Dzongsar Rinpoche oferece instruções práticas sobre como se preparar para a morte e atingir a liberação
Chegou ao Brasil essa semana, no dia 18 de dezembro, Dzongsar Khyentse Rinpoche. Khyentse Norbu, como também é chamado, é cineasta, escritor e um renomado mestre budista. Ao longo de sua vida, foi aluno de grandes mestres tibetanos como Dilgo Khyentse Rinpoche, Kyabe Sakya Tritzin, Kyabe Dudjom Rinpoche e o próprio XIV Dalai Lama.
Além de ser responsável pelo importante monastério Dzongsar, no Tibete, e pelo Dzongsar College, supervisiona centros de prática e organizações como a Siddhartha’s Intent, a Khyentse Foundation, a 84000.co, dentre outros.
Nossa alegria de ter um grande mestre como Dzongsar Rinpoche oferecendo ensinamentos em diversas cidades do Brasil e da América do Sul é imensa, e como forma de nos engajarmos nesse movimento tão auspicioso, a Bodisatva traduziu um capítulo do seu último livro, Living is Dying: How to Prepare for Dying, Death and Beyond, que está disponível na íntegra para download gratuito no site da Siddhartha’s Intent Global.*
Nesta obra, Rinpoche aborda de forma simples e direta o tema da morte, oferecendo instruções práticas sobre como se preparar para esse momento crucial ao longo da vida. Além disso, orienta-nos sobre o que devemos fazer quando a hora da morte finalmente chegar, de modo a aproveitarmos a grande oportunidade que ela nos oferece para reconhecermos nossa verdadeira natureza e atingirmos a liberação.
De mãos vazias entrei no mundo
De pés descalços, eu parto.
Meu vir, meu ir —
Dois simples eventos
Que se enredaram.
Kozan Ichikyo
Sem precisarmos fazer absolutamente nada, o processo pelo qual nós naturalmente passamos vai nos colocar cara a cara com a base da liberação. O grande Chögyam Trungpa Rinpoche famosamente descreveu essa base como “a bondade básica do ser humano”. No momento da morte, a mente se separa do corpo e, por uma fração de segundo, todos nós experienciamos a nudez da nossa natureza de buda, tathagatagarbha. Nessa fração de segundo, se a base da liberação for apontada e nós a reconhecermos, seremos liberados.
Colocando de outra forma: se você morrer num ambiente favorável, se uma pessoa qualificada estiver presente nessa hora para apresentá-lo à sua natureza de buda, e se você estiver receptivo a essa apresentação, poderá ser liberado. Portanto, sim, o momento da morte oferece uma oportunidade imensa.
O ato de ter a base da liberação apontada para você causa uma impressão poderosa no seu alaya. Assim, mesmo que você não se libere na hora da morte, na sua próxima vida, quando ouvir palavras como “natureza de buda”, “tathagatagarbha”, “bondade básica do ser humano” e “base da liberação”, elas soarão familiares ou trarão uma sensação de déjà vu, — ambos são sinais de que você é um bom recipiente para a prática de Mahasandhi.
Neste exato instante, sua natureza de buda está envolta pelo casulo do seu corpo físico, dos rótulos e nomes que você atribui a todos os fenômenos, das distinções que você faz, e dos seus hábitos, cultura, valores e emoções. O propósito inteiro do Darma do Buda é nos libertar desse casulo. Mas, para que possamos entender plenamente essa libertação, precisamos primeiro conhecer a base da liberação.
É mais ou menos assim: imagine que você está sentado num sofá, numa sala muito pequena. De repente, tudo o que você quer é dançar. Então, você move o sofá para a sala de jantar. Você consegue mover o sofá porque, não importa o quão pesado e volumoso ele seja, ele é móvel, e o espaço para onde você o leva é intrinsecamente disponível.
Explicando de outra forma, a base da liberação — também chamada de “base do despertar” — é algo como um estado de sonho acordado. Quando temos um pesadelo, por mais aterrorizante que seja a experiência, nada acontece de fato porque, no momento em que acordamos, o pesadelo se dissolve sem deixar nenhum traço. O fato de que nada acontece é “a base da liberação”, a “natureza de buda”.
Assim, se não há nenhuma aranha na sua cama antes de você deitar, enquanto você dorme e quando você acorda, por maiores e mais cabeludas que as aranhas do seu pesadelo sejam, não há nem nunca houve uma aranha na sua cama. Em outras palavras: você não é o seu sonho. Ninguém experiencia sonhos de forma constante, apenas ocasionalmente. E porque você não é o seu sonho, você pode acordar. Se você o fosse, nunca seria capaz de despertar.
Mas é claro que todos esses exemplos e argumentos são baseados em conceitos budistas específicos. Sempre me pergunto se alguém que não é budista e, portanto, não conhece o jargão budista usado para descrever esses métodos seria capaz de aproveitar a oportunidade que a morte oferece. Talvez a morte só seja uma oportunidade quando olhada desde uma perspectiva budista.
