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De uma margem à outra: Sua Santidade ensina sobre a sabedoria transcendental

Relato dos ensinamentos oferecidos pelo Dalai Lama sobre o Sutra do Coração, em Dharamsala, na Índia


Por
Revisão: Ormando M. Neto

“Todos os budas dos três tempos, por repousarem na Prajnaparamita, atingem completamente a iluminação perfeita e insuperável.”
— 
Sutra do Coração

Subir as ruas rodeadas pelas montanhas antes de o sol nascer, nessa hora em que apenas um fio dourado contorna os picos de neve – tão sutil quanto o frescor que ele derrama sobre as casas e as tendinhas ainda vazias, ainda adormecidas à intensidade de movimentos, barulhos e cheiros de que elas são palco todos os dias. Subir essas ruas que retêm a geografia do morro, ofegantes e entusiasmados, e juntar-se aos outros peregrinos que desembocam de outras ruas, com suas distintas línguas, feições e trejeitos, irmanados, entretanto, pela energia da sanga. Chegar, afinal, ao templo, e mesclar-se às milhares de pessoas que se apertam sobre colchonetes na disputa pelas melhores vistas, a chance da proximidade, um mero vislumbre. E curvar-se ao lado de todos na emoção coletiva de finalmente o ver, finalmente sentir a inigualável presença daquele cuja mera risada dissolve qualquer sofrimento.

É assim sempre que Sua Santidade o Dalai Lama oferece ensinamentos em Dharamsala, na Índia. E desta vez não foi diferente. De 4 a 6 de novembro de 2019, milhares de budistas, admiradores e curiosos de todas as partes do globo reuniram-se no famoso templo de McLeod Ganj para ouvi-lo falar sobre o Sutra do Coração.

Este ciclo foi solicitado pela sanga coreana. Como sempre, o templo ganhou vida sob o colorido das roupas de monges e monjas das variadas tradições budistas – Theravada e Mahayana – de toda a Ásia. Uma vivacidade de cores que reflete a vivacidade da comunhão entre as diferentes escolas e linhagens. E que repercute em sons quando, na chegada de Sua Santidade, os monges coreanos tocam seus instrumentos típicos e recitam, no seu idioma, o Sutra do Coração. É igualmente comovente testemunhar a sanga Theravada conduzindo as orações iniciais sob o olhar entusiasmado do Dalai Lama, que os acompanha com as mãos em prece e sempre inicia sua fala enfatizando a igualdade de todas as religiões na transmissão de uma mensagem de amor.

Como de costume, Sua Santidade destacou a importância de considerar os ensinamentos budistas não apenas pelo viés religioso, mas também acadêmico e secular, e de contemplá-los através do raciocínio lógico, priorizando a razão em detrimento da fé cega. Por meio da análise lógica, complementou, devemos investigar as vantagens de estados mentais disciplinados e as desvantagens de estados mentais confusos. Devemos compreender que a fonte de todas as sensações de dor, prazer ou neutralidade é a mente, e que os fenômenos não possuem uma existência independente da nossa percepção.

Visto que o tema destes ensinamentos foi o Sutra do Coração, um dos textos mais importantes do budismo Mahayana, Sua Santidade preparou-nos para essa transmissão ressoando as palavras de Nagarjuna, que nos lembra de que o apego à existência de um “eu” é a causa do pensamento inapropriado e das emoções negativas. Da mesma forma, seu antídoto – o antídoto último de todo sofrimento – é a compreensão da vacuidade. E é por tal razão que devemos estudar profundamente, contemplar, e por fim integrar os ensinamentos do Sutra do Coração à nossa prática.

O primeiro dia foi dedicado a uma cuidadosa introdução, ao longo da qual o Dalai Lama passou por aspectos históricos, filosóficos e relativos à prática. O segundo dia foi aberto com uma belíssima homenagem à Prajnaparamita, a sabedoria transcendental, mãe de todos os budas dos três tempos. À homenagem, seguiu-se o estudo do texto linha a linha.

Um ponto muito enfatizado foi a importância do uso da expressão “até mesmo” no verso que diz que “todos os cinco skandas (ou agregados) têm a natureza da vacuidade”. Isto porque o que este verso está dizendo é que, não apenas a pessoa em si, como também todos os agregados que a constituem têm a natureza da vacuidade. Por tal razão, o uso de “até mesmo” é indispensável, e o Dalai Lama nos instruiu a inserir essa expressão nas nossas versões, caso não haja.

