Como permanecer estáveis e motivados diante da crise do clima

Três professores de darma nos mostram como ativismo, compaixão e uma conexão mais profunda com a natureza podem fazer a diferença.


Por
Revisão: Carol Franchi
Tradução: Leonardo Collares
Entrevista por: David Loy, Roshi Joan Halifax e Mark Coleman a Julie Flynn Badal

Em agosto de 2021, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas publicou um cronograma preocupante do aquecimento global que indicava um aumento inevitável e catastrófico de 1,5°C até 2040 devido às emissões globais de carbono. Seguiu-se uma sequência atordoante de alertas de emergência. Incêndios florestais, ondas de calor, secas, inundações e furacões fustigaram o planeta em ritmo implacável. Tórrida e brutal, essa temporada parecia oferecer um vislumbre do abismo que se aproxima.

São tempos de tensão e ansiedade. Parece óbvio que meditar não vai prevenir os desastres já incorporados à equação climática. No entanto, resta muito a ser salvo e transformado, inclusive em nossos próprios corações e mentes.

O colapso dos nossos sistemas climático e ecológico levanta muitas questões para praticantes budistas. Qual é a reação mais adequada considerando a natureza, a escala e o ritmo da crise? Como nos mantemos estáveis quando o chão parece ceder abaixo de nós? O que o budismo pode nos oferecer nestes tempos de medo e perdas avassaladores?

A revista Tricycle pediu a três professores de darma – David Loy, Roshi Joan Halifax e Mark Coleman – que compartilhassem sua sabedoria a respeito de como responder aos desafios da crise climática.


David Loy propõe ativismo engajado

Professor de Zen e membro fundador do Centro de Ecodarma Rocky Mountain, David Loy diz que a crise climática é possivelmente o maior desafio que o budismo já enfrentou. “Se não pudermos responder a isso”, diz ele, “o budismo se tornará irrelevante”. Seu livro Ecodarma, publicado recentemente, explora a relação entre o caminho budista e a crise ecológica.

Embora os ensinamentos originais do Buda não abordem diretamente a mudança do clima, ele acredita que o Darma, especialmente o caminho do bodhisatva, é um recurso valioso para ativistas e para todos os que estão respondendo ao chamado por mudança. Nossa tarefa agora, diz Loy, é fazer o melhor que pudermos sem saber se isso fará qualquer diferença. Comprometer-se a salvar nosso planeta, embora sabendo que é impossível atenuar todo o dano que já infligimos. “Não podemos nos apegar a resultados. Devemos agir porque é a coisa certa a fazer.”

Loy defende uma leitura mais ampla dos ensinamentos, em que a transformação social por meio do ativismo seja tão importante quanto qualquer coisa que possa acontecer na almofada de meditação, e acredita que as comunidades que formarmos por ativismo engajado servirão como nossas fortalezas. “Precisamos interpelar e desafiar as instituições de incrível complexidade e poder cujas políticas impactam o meio ambiente e o clima”, diz. “A ação individual não é suficiente. Assim como não é suficiente focar em nossa própria pegada de carbono.”

Àqueles que estejam sentindo indignação ou ansiedade por nossos ecossistemas cambaleantes, Loy oferece uma contemplação em três partes para dotá-los de ferramentas de engajamento em face de desafios que se agravam.

  • 1. Autoavaliação impiedosa. Faça uma avaliação minuciosa de tudo o que você tem a oferecer ao mundo. Considere sua formação, competências, interesses, habilidades, idiomas, experiência de vida, redes de contatos, contexto geográfico, ativos, trabalho, saúde e idade. 
  • 2. Oportunidades realistas. Explore todas as oportunidades possíveis de se envolver e servir que estejam alinhadas a seus recursos, identidade e conjunto de aptidões.
  • 3. Reconheça paixões. Use ferramentas contemplativas tais como meditação para entrar em sintonia com o que deseja de coração. Reflita sobre quais possibilidades de engajamento o fazem sentir vivo e apaixonado. Se você seguir a energia do coração, terá menor risco de esgotamento. É importante encontrar alguma alegria no trabalho para desenvolver resiliência e sustentabilidade.

Roshi Joan Halifax recomenda comparecer com compaixão

Roshi Joan Halifax, fundadora e abadessa do Centro de Meditação Zen Upaya, em Santa Fé, EUA, conta que, quando se  tornou ativa nos movimentos sociais dos anos 60, ninguém jamais previu que nossos problemas seriam tão generalizados, problemáticos e complexos como são agora. “Pensávamos muito sobre responsabilidade pessoal”, explica. “Não pensávamos em termos de responsabilidade global. Nunca previmos a escala do que está acontecendo agora, com a catástrofe climática e a virada política em todo o mundo.”

