a escola o método do SEE Learning – Social Emotional and Ethical Learning (Aprendizagem Social, Emocional e Ética). É o que conta a professora de línguas e bibliotecária María Rosa Rojas Casanova nesta entrevista para a Revista Bodisatva, realizada em uma manhã fria de inverno de 2019, na comuna de Peñalolén, setor da pré-cordilheira dos Andes, em Santiago do Chile.


 

Revista Bodisatva: Você poderia nos contar como surgiu a escola, como ela se conecta ao Francisco Varela, se há algo dele nos métodos que vocês estão utilizando e a conexão com o mundo interno?

María Rosa: A escola é nova, ela nasce em 2013 e surge de uma inspiração e conversa entre o titular da escola, Maurício Fredes, que é budista, e um grande educador que foi nosso diretor até o ano passado, Leopoldo Muñoz. Para este país ele é uma pessoa muito importante, não só porque foi o primeiro homem formado em educação infantil dos anos iniciais (parvulario) no Chile, mas também porque ele teve um papel muito importante nos tempos de ditadura militar. Em 1986, aproximadamente, Leopoldo se transformou em uma lenda viva porque esteve à beira da morte após ser baleado ao tentar evitar o sequestro de Manuel Guerrero e José Manuel Parada, em frente ao Colegio Latinoamericano de Integración. Leo acabou se tornando tão lendário que ele e Maurício se encontraram. Em uma conversa eles me contam que queriam fazer uma educação mais integradora, mais aberta, mais comunitária por um lado, e por outro que se valorizasse e tomasse em conta o lado espiritual das crianças. Com essa conversa chegam à conclusão de chamar a escola de “Francisco Varela”, não que fosse uma escola que levasse um nome sem intenção, mas sim que fosse feito um estudo de por que esse nome – por que a chamamos assim e por que perseguimos certos valores. Assim nasceu esse projeto relacionado a integrar a educação, a ciência – o que parece tão material, intelectual, ao campo espiritual. E também porque há uma camada de intelectuais que rodearam Francisco Varela e que têm muito a ver com a formação da Escola, como Claudio Naranjo, Adela Hoffman, pessoas que se dedicaram ao estudo da educação, do mundo interno, da dimensão emocional e espiritual do ser humano.

Então entramos nessas águas sem tanta clareza, porém muito abertos a tudo que nos permite saber mais sobre a mente e que as crianças conheçam mais suas emoções. E assim certas ideias do budismo foram se inserindo em um contexto mais amplo, apesar de que também trabalhamos com professores que não são budistas ou praticantes. E quais são as decisões que foram tomadas? Que não seguiríamos um currículo normal, faríamos todos os ajustes para que dentro deste currículo houvesse um espaço para que a criança pudesse chegar à escola e sentar-se com tranquilidade. E o que é esse espaço da tranquilidade de encontro? É o que aqui na escola chamamos de círculo. Esse é um espaço que vem sendo muito cuidado e que foi implementado desde o primeiro ano e segue até hoje, em todos os níveis, de forma transversal. É um espaço que a classe tem com seu professor pela manhã, onde não se chega diretamente para a sala de aula, mas há primeiro um espaço de encontro. Os estudantes sentam-se em círculo e, em grande parte dessas horas, de segunda a sexta, eles meditam. Acendemos uma vela, montamos um altar, há uma série de símbolos – que também dependem do professor – e então, geram-se instâncias de debate, diálogos, de meditação, relaxamento, yoga… Experimentamos muito nessas horas, mas o crucial é ser um espaço de contenção. E aí podemos fazer um paralelo com o que tenta promover o SEE Learning, que as crianças cheguem a um espaço que gere consciência do estar aqui, de como ela chegou à escola, se ela pode se reconhecer com o outro, se pode ver, se pode falar das experiências pessoais, dizer como esteve a semana, o fim de semana. Se gera uma espécie de família, de contenção. E é um espaço dinâmico, serve para brincar, para meditar, falar de coisas íntimas, tomar café da manhã. 

