Arte e espiritualidade: como a cerâmica pode conectar as pessoas ao seu mundo interno

Praticante budista produz malas gigantes a partir de construção coletiva


Por
Revisão: Cristiane Schardosim Martins

A praticante e moradora do Centro de Estudos Bodisatva Caminho do Meio Mariana Wartchow concluiu recentemente sua pesquisa “Arte e Espiritualidade: Budismo e Cerâmica em uma Produção Poética Coletiva”. Nesta reportagem, ela conta para a Revista Bodisatva um pouco dos caminhos percorridos por dentro da arte.


 

Mariana Wartchow é praticante do CEBB desde 2008. Licenciada em Artes Visuais, em seu trabalho de conclusão de curso ela se propôs a entender as relações entre arte e espiritualidade, trazendo um contexto pessoal e uma proposta de prática na qual a cerâmica é um meio pelo qual se estabelece uma relação com a matéria. Essa relação propicia um olhar sobre si mesma e sobre o grupo que acabou se formando como veremos adiante. A cerâmica e o Yoga faziam parte da sua vida desde muito jovem, mas o budismo só foi conhecido posteriormente, na época da gestação da sua primeira filha. A mudança para o CEBB Caminho do Meio se deu no mesmo ano em que entrou para a faculdade de Artes na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mais dois filhos vieram e a aproximação entre arte e budismo se construiu dentro desse cotidiano familiar e de vivência na comunidade budista.

“Com o tempo, eu comecei a associar a cerâmica com a prática. Com as demandas da maternidade, eu tinha certeza de que se fosse sentar para meditar eu iria dormir. Se eu fosse sentar pra ler um texto eu iria dormir. Eu precisava, pra minha saúde mental e pra poder estar presente com qualidade, ter esse tempo pra mim mesma, para me reorganizar. Então, comecei a ir para o ateliê como uma prática: enquanto as minhas mãos estavam ocupadas, a minha mente tinha um espaço para poder fazer reflexões. Às vezes eu ouvia ensinamentos do Lama durante o trabalho com a argila ou utilizava como prática de relembrar ensinamentos”, comenta Mariana. 

Os ensinamentos acabavam se conectando com as formas em que Mariana trabalhava, fosse um vaso, uma esfera ou uma escultura. “Eu tinha esse desejo de transformar em prática e eu senti que me ajudou muito, fez muita diferença pra mim nessa fase da vida. Desde então, eu passei a associar a arte com o Darma, pois ela cabia no meu processo, sem excluir o espaço da prática formal, mas sim como uma forma de manter a mente no Darma. 

 

Projeto Malas Gigantes

Em seu projeto final do curso de artes, Mariana se propôs a construir malas gigantes coletivamente, sendo que um deles foi doado para a Escola Caminho do Meio. A ideia era oferecer uma prática individual fazendo esferas de argila, que depois se tornaram cerâmica para uma construção coletiva. Várias sangas do CEEB foram convidadas para participar. “Parto de uma referência budista com o Mala como inspiração. Mas ao longo do projeto, com a minha formação em licenciatura, passo a pensar de forma mais ampla, que abrange a educação, sem precisar me fixar ao mala e sim deixar como algo mais neutro. Esses colares de contas, na verdade, estão presentes em todas as tradições e também podem estar presentes sem estar vinculados a tradição alguma. De qualquer forma, a ideia principal é da prática, de fazer a esfera de argila olhando pra si mesma, olhando para a própria mente, ver essas esferas furadas podendo ser conectadas e perceber o aspecto do fio que conecta, que é o secreto, que vai ficar escondido dentro das esferas. Quando montamos coletivamente vendo que as várias esferas são vários “eus” se reunindo, e esses “eus” também têm um fio de conexão, isso pode seguir tendo significado como uma prática de meditação, de conexão, de consciência social”, explica.

Para a artista, o mala gigante coletivo pode beneficiar a nossa mente e também a nossa ação enquanto coletivo. Pode criar uma paisagem que ajude as pessoas a conectarem-se com seus aspectos internos. “Esse mala funciona como algo que nos remete àquele grupo, àquela proposta. Usar como aliado esse objeto que se cria como algo que possa ativar a nossa memória mais rapidamente, tendo essa ideia da meditação, utilizando a arte e a cerâmica como aliadas”, sinaliza Mariana. 