Sua prática budista e décadas de trabalho em cuidados paliativos têm-na ajudado a lidar com esta nova era e responder a ela. Como ex-capelã de hospital, Halifax vê todas as formas de morte como um rito de passagem sagrado que merece nossos cuidados. Acredita que podemos trazer uma qualidade de presença, dignidade e serviço ao lidar com luto e perda relacionados à crise climática. “Em cuidados paliativos, existe essa noção de acompanhar. É isso que um capelão faz”, diz ela. “Não se trata de cair no vazio ou na futilidade. Compaixão significa atender às coisas como elas são, estar presente, sentir preocupação, considerar o que realmente servirá.”

Ela considera o momento atual uma profunda apoteose e uma oportunidade de “acompanhar” o sofrimento ao nosso redor. “Não podemos mais contornar o que está acontecendo com o planeta”, diz ela. “Fomos arrancados do antigo modo de vida de forma radical e repentina. Esse processo de separação e dissolução é uma oportunidade incrível de mostrar compaixão e voltar-se para a verdade do sofrimento e suas causas, ganância, ódio e delusão.”

O budismo pode ser especialmente poderoso nesta conjuntura, ela diz, porque nos oferece ferramentas para rastrear nossa experiência momento a momento e corrigir o rumo, mesmo nos tempos mais difíceis. “Podemos continuamente nos perguntar o que estamos aprendendo e como podemos usar esse conhecimento para nos aprofundar e crescer”, afirma.

A fim de desenvolver competências para servir de modo compassivo e sustentado em favor da transformação social e ecológica, Halifax ensina uma intervenção prática com o acrônimo GRACE (graça, em inglês) para ajudar os praticantes a lembrar a sequência.

  • 1. G corresponde a gathering attention, trazer a atenção. Aqui usamos as ferramentas da atenção plena (mindfulness) para nos assentarmos no momento presente. A qualidade da nossa atenção é essencial. Nossa atenção deve ser panorâmica, inclusiva, imperturbada, sem julgamentos e reflexiva como um espelho.
  • 2. R remete a recall intentions, relembrar nossas intenções. Colocamos o foco na área de interesse e geramos clareza em relação ao nosso propósito. Nossas intenções devem basear-se num genuíno senso de conexão e preocupação com o bem-estar dos outros.
  • 3. A indica attune to our own embodied experience, perceber nossa própria experiência incorporada. O corpo é um amplo repositório de informações que frequentemente deixamos de reconhecer. Pare um momento para se conectar com as sensações da respiração e do corpo físico, com o fluxo de sentimentos que emanam do coração e com os pensamentos que vêm da mente na forma de aversões, atrações e vieses.
  • 4. C lembra consider what will best serve, considerar o que servirá melhor. Determine a resposta mais apropriada com base em intenções altruístas. Podemos sintonizar nossa vulnerabilidade com uma atitude de humildade para ganhar perspectiva e enxergar uma variedade de causas e condições. A partir daí, intuímos o que pode servir melhor.
  • 5. E sugere engage in ethical action, engajar-se em ações éticas. Fazemos nosso melhor para nos envolvermos, servirmos e agirmos para um bem maior, ao mesmo tempo que abandonamos preocupações egoístas e qualquer apego aos resultados.

Mark Coleman incentiva um relacionamento mais profundo com o mundo natural

Mark Coleman, professor sênior do Centro de Meditação Spirit Rock e autor de Awake in the Wild (“Desperto na natureza”, em tradução livre), responde à crise ecológica com base no pressuposto de que as pessoas trabalham para proteger aquilo que aprenderam a amar. Há mais de uma década, vem liderando retiros na natureza com o objetivo de ajudar meditantes a fomentar uma conexão amorosa com o mundo natural. Um de seus próximos retiros “Despertos na natureza”, previsto para ocorrer no Monte Shasta (EUA), teve que ser transferido repentinamente devido ao risco de incêndios florestais, sublinhando a urgência desse trabalho.

“Na Califórnia, é impossível sair e não ver sinais dos incêndios. Onde quer que eu vá, penso que vai queimar”, diz Coleman. “A realidade agora é essa. Temos que ser fluidos e engenhosos para lidar com ela e nos adaptarmos.”

Ele espera que seus retiros ajudem a promover um amor mais profundo pela vida na Terra e a despertar um senso de guarda, zelo, ação e interesse. Considera os princípios do darma acessíveis quase sem esforço aos participantes dos retiros em ambientes naturais. Diz que exemplos de impermanência e interdependência são abundantes e óbvios uma vez que saímos ao ar livre. Na natureza, temos mais acesso ao luto e à gratidão, o que ajuda a desenvolver resiliência e conexão neste tempo de grande perturbação. “É mais difícil acessar nossa dor sentados dentro de casa”, diz Coleman. “Precisamos ser capazes de sentir e processar as emoções para não ficarmos paralisados. A natureza ajuda a fornecer o recipiente para sentir e trabalhar com esses sentimentos.”