María Rosa e alunos em atividade na biblioteca da escola

Outra decisão foi, além de gerar o espaço do círculo, a de integrar dentro da grade curricular da escola a yoga e a meditação. Não como uma disciplina isolada, mas sim em diálogo com toda esta outra área da escola, que chamamos diversidade. É o que as outras escolas chilenas veem como o Projeto de Integração Escolar (PIE), ou onde estão os psicólogos, os psicopedagogos. Em outras escolas, este departamento escolar, onde as crianças que chegam com dificuldades de aprendizagem vão, quase sempre tem uma sala separada. Aqui não. O nosso PIE é onde inicialmente a escola pensava que estaria o diálogo com o departamento da espiritualidade, com uma visão compassiva para as crianças, um olhar mais sábio e pessoal. Assim, há um acompanhamento muito mais consciente das crianças e integrado aos cursos. Todas as classes têm de duas a quatro crianças com algum diagnóstico, suas atividades são integradas às classes com as outras crianças, mas elas são acompanhadas por este departamento de diversidade, onde são feitas avaliações com adequações para elas. Temos um dia aqui na escola em que celebramos a diversidade, tivemos projetos lindos como um que durou muitos anos,com uma escola de cegos que se chamava Escuela Santa Lucía, em Peñalolén, onde trocamos de papéis: ir à escola, brincar, praticar esportes, tocar música com os olhos vendados. Fizemos um projeto audiovisual que está na página da escola e seguimos em contato com eles ao longo dos anos: os estudantes de lá vêm visitar a escola e vice-versa, criaram uma banda… Então ultrapassamos as barreiras de somente cumprir o que o Ministério da Educação pede, pois dizem que temos que integrar as crianças com dificuldades e que para isso é necessário ter toda uma equipe e uma base de integração. É a medula espinhal da escola.

E por fim temos uma gestão cultural e de vinculação com o meio budista. Vários mestres, mestras, monges de outras sangas vieram à escola e falaram com as crianças ou estiveram no Gonpa (ginásio da escola), gerando palestras abertas ou conversas em círculo. Os estudantes têm mais consciência de que a meditação é um recurso caso eles se sintam mal. Sinto que elas têm uma ferramenta extra em relação às crianças que não têm essas instâncias em outras escolas. Elas têm mais consciência de quais são as ferramentas que têm para a vida. Então nós integramos muito a mensagem de Francisco Varela, que é de ter consciência de que um cientista também pode ser uma pessoa que acessa a mente de outra maneira, que pode, inclusive, ter provas científicas de que a meditação ajuda na melhora da saúde, que não é uma crença cega. Outro pilar vem do conhecimento de Claudio Naranjo, com o conhecimento de si mesmo, de nossas reações, emoções. E é aí que nos beneficiamos muito com o SEE Learning, fazê-lo ser prático, que não dependa de ser uma aula de meditação ou do círculo, mas sim que todas as disciplinas possam gerar estes tipos de exercícios, de habilidades de escuta, de fala, de diálogo.

Então o SEE Learning vem como uma forma de dar mais corpo, no cotidiano das aulas, a algo que já é uma visão que vocês têm na escola há algum tempo?

Exatamente, veio para apoiar, reforçar e também para nos ensinar certas práticas que muitas vezes não sabíamos e têm relação com estratégias mais concretas. Por exemplo, nessa aula você pode trabalhar todas estas variáveis e elas podem trabalhar o aspecto compassivo do outro, ou a escuta atenta etc. Ele nos dá um banco de dados, de atividades e estratégias que podemos implementar sabendo que irão funcionar se continuarmos. Caiu-nos como uma luva.

E como foi a conexão com o SEE Learning? Por que escolheram essa metodologia?

