Como lidar com o luto quando a equanimidade não é suficiente

Nosso caminho não é sobre escapar deste mundo, mas sobre nos tornarmos mais íntimos com ele.


Por
Revisão: Carol Franchi
Tradução: Victor Bossard Quinderé

David Loy é professor, escritor e professor Zen na tradição Sanbo Kyodan do Zen Budismo Japonês. Seu livro mais recente é Ecodharma: Ensinamentos Budistas para a Crise Ecológica. Ele estará no Brasil de 01 de maio a 07 de junho de 2024 participando de diversas palestras e eventos de Norte ao Sul do país.

No texto a seguir, publicado originalmente pela Tricycle, ele explora a complexidade do luto e como a busca pela equanimidade pode não ser suficiente diante das tragédias. Ao lidar com a efemeridade da vida, ele destaca a importância de enfrentar completamente o luto e abrir-se para a intimidade desse processo, questionando o significado de nossa existência e como escolhemos passar o tempo que nos é concedido.


Às vezes dizem que a vida é um presente precioso, mas eu me pergunto se essa é a melhor metáfora. Seria melhor entender a vida como um empréstimo? Um empréstimo que pode ser cobrado a qualquer momento, às vezes sem aviso prévio. Somos lembrados para nunca a considerará-la como garantia. Isso torna nossas vidas ainda mais preciosas?

Naturalmente, buscamos estabilidade e segurança, mas os ensinamentos budistas enfatizam que tudo é impermanente e insubstancial. O mundo não é uma coleção de coisas separadas: é uma confluência de processos interativos, e esses processos incluem você, eu e todos que conhecemos. Isso significa que não há nada a que se agarrar, e ninguém a quem se agarrar. Shunryu Suzuki, fundador do Centro Zen de São Francisco, disse que o desapego não se trata de se livrar das coisas, mas de aceitar que elas passam.

Um aluno perguntou ao mestre Zen Unmon: “Qual é o objetivo de uma vida de prática?” Ele respondeu: “Responder apropriadamente.” Praticamos não para transcender o mundo, mas para transcender nossos egos. Nosso caminho não é sobre escapar deste mundo, mas sim sobre nos tornarmos mais íntimos com ele. Mas como nós, que vivemos em Boulder no  Colorado (EUA), por exemplo, respondemos apropriadamente a eventos como o ataque a tiros no supermercado que matou dez pessoas há um ano, em 22 de março de 2021, ou o incêndio florestal que destruiu mais de mil casas ao leste da cidade em dezembro de 2021?

Na tradição budista, existem respostas diferentes, porque existem diferentes maneiras de entender nossas emoções. Uma resposta é que nossa prática nos ajuda a encontrar um lugar de equanimidade e serenidade imperturbáveis que é impermeável à tragédia. Não importa o que aconteça no mundo, estamos em paz. Aceitamos isso, não porque é o que queremos que aconteça, mas porque é o que aconteceu. Há alguma sabedoria nisso, eu acho, mas não o suficiente. Parece um exemplo do que o Zen chama de “apego ao vazio”. Há algo dualista nisso: nos dissociamos de nossa experiência do mundo.

O poeta japonês e mestre Zen Ryokan Taigu foi questionado uma vez: “Não há como evitar calamidades?” Ryokan respondeu: “Quando você encontrar uma calamidade, encontre-a completamente. Esse é o maravilhoso dharma de evitar calamidades.” Mas como enfrentamos completamente calamidades como tiroteios em massa e incêndios florestais incontroláveis?

No centro de Londres, há um memorial para as vítimas do ataque terrorista ao World Trade Center. A inscrição diz simplesmente: “O luto é o preço que pagamos pelo amor.” Isso é tudo. Nosso luto é a homenagem que prestamos ao que amamos. Então, nunca lamentar seria nos fechar para o amor. Isso aponta para outra maneira de responder. Em vez de tentar evitar o luto, podemos enfrentá-la completamente, abrindo-nos para ele e nos tornando-nos íntimos dele?

Muitas vezes resistimos a isso. Temos medo de sermos inundados por uma dor insuportável. Preocupamo-nos em ficar presos em um lugar tão escuro e pesado. Esquecemos que o luto, também, não é uma coisa, é outro desses processos impermanentes, com sua própria dinâmica —  às vezes avassaladora, às vezes recuando. O turbilhão de emoções é tão poderoso e disruptivo, mas os turbilhões não duram para sempre. Desviar o olhar geralmente piora. Assim como em nossa meditação, precisamos confiar no processo e deixar que ele faça conosco o que precisa ser feito. É assim que prestamos homenagem ao que amamos e perdemos. É assim que ocorre a cura.

A cura não significa que o processo de luto esteja concluído. Mas quando o turbilhão diminui, podemos descobrir que somos uma pessoa diferente, talvez vivendo em um mundo diferente. A desorientação pode cortar através das bobagens de nossas preocupações habituais. Perceber tão diretamente e profundamente a fragilidade da vida nos encoraja a perguntar o que é realmente importante. Somos confrontados com o koan mais crucial de todos: o que eu realmente quero fazer com o tempo que me resta — com este empréstimo precioso?

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