Os grandes yogis budistas do passado, como Milarepa, costumavam ansiar de todo o coração por morrer em um local solitário e completamente sozinhos.
Ninguém para me perguntar se estou doente,
Ninguém para chorar minha morte:
Morrer sozinho neste eremitério
É tudo o que um yogi pode desejar.
Que os homens não saibam da minha morte,
E que os pássaros não vejam meu cadáver apodrecer.
Se eu puder morrer em retiro nessa montanha,
O desejo deste ínfimo ser se realizará.
Como um praticante budista, ainda que você saiba de cor e salteado que a morte é iminente e inescapável, provavelmente sua agenda estará sempre cheia de reuniões de trabalho e de eventos sociais. Quaisquer que sejam as suas crenças, haverá sempre umas férias de verão a serem planejadas, ou um natal em família, ou um jantar de ação de graças, ou uma festa de aniversário. Contudo, como eu já mencionei, não há nenhuma garantia de que qualquer um dos seus planos se realizará de fato. Agarrar-se à crença de que tudo vai dar certo apenas atiça a fogueira da decepção — lembre-se disto, é importante. A maioria dos problemas mais sérios da humanidade se origina da esperança cega e de suposições irracionais.
Quando a morte for se aproximando, tente desistir das suas preocupações mundanas. Pare de se preocupar com a sua família. Pare de fazer planos. Pare de pensar sobre o que você não conseguiu alcançar e sobre todos os compromissos da sua agenda.
Se você for corajoso e se sua situação lhe permitir fazer escolhas, normalmente é melhor não contar para o seu círculo maior de amigos e conhecidos que você vai morrer. Sobretudo para as pessoas espirituais, é importante se distanciar de preocupações mundanas desnecessárias que possam causar apreensão e ansiedade no momento da morte. Tantrikas devem, é claro, contar para o guru e para os amigos espirituais próximos que talvez sejam capazes de oferecer ajuda espiritual durante o processo do morrer e além. Mas tente se afastar dos seus amigos e familiares mundanos. Filhos(as), irmãos, irmãs, pais e mães não budistas muito dificilmente compreenderão o aspecto espiritual da sua morte, e sua dor e pesar poderão facilmente distraí-lo e preocupá-lo.
Os ensinamentos budistas recomendam que, quando a morte estiver chegando, nós sigamos o exemplo de um veado ferido e nos retiremos para um local solitário. Entretanto, na nossa vida mundana de hoje, é muito difícil que nós de fato consigamos escolher morrer sozinhos. Imagine o escândalo público que a mídia faria, as teorias conspiratórias e os processos judiciais que se seguiriam à descoberta de um cadáver em decomposição semanas após a morte! Para a maioria de nós, a total solidão na morte será impossível. Contudo, o que nós podemos controlar é quem sabe e quem não sabe sobre a iminência da nossa morte.
Traga à mente cada um dos seus pensamentos e atos vergonhosos, egoístas, negativos e confesse-os todos. Se você for um tantrika, também traga à mente e confesse todos os samaias, votos e compromissos quebrados. Se puder, faça essa confissão cara a cara, seja para um lama ou para um(a) irmã(o) do Darma. Se nenhum dos dois for possível, confesse mentalmente. Em seguida, tome refúgio e renove seus votos de Bodisatva. Idealmente, tantrikas deveriam pedir a um(a) irmã(o) vajra que segue o mesmo guru para testemunhar a reafirmação dos seus votos de Bodisatva e Vajrayana.
Comece a recordar a si mesmo sobre o que acontece no “doloroso bardo do morrer”. Lembre-se de que os estágios da dissolução podem acontecer todos ao mesmo tempo, um depois do outro ou numa ordem diferente, dependendo da sua situação particular. Portanto, é vital que você se familiarize com todos os detalhes antes de morrer. Se você sabe que vai morrer em breve — se foi diagnosticado com uma doença terminal, por exemplo — deve imediatamente retornar a estes ensinamentos para que, na morte, você saiba o que está acontecendo.
Para os budistas, a mais simples das respostas à pergunta “como devo me preparar para a morte?” é: tome refúgio e gere bodicita.
O alicerce da sua preparação para a morte é a tomada de refúgio, que lhe apresentará muito do que você precisa saber e fazer. Despertando bodicita e “pensando grande”, você encontrará a coragem e a determinação necessárias para continuar na direção do seu objetivo de iluminar todos os seres, incluindo você mesmo, aconteça o que acontecer.
À medida que você for se aproximando cada vez mais da morte, pense sobre e contemple bodicita tanto quanto puder. Inicialmente, isso vai lhe parecer falso, mas só porque você não acredita que é capaz de despertar a bodicita genuína. Desde este estado de espírito, é fácil se sentir decepcionado consigo mesmo e se considerar uma fraude. Pare de pensar assim! Tudo o que você precisa para gerar bodicita é o desejo de fazer os outros felizes, e você tem esse desejo. Você é generoso e bom. Você já fez pessoas felizes muitas vezes ao longo da sua vida, e fazê-las felizes te alegrou. Lembre-se disso tudo, pois isso prova que você tem a habilidade e a capacidade de querer fazer todos os seres sencientes felizes. Confie nessa habilidade. Desperte e desenvolva o desejo de ajudar.