Foi como que por sorte. Na verdade, a vida foi nos levando nessa direção. Eu lembro que chegamos ao SEE Learning por meio do embaixador do Dalai Lama na América Latina, Tsewang Phuntso. Ele veio ano passado às atividades da Casa Amigos do Tibet, com que nós temos contato por conta das atividades desenvolvidas no “Espaço Dharmakaya”, que é onde trazemos os monges, pessoas de outras sangas para falar no ginásio da escola. Tsewang veio falar e repassar mensagens do Dalai Lama, e em um desses encontros na Casa Amigos do Tibet conversamos com ele sobre a existência da escola e o que estávamos fazendo. Ele nos contou que estava ajudando um projeto em uma escola em Arica com um projeto onde os professores falavam e estudavam sobre meditação para as crianças, de como era necessário que elas meditassem. Nós nos perguntamos “e por que não fazê-lo em Santiago, em uma escola que já está convencida de que isso é necessário?”.

Foi aí então que surgiu uma conexão relacionada à necessidade de tradução do material do programa ao espanhol. Neste momento o responsável pela área de espiritualidade da escola, Fernando Williams, se ofereceu para traduzir e, em duas pessoas, fizeram a tradução do guia anexo ao programa e das atividades práticas. Quando já estávamos no estágio de tradução e edição, Tsewang nos conectou com os treinadores do SEE Learning, duas pessoas dos Estados Unidos, para nos ajudar na implementação. No começo eram apenas duas pessoas dos Estados Unidos, mas depois se uniram pessoas do Brasil, pessoas daqui do Chile, da Colômbia, e as duas pessoas que íamos receber no começo se tornaram vinte. Tivemos que preparar a escola para que eles ficassem, alguns ficaram em nossas casas. E algo que começou apenas com uma colaboração acabou se tornando um treinamento. Nós, obviamente, fomos dizendo sim para todas essas coisas. Neste momento nós estamos trabalhando na tradução do programa completo, ou seja, capítulo por capítulo, estamos avançando para ter todos esses documentos em espanhol. E assim foi a nossa chegada ao SEE Learning.

E você poderia falar um pouco sobre o que é a pedagogia do SEE Learning, quais são as principais áreas, os eixos?

O SEE Learning é basicamente um programa que visa formar educadores em áreas relacionadas com o caminho espiritual, ou seja, com o budismo em geral, mas que são áreas que não dependem do fato de você ser budista ou não budista. Depende mais de você estar realmente comprometido em querer educar as crianças em seu desenvolvimento emocional e integral. Então, realmente não importa se você acredita no budismo, não acredita, porque no fundo tem se visto que estas áreas, a compaixão, a empatia, a solidariedade, afetam diretamente na maneira como  os alunos se relacionam. Portanto, a guia anexa permite que essas áreas, como o trabalho colaborativo, possam chegar à sala de aula e possam ser usadas conscientemente tanto pelo professor quanto pelos alunos. Ela permite que todas essas práticas realizadas em sala de aula estejam orientadas para alguns desses pilares, e vemos como isso, ao longo do tempo, gera mudanças no relacionamento entre alunos e professores. Trabalha-se a raiva, a empatia, a amizade, o trabalho colaborativo, a escuta, como eu me sinto. Muitos desses tópicos podem estar ligados às suas atividades, independentemente de você estar fazendo uma matéria ou outra.

E como foi o treinamento?

A recepção dos professores ao treinamento foi incrível, fez muito sentido para eles. O treinamento foi conduzido pelo tibetano Tsondue Samphel, professor na Universidade de Emory, nos Estados Unidos, e Christa Tinari, a curriculista. Os dois elaboraram a formação de uma maneira muito dedicada e prática. Muitos dos exercícios que poderíamos ter feito com os alunos foram realizados no treinamento. Se tivéssemos que fazer um exercício de escuta, o fazíamos junto com um parceiro no treinamento. Íamos olhando em nós mesmos como esses sentimentos aconteciam, essas conexões, essas reflexões que surgiam e víamos que sim, fazia muito sentido. Cada professor saiu muito motivado para poder implementar. Há uma atividade que eles chamam de escuta atenta na qual você se senta com um parceiro por um tempo para que um fale ao outro sobre um assunto e este não possa falar ou reagir, ele apenas precisa ouvir o que você fala e vice-versa. Portanto, há todo um exercício no qual se faz consciente o não falar, de não fingir que alguém quer aconselhar ou algo do tipo, apenas escutar. É algo muito interessante e prático. É como aplicar todos esses valores a coisas práticas.