Em seguida, Sua Santidade recordou-nos de que a existência de coisas externas depende de uma percepção, mas que, em realidade, elas não são nada mais do que marcas mentais que nós projetamos, e portanto não existem intrinsecamente. “As coisas existem apenas por meio de imputação, designação, e não por si mesmas”, ele repetiu diversas vezes. “Até mesmo o nome, a designação, não existe inerentemente” e, deste modo, “os objetos internos e externos parecem ter algo que nós podemos apontar mas, na verdade, eles não têm”, complementou.

Sobre os quatro níveis da vacuidade, expressos no sutra como “forma é vazio, vazio é forma; forma nada mais é do que vazio, vazio nada mais é do que forma”, Sua Santidade comentou que a forma não existe por si só: ela surge na dependência de diferentes elementos combinados. Assim, “forma é vazio” não nega a existência da forma, mas sua existência essencial. As duas últimas orações – “forma nada mais é do que vazio, vazio nada mais é do que forma” – expressam que forma e vazio, as verdades relativa e absoluta, possuem a mesma natureza, mas são conceitualmente distintas. A compreensão sintetizada nesses versos, quando transformada em insight verdadeiro, é o antídoto último para todas as aflições.

Também fomos conduzidos pelo Dalai Lama na apreciação minuciosa do mantra da Prajnaparamita: gate gate paragate parasamgate bodhi svaha. Como ele explicou, esse mantra expressa o caminho, nossa progressão de uma margem à outra. O primeiro “gate” refere-se ao caminho da acumulação, e é neste ponto que o praticante gera a determinação de atingir a iluminação. O segundo “gate” é o caminho da preparação: vamos praticando para atingir uma compreensão. Logo em seguida vem “paragate”, que se refere ao caminho da visão. Aqui, atingimos um insight genuíno sobre a vacuidade e ultrapassamos o caminho dos seres sencientes comuns. “Parasamgate”, por sua vez, diz respeito ao caminho da meditação. É quando, através da prática, estabilizamos esse insight. “Bodhi” é a iluminação, budeidade. E “svaha”, por fim, refere-se ao estabelecimento da fundação. Este é o trajeto que leva todos os budas dos três tempos à iluminação.

Após finalizar o estudo do texto, o Dalai Lama explicou que a recitação do mantra da Prajnaparamita – quando a fazemos entendendo o seu significado – é uma prática poderosa para afastar as forças negativas e, portanto, é muito benéfica. No entanto, é fundamental que saibamos que forças negativas ou do mal não correspondem a algo que existe intrinsecamente. Não estamos falando de nada que esteja lá fora. O verdadeiro inimigo é a nossa própria mente: nossa fixação nas coisas e no “eu” como existindo inerentemente. E é isto, esta ignorância que está na base da nossa percepção dualista, que nós almejamos afastar: é este o significado profundo da recitação do mantra da Prajnaparamita.

Também tivemos a alegria de ouvir os comentários de Sua Santidade sobre um texto de um dos maiores mestres da tradição Gelugpa, Lama Tsongkhapa, intitulado “Os três principais aspectos do caminho”. O Dalai Lama nos contou que Tsongkhapa, quando já um grande erudito e praticante, certa noite teve uma visão de Manjushri. Nesta visão, o bodisatva disse a ele que é muito difícil entender a vacuidade, e que para isso ele precisaria fazer muitas práticas de purificação e acumular muitos méritos. Após receber este conselho, Tsongkhapa decidiu abandonar tudo e ir viver como um eremita, dedicando-se integralmente às práticas preliminares. Eventualmente, como resultado deste grande esforço, ele atingiu uma compreensão profunda sobre a vacuidade.

“Se mesmo Tsongkhapa, um grande erudito e eremita, precisou dedicar-se a práticas árduas de purificação e a acumular muitos méritos, imagina nós, meros seres comuns!”, exclamou Sua Santidade, soltando a sua risada típica.

Por fim, fomos instruídos a desenvolver um entendimento genuíno da impermanência: não apenas em sua manifestação mais aparente, como é o caso da morte, mas nos níveis mais sutis, percebendo as transformações que ocorrem de momento a momento. Também fomos presenteados com esta instrução piedosa: “esforcem-se para compreender a originação dependente, pois é isto que vai de fato cortar o samsara pela raiz”.

Felizes, banhados em bênçãos e bem alimentados de pão tibetano e chá de manteiga, fechamos este ciclo de ensinamentos recebendo refúgio e votos de Bodisatva daquele que, para muitos, é uma emanação de Avalokiteshvara. Que todos os seres possam atravessar este rio ilusório e realizar a sabedoria transcendental. Gate gate paragate parasamgate bodhi svaha.

 


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1 Comentário

  1. Gabriel Guebo disse:

    Maravilhosa compilação dos ensinamentos! Gratidão!

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