 

Construção coletiva

Além da rede do CEBB Caminho do Meio, em Viamão, o CEBB Lajeado participou com a construção de um mala, que hoje está na sede de Lajeado, no local onde a sanga se reúne para os estudos. Outras pessoas não vinculadas ao budismo também participaram, construindo um coletivo variado com relação a idades, gostos e motivações. “É uma alegria que isso esteja acontecendo. Mesmo que as pessoas não cheguem a se vincular e fazer realmente parte da produção, elas podem acompanhar e se alegrar com os resultados que podem ser vistos nas obras que ficam”, avalia a artista.

Referenciais de lucidez para a academia

Para construir seu trabalho de conclusão de curso, Mariana utilizou, em sua bibliografia, textos de grandes mestres como Lama Padma Samten, Tenzin Wangyal, Trungpa Rinpoche, Kaz Sensei, Thinley Norbu e Ponlop Rinpoche. Selecionamos alguns trechos do seu trabalho, disponível neste link, que trazem a conexão entre budismo e arte: 

“A cerâmica envolve uma relação direta com elementos da natureza – processos de secagem e transformação pela queima fazem parte, sendo, portanto, uma ótima ferramenta para olhar a nossa própria relação com a natureza. A educação é olhada em um contexto amplo, não institucionalizado, voltada para um outro tempo, no qual a experiência é o que mais importa, em um processo único para cada um a cada vez. Trazer a questão do indivíduo em relação ao coletivo na produção do projeto e da proposta artística traz reflexões sobre a arte participativa e colaborativa. Ao mesmo tempo, temos um processo individual, na produção, e depois um processo coletivo, no planejamento e na montagem do objeto final, que se torna um símbolo de união”.

Mariana Wartchow 

 

Chogyam Trungpa foi um mestre budista que explorou muito a relação entre arte e budismo. Em seu livro True Perception the Path of Dharma Art, ele ensina:

 

“Envolver-se com o darma visual parece ser bastante direto: trabalhar consigo mesmo, com os outros, consigo mesmo e com os outros ao mesmo tempo. Trabalhar consigo mesmo traz a realização da própria elegância. Trabalhar com os outros significa tentar desenvolver o deleite nos outros. E os dois juntos, elegância e deleite, trazem um sentido básico de riqueza e bondade… um trabalho de arte que traz à tona a bondade e a dignidade da situação. Este parece ser o principal objetivo da arte.

 

Kazuaki Tanahashi, artista japonês, mestre caligrafista, professor e erudito Zen-budista, disse em entrevista para a Revista Bodisatva (Edição 30, 2018, p. 39): “Todo grande professor, ou quem quer que esteja numa busca espiritual, pode ser considerado um artista. A arte da contemplação, da prece, da imaginação, da concepção, da expressão e da comunicação”. No budismo, o caminho para a iluminação é visto como algo circular, que vai da confusão para a iluminação; na caligrafia Zen, esse círculo é chamado enso. No projeto de Mariana, foi trabalhada a tridimensionalidade através da esfera que é uma forma que se relaciona com o círculo. Como diz Kazuaki Tanahashi: “O círculo do caminho é um conceito paradoxal, que indica que cada momento de prática contém seu destino final. Não é um estado perfeito, mas cada passo é completo, com perfeição e imperfeição.”

Thinley Norbu, em seu livro “Dança Mágica: a exibição da natureza intrínseca das cinco dakinis de sabedoria”, traz uma reflexão sobre a arte budista:

“Os artistas budistas criam com o objetivo de se conectar com outros seres por meio de seus elementos interiores puros e, assim, transformar seus elementos externos grosseiros em iluminação por meio dessa conexão… Por meio das intenções do artista sublime, os elementos externos grosseiros são purificados nos elementos internos sutis e se reconectam com os fenômenos internos de sabedoria. Num sentido temporário, isso provê satisfação, porque há o reconhecimento das qualidades internas na expressão interna da arte. Num sentido último, há liberação pela purificação da substância da arte sem essência na iluminação da essência insubstancial”.

Na palestra “O Real e o Ilusório: Conexões entre Budismo e Arte”, realizada em Porto Alegre, Lama Padma Santem ensina:

“A pessoa pode fazer arte de modo comum ou de modo lúcido, com consciência do aspecto luminoso, entendendo o aspecto sutil e secreto. Aquilo pode se tornar um caminho espiritual da ampliação da visão de como as realidades surgem. A mente sonha… olhando uma parede surgem tridimensionalidades… A arte pode conduzir a um caminho da consciência.”

Toda essa bagagem dos mestres foi como um fio condutor para que a prática de meditação e a arte da cerâmica através dos malas gigantes se unissem de forma lúdica e integrativa.

 

Conheça o site da Mariana: http://www.mw.art.br/.

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