Polliana Zocche conversando na biblioteca da escola com Bashir, estudante, Catarina, mãe de dois estudantes e Alícia, professora de yoga

Você pode falar um pouco sobre o espaço da biblioteca onde trabalha? Como são a dinâmica e o uso da biblioteca pelos alunos e como eles incorporam todos esses valores ao uso do espaço?

Foi criado há quatro anos, mas não pôde ser usado como biblioteca inicialmente porque não havia salas de aula suficientes. Apenas este ano o recuperamos, e o melhor é que lançamos um novo projeto para ele conectado ao trabalho comunitário. Todos estes livros foram doados, as mesas foram doadas, as cadeiras, tudo foi feito com trabalho colaborativo. Fizemos um dia de voluntariado e muitos pais vieram para catalogar, ajudar na organização, comprar plantas. A escada está toda escrita com mensagens dos pais, as cortinas. É um exercício de doação, pois foram contribuições dos pais. Atualmente eles também estão ajudando em turnos de atendimento. Nós pensamos a biblioteca de maneira comunitária. E, por outro lado, tentamos integrar os valores para que a biblioteca não seja apenas um espaço aberto para leitura, mas sim um espaço que promove essa cultura relacionada à vida espiritual, o budismo e meditação, tanto para professores quanto para crianças. Para que qualquer criança possa vir consultar, pedir livros sobre estes temas. E também é o espaço de silêncio da escola. De fato, há crianças que vêm aqui procurando silêncio. 

Além da conexão com os pais, como vocês se conectam com a comunidade? De que maneira isso é feito? E a conexão com o aspecto natural, ecológico? Como são esses processos que vão além da escola fisicamente?

Estamos superconectados com a comunidade por conta do espaço Dharmakaya. Muitos dos pais que estão aqui vieram pelas atividades ali promovidas. Sempre que fazemos atividades abertas nas quais vieram monges ou em conversas sobre outros temas, chegam mais pessoas para conhecer a escola. Às sextas-feiras também temos o nosso mercadinho, que é um lugar de alimentação saudável onde os pais podem vender produtos artesanais, e o critério é que não haja nada industrial, que seja tudo feito por eles. É nesse momento também se abrem as portas para a comunidade. Quando as pessoas de fora vêm comprar e há uma reunião massiva de pessoas, há muita vida aberta aos outros. Em relação ao espaço ambiental, acho que é algo que tem nos custado mais. A escola ainda não possui um sistema de reciclagem. Temos uma horta, mas a horta também tem sido um assunto a ser tratado, porque existem turmas que vão para a horta, especialmente os mais novos, que têm uma hora marcada como se fosse uma matéria, e então eles vão ao jardim para trabalhar. Mas, de qualquer forma, sinto que ainda falta promover o uso da composteira, da horta, integrar a horta à cozinha, ou seja, fazer todo um programa em relação à vida saudável. Sinto que isso ainda não foi feito devido à falta de recursos e também por falta de pessoal. Mas sim, aqui há uma consciência muito importante das crianças em relação à natureza, porque não se vê que joguem lixo no chão ou algo do tipo. O espaço físico também é um espaço muito cercado por árvores. Também houve projetos bonitos, como o de reflorestamento em comunidades vizinhas que não têm vegetação, de limpeza de praias, caminhadas, escaladas para ir conhecendo cada lugar e divulgar a proteção dessas áreas. Penso que a questão ambiental também é superimportante e é algo que sabemos que temos pendente, porque é algo que realmente nos interessa construir de forma mais sólida.


Esta entrevista foi realizada no contexto de produção da edição 32 da Revista Bodisatva, sobre Educação como Transformação de Mundo. Para conhecer outros projetos conectados ao SEE Learning, bem como diferentes iniciativas pedagógicas transformadoras que levam em conta o mundo interno, adquira a revista aqui.

 

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