É claro que haverá momentos em que você vai ansiar por dirigir sua BMW numa autoestrada alemã pela última vez. Ou, ao olhar para aquela mala tão querida, talvez você deseje profundamente visitar a Índia antes de morrer. Ou quem sabe você sinta vontade de viver o suficiente para ver sua sobrinha linda e gordinha ou seu sobrinho magrelo se casar. Nessas horas, é importante contemplar a bodicita absoluta.
Será difícil pensar sobre a bodicita absoluta quando você estiver morrendo e na hora da morte. Por isso, contemple-a enquanto ainda está vivo.
Pense:
A vida é uma projeção, a vida é uma miragem;
A morte é uma projeção, a morte é uma ilusão;
O nascimento é uma projeção, o nascimento é um sonho;
A própria existência é uma projeção, esta existência é um sonho.
Até mesmo o sabor do café é uma projeção, até mesmo o café é uma ilusão.
Lembre-se da natureza ilusória do samsara, por mais artificial ou falso que isso pareça — ideias costumam soar falsas até que a gente se acostume a elas. Esse fingimento é a melhor preparação para o momento da morte. E quando a morte chegar, você realmente vai precisar convocar toda a sua coragem.
Recordar que a vida é tão ilusória quanto um sonho ajuda a fazer com que vida e morte pareçam pouco mais do que um pesadelo. Morte e vida são ilusões, mas isto não significa que elas não existam. Café tem sabor de café, não de suco de laranja; ouro é ouro, não é latão. Aceitar que vida e morte são ilusões é reconhecer que tudo o que nós vemos e sentimos é uma projeção humana. Café não é café para um besouro; suco de laranja não é suco de laranja para um camelo; ouro não tem valor para um cachorro. Algumas projeções parecem valiosas enquanto outras parecem inúteis, e você deve distinguir entre as duas com base nos valores que aprende através de projeções humanas.
Se você tiver a sorte de saber que irá, quase certamente, morrer dentro de um ano, um mês ou uma semana, então é claro que deve se concentrar na sua própria prática. Foque nas práticas mais fáceis porque você já vai morrer: não terá tempo de aprender uma nova filosofia ou de se acostumar a uma nova técnica, ou outra coisa do tipo. Para você, a prática mais importante, e que também é a mais fácil e a mais compatível com todos os seres, é se render ao Buda, ao Darma e à Sanga tomando refúgio e, se for um praticante Mahayana, gerar bodicita. Se envolva de pleno coração com estas práticas e faça preces de aspiração.
Se você for um tantrika, ofereça seu corpo na prática de Kusali enquanto ainda estiver vivo. Esta prática é particularmente boa porque ela se assemelha à prática de transferência da consciência no momento da morte (phowa).
Falando em termos práticos, uma vez que você souber que sua morte é iminente e certa, tente garantir que será feito um bom uso da sua propriedade e de seus pertences. Ofereça o que quer que você possua aos seres sencientes e à propagação do Darma — mesmo as menores coisas, como agulhas e linhas. Oferecendo tudo ao Darma, você se torna destemido. Também é bom fazer oferendas a instituições de caridade, hospitais, escolas e assim por diante.
Ainda que você seja suficientemente atlético e saudável para ganhar do Michael Phelps nos 200 metros borboleta, nunca é cedo para começar a se preparar para a morte.
Quando estiver pegando no sono, tente fazer a prática mencionada na página 47 (do livro Living is Dying, do qual este capítulo foi extraído). Convença-se a si mesmo de que você vai morrer durante a noite e anseie por renascer instantaneamente na terra de Amitaba. Quando acordar na manhã seguinte, lembre que toda a existência fenomenal é temporária.
Se sonhar, recorde-se de que o sonho é um bardo.
Originalmente, este capítulo foi escrito especificamente para budistas, mas, na verdade, qualquer um pode praticar estes métodos: budistas experientes, aqueles que recém descobriram os ensinamentos do Buda, agnósticos, ateus, aqueles que se importam com o morrer. Todo mundo.
*Capítulo extraído do livro Living is Dying: How to Prepare for Dying, Death and Beyond (2018), escrito por Dzongsar Khyentse Rinpoche e disponível na íntegra para download gratuito no site da Siddhartha’s Intent.
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5 Comentários
Inspirador o texto e importantíssimo para o nosso viver e o morrer. gratidão !
O livro tibetano do viver e morrer também é uma super ajuda para o tema.
Muito grata!!! 🙏🙏🙏
Estou aliviado.
Se a vida é como um sonho
A morte é como o sono
Vou dormir
Pra ver se acordo pra vida _/\_
Gratidão aos mestres.