Dar ensinamentos para você mesma

Erik Pema Kunzang nos alerta: “a prática do Darma apenas acontece quando decidimos lembrar das instruções que podem nos transformar”


Por
Edição: Lia Beltrão
Tradução: Lia Beltrão e Jeanne Pilli

Erik Pema Kunzang diz que certamente ele acumulou um bom carma em outras vidas porque o que ele fez nesta atual não explicaria o mérito de ter recebido ensinamentos de tantos e tão extraordinários mestres. Com uma genuína postura de aprendiz, depois de anos atuando principalmente como tradutor, Erik tem oferecido cada vez mais ensinamentos do Darma e recentemente deu início a um programa educacional focado em insight e método, o Bodhi Training. A Bodisatva traz aqui um trecho do ensinamento de abertura do programa, onde Erik fala sobre a importância da contemplação, como usar os momentos livres para praticar e o que é mesmo realização. 


 

Eu vou tentar apresentar uma forma equilibrada de praticar que não depende de estarmos em um centro de retiro nem sentados em uma almofada de meditação. Depende de uma única coisa: de você e de seu desejo positivo, seu entusiasmo, mas especialmente de sua decisão. A prática do Darma apenas acontece quando decidimos lembrar das instruções que podem nos transformar — seja um pouco, muito ou profundamente. O ponto chave é a sua vontade — não necessariamente onde você está ou que outras práticas está fazendo, porque o treinamento bodhi pode estar interligado com qualquer outra prática. 

Nós normalmente gostamos de passear por aí, ir para nossa sala, ou caminhar na rua, sentar em nosso escritório ou na escola. Nós temos muito tempo extra que não está sendo usado para nada. Se acontecer de você lavar os pratos, também há tempo livre aí porque você não precisa fazer nada mentalmente, apenas com suas mãos. E há tantos outros momentos, não é verdade? Nós podemos usar o tempo extra da nossa vida, porque de outro modo, a prática do Darma irá ficar limitada ao tempo em que sentamos em nossa sala de meditação — e você sabe, pessoalmente, quantos minutos por dia isso representa. Não é muito. 

Erik Pema Kunzang com seu professor Tulku Urgyen Rinpoche no Nagi Gompa (Nepal)

 

Dar ensinamentos para nós mesmas 

Muitas vezes, especialmente se você é um ser humano mais velho como eu, você fica deitado na cama à noite, sem sono. Durante muitas horas eu fico de costas na minha cama à noite olhando para a escuridão. Eu uso o teto como minha tela e não acendo nenhuma luz. Os jovens não têm essa oportunidade. Mas Tulku Urgyen me ensinou como utilizar as horas de vigília durante a noite, então eu não vejo como um problema. Eu não vou para o médico dizer: “eu tenho problema de insônia”. Ao contrário, eu tento lembrar o que meus professores me ensinaram sobre como aproveitar as horas sem sono durante a noite. São muitas horas ali e eu tenho a oportunidade de não apenas praticar meditação mas refletir sobre os ensinamentos que eu recebi. 

Esta é uma parte muito importante: refletir sobre os ensinamentos que você recebeu. Porque de outro modo eles são esquecidos. “Refletir” significa pensar sobre o que eles querem dizer, quais os benefícios, como eles se relacionam com tudo aquilo que eu já aprendi. Este é um modo de integrar a teoria com a experiência. O elo do meio, ou a ponte entre os dois, é chamado de “refletir”. Com isso você está usando sua inteligência criativa de modo que você basicamente dá ensinamentos do Darma para você mesma. Você não precisa fazer isso em voz alta, e se há alguém dormindo ao seu lado, por favor, não faça em voz alta mesmo. Pode incomodar a outra pessoa. Você pode deitar de costas, totalmente relaxado, e deixar os ensinamentos do passado virem à mente — o que é muito interessante porque isso acontece através de sua própria voz. Também é uma imaginação criativa que está se manifestando ali. Você não precisa escrever nada, não precisa falar nada, você deixa que os ensinamentos ganhem vida dentro de você. 

Este é um aspecto da prática do Darma: a reflexão, a contemplação, a integração de ensinamentos, que de outro modo permaneceriam como mera teoria, à sua mente, ao seu sistema. Isto é muito bom, muito importante e necessário. Desse modo, no resto do dia você terá muitas oportunidades de fazer uso do que entendeu, que agora não é mais a teoria de alguém mas sua própria compreensão. Você pode distribuir isso para você mesmo e outros em sua vida, não apenas em forma de palavras mas na forma como você vive os ensinamentos. Isso é muito mais convincente para você mesma do que a mera memória de ensinamentos recebidos como teoria ou conselhos. Agora eles se tornaram sua própria compreensão por meio da reflexão. E eles vão estar ao alcance da mão em qualquer situação em que você se encontre. Assim você tem (e eu vou dar um mau exemplo aqui) munição para suas armas, seus rifles, a serviço da paz e da harmonia. 

