Seção Praticantes | Arte peregrina do Darma

Tiffani Gyatso conta sua experiência de aprendizados na arte sagrada de thangkas


Por
Revisão: Caroline Souza e Dirlene Martins

Mongólia, ano 2000

A água dos tanques dos dois motorhomes que cruzavam as estepes há semanas estava quase acabando. Banho apenas nos rios gelados. Um dos motorhomes era tão velho que não passava de 80 quilômetros por hora, porém atravessou as fronteiras da Alemanha, Eslováquia, Ucrânia e Rússia. Eu, aos meus 18 anos, e outros dois amigos morávamos nesse carro, que seguia minha mãe no outro veículo com meu pai.

O que nos levou a essa cruzada foi um chamado que minha mãe ouviu em um sonho, de que ela deveria chegar à Mongólia por esse trajeto. Eu, que tinha acabado de voltar de um período em que vivi com os aborígenes no deserto da Austrália, não queria parar, mas também não sabia para onde estava indo. Mas eu segui.

Minha família nunca praticou uma religião específica, mesmo crescendo com imagens e preces representando cada uma delas. Meus pais sempre foram intensos buscadores espirituais, movidos pela combustão espiritual do fogo em suas almas.

Por isso fizemos mais essa jornada, e a experiência em um país tão diferente como a Mongólia, vivendo em um carro, sempre em movimento, trouxe transformações essenciais em nossas vidas. Até hoje viajar faz parte da minha ‘religião’, não pelo entretenimento aparente, mas por poder estar no mundo do outro, o qual te convida a habitar em um espaço mais humilde de escuta, aprendizado e muita troca.

A identidade que criamos dentro das condições do nosso habitat nos dá a sensação de ser muito real, e de ser a única opção que temos, mas se nos colocarmos em outras situações, especialmente em países muito diferentes, como a Mongólia ou com os aborígines, desenvolvemos aspectos que nunca conheceríamos se não saíssemos do conhecido.

Viajar também é uma arte, porque eu posso ser um mero espectador turista ou um ser em entrega, escuta e transformação.

Iniciação

Nunca me identifiquei como brasileira… é tão evidente que sou do mundo! Fronteiras são limitantes, e sempre tive uma inquietação inevitável de saber o que eu sou além das fronteiras do meu próprio ser. Isso brilhou com intensa determinação quando entrei em um antigo, empoeirado e pequeno templo no meio do nada desse país de estepes e nômades, o templo de Twuhun, perto da antiga capital de Genghis Khan, em Caracórum. Grande parte dele havia sido destruído durante a invasão soviética, e apenas um lama e um jovem monge viviam lá.

Foi ele que nos iniciou no budismo tibetano, ainda muito forte na Mongólia; o título de “Dalai Lama” vem de lá. Perdi a noção de tempo naquela época; acampamos ao pé da montanha do templo talvez por um mês todo. À noite não saíamos pois se ouviam os lobos à solta, mas todos os dias cruzávamos uma floresta com aroma forte de pinha para subir ao templo. Sentávamos no gonpa cercados de estátuas e thangkas, telas em tecido emolduradas com largos brocados decorados, apresentando em sua superfície o panteão de deuses, deusas e budas do budismo tibetano.

Ouvíamos os ensinamentos do nosso querido lama em mongol, russo e tibetano – internalizado puramente de forma intuitiva, claro. Por isso, as imagens das deidades, especialmente as iradas, me aterrorizavam, pois olhava para elas sob o véu do grande mistério que ainda eram para mim e que me atraía de forma irreversível. Essa atração foi o que me fez buscar ainda mais o significado da dança em êxtase de figuras de pele vermelha com cinto de ossos chacoalhando em volta de seus quadris e de budas com dezenas de braços e cabeças.

O primeiro objeto que adquiri, e que me acompanha até hoje, foi um pequeno amuleto de Tara Branca, a qual prevaleceu misteriosa para mim e que também internalizei de forma intuitiva antes de entrar no estudo formal dos símbolos da arte sacra.

Os Budas no Caminho

Estudar a arte de thangkas não foi só uma decisão, mas a consequência de um pulo que dei em um rio de forte correnteza. E não havia volta, eu já fazia parte daquilo, sonhava e via essas imagens por todas partes, e eu só queria desvendá-las e viver em suas moradas.

Foi então que, em 2003, segui rumo à Índia e fui aceita como a primeira ocidental no Instituto Norbulingka, em Dharamsala, morada do povo tibetano em exílio no norte da Índia, onde vivi pelos três anos seguintes.

O mistério dos budas se revelou lentamente para mim, pois, por mais amável que o mestre de artes da escola fosse, eu era a única mulher e estrangeira, e ele preferia não ter de lidar muito comigo, então me dava o mesmo desenho para repetir por semanas! Foi apenas um ano depois que ele começou a considerar que eu realmente queria ficar ali e, assim, abriu mais tempo entre nós, apresentando aos poucos com mais confiança a complexidade das imagens de budas.