Praticar ao ar livre nos ajuda a experimentar estados emocionais mais sociáveis, como intimidade, maravilhamento, admiração, reverência e, em última análise, amor. “Pode acontecer de nos apaixonarmos por um gavião, ou por uma lagarta, ou por uma pedra, e nossos corações se abrem”, diz Coleman. Esses estados nos ajudam a cultivar um senso de estabilidade interior para que não nos afoguemos em notícias negativas. “Os dados podem ser paralisantes, de tão sombrios”, acrescenta. “Se existirmos num estado mental de desespero, perderemos a beleza da asa de um pássaro azul ou de uma pequena flor de jasmim. Podemos esquecer que ainda há narcisos na primavera.”

Coleman compartilha algumas práticas de seu livro para nos ajudar a sair e aprofundar nosso relacionamento com o mundo natural.

  • 1. Caminhada da Bondade Amorosa. Saia para uma caminhada na floresta, num parque ou na praia. Aproxime-se daquilo que chamar sua atenção, talvez um ácer, um tremoceiro, uma flor, ondas na praia. Note o que atrai seu interesse. Deixe-se fascinar e absorver em relação ao tema de interesse. Perceba sua respiração, o som de seus passos, sua frequência cardíaca e a temperatura de sua pele. Lembre-se do mantra clássico da bondade amorosa. Que você esteja seguro. Que você tenha saúde. Que você seja feliz. (Se desejar, você também pode criar seu próprio mantra adaptado às suas intenções específicas.) Envie esses votos de bondade a uma madressilva, rã-touro ou cerejeira de sua escolha. Permita que tudo que você vê abra seu coração desse modo. Finalmente, ofereça a si mesmo as mesmas bênçãos que ofereceu a outros no caminho.
  • 2. Torne-se um Participante Engajado. Encontre um lugar tranquilo ao ar livre para contemplar, talvez um campo, um tronco ao lado de um riacho ou um trecho de praia. Tire um momento para ver o local como um observador casual. Passeie com seus fones de ouvido ou deixe sua mente fazer listas ou planos para mais tarde. Note a sensação dessa experiência desconectada. Em seguida, tire as meias e os sapatos. Sinta seus pés e dedos na terra. Registre a pressão e a densidade de seu corpo no chão. Sinta as mudanças sutis de peso, a temperatura do solo, a grama fazendo cócegas na pele, os dedos afundando na areia. Agora cave o solo com as mãos. Sinta a textura e os cheiros. Como uma criança, deixe-se brincar com a terra, a areia, a grama, as pedras. Desenhe no chão com um graveto. Observe como seus sentidos ganham vida. Agora sente-se com esse senso de consciência aberta. Solte todos os planos e histórias presentes na mente. Reflita sobre como esse contato sensorial e íntimo mudou sua relação com a vida ao seu redor.
  • 3. Sintonize a Música do Lugar. Esta é uma prática para ajudá-lo a desenvolver intimidade com seu lugar preferido na natureza. Convém passar algum tempo nesse local todos os dias ou pelo menos uma vez por semana. Visite o local como visitaria um bom amigo com quem mantém uma conversa permanente. Durante a visita, ouça o que essa terra possa estar dizendo. Por exemplo, sintonize o canto dos pássaros nas copas das árvores ou o farfalhar no chão da floresta. Observe pegadas ou dejetos de animais nas trilhas. Experiencie o lugar com os olhos abertos e fechados. Deite-se no chão e fite o céu. Observe as mudanças de luz, clima, temperatura, estações. Sinta a energia do lugar e confie na sua reação a ela. Tome o tempo necessário, sem pressa. Sente-se com os silêncios entre os sons. Ao sentar-se, observe o que você traz para o relacionamento com esse lugar e como isso pode mudar ou se aprofundar com o tempo.

David Loy está participando de diversos encontros, palestras e retiros no Brasil. Confira a agenda em cebb.org.br/david-loy


David Loy é professor universitário, escritor e professor de Zen na tradição Sanbo Kyodan do Budismo Zen japonês. Seu livro mais recente é Ecodarma: Ensinamentos budistas para a urgência ecológica (Bambual Editora, 2021).

Roshi Joan Halifax é professora budista, abadessa do Centro Zen Upaya (Santa Fé, EUA), ativista social e autora de muitos livros, incluindo À beira do abismo: encontrando liberdade onde o medo e a coragem se cruzam (Lúcida Letra, 2021).

Mark Coleman ensina meditação Vipassana no Centro de Meditação Spirit Rock (Woodacre, EUA), e é autor de Make Peace with Your Mind (“Faça as pazes com sua mente”, em tradução livre) e Awake in the Wild (“Desperto na natureza”, em tradução livre).

Julie Flynn Badal é uma escritora e educadora residente no Brooklyn (Nova York, EUA). Sua empresa, Working Well, oferece oficinas de prática contemplativa para indivíduos e organizações. Está terminando um livro sobre cultivo da saúde e do bem-estar em tempos atribulados.

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