 

Descobrir quem somos

É disso que se trata o Darma: como resolver problemas. Como resolver 84000 problemas pelos quais as pessoas passam, mas especialmente como resolver os principais problemas: pensamentos, crenças e, ainda mais profundamente, a ignorância, ou seja, a falta de conhecimento de quem nós realmente somos. A natureza da mente: esta é nossa identidade. Todo o resto — nosso nome, nosso corpo, nosso perfil no facebook são identidades falsas, equivocadas, são apenas rótulos, palavras e nomes. Não deixe que ninguém te irrite ao escrever algo em seu perfil do facebook. Por que? Porque não é você, é um nome, um perfil. Não tome coisas assim de forma séria. Quando você não for vista, não for escutada, está tudo bem, porque você não é fundamentalmente nada que possa ser vista ou escutada. 

É isto que precisamos descobrir. Minha esposa me disse que eu deveria começar pelo mais importante. Vocês são seres humanos adultos e inteligentes — conseguem entender. Também Tulku Urgyen Rinpoche disse que, na era em que estamos, os ensinamentos mais profundos são os que vão saciar a sede das pessoas. Não há escolha, as pessoas demandam o que é mais real, o que mais transforma suas vidas. Elas não se satisfazem com histórias sobre o que é mais importante, elas desejam a coisa real, não de forma teórica.

 

Método e insight

O que eu vou apresentar aqui [no Bodhi Training] é uma síntese de todos os ensinamentos que eu recebi, contemplei e, em certa medida, também pratiquei. E eu irei apresentar de maneira que haja um equilíbrio entre dois aspectos: métodos e insight. Insight não significa algo interno, mas a compreensão como uma experiência viva. Um dos meus professores Thrangu Rinpoche disse que a realização é exatamente isso: começa com lampejos de compreensão do que é real e inegável, e não há nada extraordinário nesse tipo de realização. Ela passa a ser extraordinária quando se torna constante e inquebrável. Isto sim é especial. Mas lampejos de compreensão profunda todos nós podemos ter. E devemos ter, todos os dias. Seja sentados, em pé, comendo, em meio a uma conversa, a realização deve estar em primeiro lugar em nossa mente e ser colocada no centro de nossos corações. Por favor, concordem com isso. 

A realização não é criada por métodos, você não pode culpar os métodos pela falta de realização. Mas os métodos ajudam a criar espaço, facilitam a realização. É assim que combinamos método e realização. É como se a vassoura fosse o método: varrer o quarto dá espaço para o quarto limpo. O quarto limpo não é criado pela vassoura, mas com a ajuda da vassoura, o quarto se torna limpo. Do mesmo modo, a mente clara e sem obscurecimentos, você mesma, não depende da prática mas é revelada com a aplicação de métodos. Isso é um ponto muito importante porque de outro modo nós podemos acreditar que quanto mais a gente faz algo, diz algo que é chamado de “espiritual”, e quanto mais rápido nós fazemos isso, mais realização nós teremos. Isso não é verdade. Mas a realização é revelada com a ajuda da prática, por meio de algo que nós fazemos, dizemos, cantamos, visualizamos e assim por diante. Por que? Porque esses métodos nos ajudam a remover aquilo que está bloqueando a realização. Este é um ponto muito importante: a realização não é um produto da prática.  

Chogyam Trungpa Rinpoche, em um livro que eu traduzi muitos anos atrás, disse que acreditar que a iluminação é um produto da prática é a forma mais extrema de materialismo espiritual. E não acontece só com ocidentais. As pessoas têm cometido este erro há milhões de anos, pensando que elas podem criar aquilo que não é passível de ser criado. É um hábito da mente dualista. Ninguém precisa ser culpado, mas precisamos sair disso e ir além da mente dualista, para permitir que a natureza mais fundamental do que nós realmente somos seja vista, experienciada e realizada. E isto é possível. 

 


 

Este ensinamento é uma transcrição do ensinamento de abertura do Bodhi Training, um programa educacional voltado para o desenvolvimento de paz mental, gentileza e insight. Ministrado pelo professor Erik Pema Kunzang, e promovido pelos centros de meditação ligados ao seu professor, Chokyi Nyima Rinpoche, o programa, que conta com tradução simultânea para o português, consiste de três módulos, com encontros mensais e duração de três anos. O encontro de abertura aconteceu no dia 15 de maio de 2022, mas as inscrições continuam abertas (inscrições e mais informações em português aqui). 

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2 Comentários

  1. josé disse:

    que ensinamento mais lindo! obrigado pela gentileza de transcrever e traduzir a fala dele.

  2. Eric Gumes Lopo dos Santos disse:

    Muito obrigado pelo trabalho.

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