Os muitos budas, na verdade, foram uma forma muito sofisticada, encontrada pelos tibetanos, de lidar com qualidades como compaixão ou sabedoria, personificando-as e, assim, podendo visualizar, evocar e se tornar iluminado como tal.

Não são deuses aos quais alguém presta favores ou que moram em um Olimpo, mesmo que venham de histórias contadas assim, porém a leitura é altamente simbólica, especialmente quando se adentra mais fundo no tantra que se usa dessas imagens.

Tradicionalmente, o aluno aprende aos pés do mestre (depois de passar talvez um ano varrendo e servindo chá), para então o mestre começar a passar as proporções que cada deidade tem. Isso é para o total benefício do aprendiz, pois, se o mestre dá a ele todo o conhecimento sem o aluno ter certeza de que o quer ou ter demonstrado isso, seria como dar algo de 20 quilos para um bebê carregar – é incompatível, e a criança nunca mais se interessará por aquilo de novo.

Fotos: Arquivo Tiffani Gyatso

O belo dessa tradição é que ela foi criada inteiramente para nos guiar, alimentar nossas qualidades e polir nossas travas através do desenho, do estudo, das horas que se passa pintando. Profunda dedicação e tempo.

Hoje em dia é quase impossível pensar em se dedicar a uma prática como essa em meio ao nosso frenético mundo, e não são todos que podem passar um ano varrendo os pés do professor (e sem garantias!).

Hoje também temos YouTube e plataformas de ensino on-line, chegamos ao ouro sem a musculatura interna para carregar seu verdadeiro peso. Quando sentimos peso, soltamos ou caímos, tropeçamos. Digo isso pois, ao voltar, em 2006, iniciei as pinturas do templo de Lama Padma Samten, em Viamão (RS), o que durou quase cinco anos, e depois me dediquei a ensinar thangka.

Há grande interesse, pois pouco se ensina sobre as imagens e símbolos do tantra, mas muitos não têm o tempo e o treino de uma disciplina oriental. Creio que, se não tivesse sido treinada no Oriente, eu não teria a dedicação constante (e a voz constante do meu professor na minha cabeça) para completar o templo com todos os seus desafios.

Mas minha paixão por passar o conhecimento da arte sacra tibetana, também tão interligada com o hinduísmo e outras tradições do Oriente, me faz uma eterna aprendiz, e volto à Ásia praticamente todos os anos. Em 2013, comecei a acompanhar anualmente grupos de interessados na arte budista para Índia e Nepal, e vi que ali desabrochava uma oportunidade que eu não tive.

Ofereço justamente o que imagino seja ideal para quem não tem a oportunidade de encontrar thangka como eu tive. Aqui no Brasil, abri, com meu companheiro de vida, o Atelier YabYum, um lugar de praticar arte de thangka, também Geometria Sagrada, a qual estudei mais tarde, e pintura intuitiva, meditação, dança contemplativa e performance.

Tiffani Gyatso. Foto: arquivo pessoal de Tiffani

Jornada à Índia

Os grupos que levo anualmente para Índia buscam conhecer o país através das pessoas e lugares sagrados, por isso monto um roteiro em que visitamos ateliês de diferentes artistas (hoje, tanto tibetanos quanto indianos), e passamos alguns dias com eles, presenciando sua relação com a arte e seu método de ensino. Não são três anos na Índia, mas nessas algumas semanas provoco o convívio próximo com artistas locais, também valorizando a arte popular e religiosa, com talentos inacreditáveis mantidos em segredo dentro de um pequeno ateliê e que é passado adiante pelas gerações. Joias do tempo e da arte.

O próximo grupo sairá no dia 5 de janeiro de 2019, para Delhi, onde juntos desembarcaremos e iremos direto a Dharamsala. Lá faremos nossas atividades e ficaremos hospedados em charmosos chalés duplos ao lado de um rio de grandes pedras, aos pés dos Himalaias. Dessa vez, nosso foco será completar um thangka totalmente: preparo da tela tradicional, noção dos pigmentos minerais, proporção dos desenhos dos Budas e seu significado, técnicas de pintura e finalização com as preces apropriadas.

Em alguns dias receberemos a visita e instruções daqueles que foram meus tutores e visitaremos outras escolas de arte. Circumbularemos templos famosos, como o mosteiro de S.S o Dalai Lama, e tiraremos referências de desenho dos murais incríveis e detalhados de cada templo.

Será também um trabalho em grupo, que terei o cuidado de sincronizar, com a mesma motivação e energia, com atividades em roda, compartilhamento, meditação e um momento para cada um desenvolver seu diário de bordo de forma criativa.

Finalizo aqui abrindo este lindo convite: quem se sente atraído pelo Darma através da arte, tenha essa oportunidade de chegar à fonte no seu tempo e ter essa experiência ainda nesta vida!

 


Workshop / Retiro de Arte Tibetana na Índia

De 5 a 25 de Janeiro, 2019 com Tiffani Gyatso e convidados

Informações: www.tiffanigyatso.com/arte

E-mail: arteperegrina@gmail.com


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