Crédito: Elise Bozzetto

Desenvolvendo a Mente de Grande Capacidade

Um ensinamento sobre práticas para gerar bodicita


Por
Revisão: Cristiane Schardosim Martins
Edição: Lia Beltrão e Cristiane Schardosim Martins
Tradução: Carol Pitzer

Sua Santidade o 14º Dalai Lama concedeu ensinamentos profundos e ao mesmo tempo práticos sobre bodicita no livro “O Caminho da Felicidade”. Com alegria a Revista Bodisatva traduziu uma parte do livro no qual Sua Santidade trata do desenvolvimento da mente de grande capacidade, apresentando diferentes métodos conforme as disposições mentais dos praticantes. Você pode usar esse texto como um guia e, como nos exorta Sua Santidade, combinar os diferentes métodos apresentados para gerar bodicita em benefício de todos os seres.  


 

O Método de Causa e Efeito de Sete Pontos

O Estágio Preliminar de Cultivo de Equanimidade

 

A base da prática do método de causa e efeito de sete pontos é cultivar uma mente de equanimidade. Sem essa base você não será capaz de ter uma visão altruísta imparcial, porque sem equanimidade você sempre será parcial em relação a seus parentes e amigos. Perceba que você não deveria ter preconceito, ódio ou desejo para com inimigos, amigos ou pessoas neutras, e então crie uma fundação bem firme de equanimidade.

 

Para isso, primeiro visualize uma pessoa neutra que você não conheça. Quando visualizar essa pessoa claramente, você irá perceber que não sente nenhuma flutuação de emoção, desejo ou ódio você é indiferente. Então visualize um inimigo. Quando o visualizar claramente, você terá uma reação natural de ódio, manifestando todos os tipos de emoções negativas. Depois, visualize claramente um amigo ou parente de quem se sente muito próximo. Com essa visualização, a reação natural será um sentimento de afeição e apego. Com a visualização de seus inimigos, você se sentirá distante de alguma forma e sentirá ódio e aversão. Reflita sobre a sua justificativa para reagir tão negativamente a essa pessoa. Mesmo sendo verdade que ela tenha infligido muito mal nesta vida, ela sempre fez coisas ruins? Você vai descobrir que não: no passado ela deve ter se dedicado a ações benéficas para você e para muitos outros. Agora, por ter estado sob a influência da ignorância, do ódio e assim por diante, ela possui essas falhas; mas essa não é sua essência natural. 

 

Perceba as delusões que também estão dentro da sua mente. Mesmo que possam existir diferenças de força nessas delusões, em termos de delusões, são delusões igualmente. Você deve decidir que não existe muita razão para reagir emocionalmente a pessoas que você categorizou como inimigos. 

 

Então examine como você reage, por outro lado, aos seus parentes e amigos. Mesmo que seja verdade que eles tenham sido bons com você nesta vida, no passado eles podem ter sido seus inimigos e podem até mesmo ter tirado a sua vida. Logo, não há nenhuma razão para estarmos permanentemente apegados a essas pessoas, categorizando-as como amigos ou parentes.

 

Logo, não há muita diferença entre amigos e inimigos no que diz respeito a você. Houve tempos em que ambos beneficiaram ou prejudicaram você. Não há base para a sua parcialidade em relação a eles. A partir disso, desenvolva a mente de equanimidade na direção de todos os seres sencientes. Essa mente não pode ser cultivada meditando apenas uma ou duas vezes, mas através de meditações repetidas ao longo de meses ou anos.

 

  1. Reconhecendo os seres sencientes como tendo sido nossas mães

 

O primeiro passo do método de causa e efeito de sete pontos é cultivar o reconhecimento de todos os seres sencientes como tendo sido nossas mães. Para fazer isso é necessário primeiro refletir sobre nossas vidas neste ciclo de existência sem princípio e que por muitas dessas vidas dependemos das nossas mães. Não existe um único ser vivo que você possa apontar de maneira definitiva como não tendo sido sua mãe no passado. Perceba todos os seres sencientes como se eles tivessem sido suas mães generosas. Se você for capaz de compreender a ausência de início das nossas vidas, você será capaz de entender que você tomou muitas formas de vida que precisavam de uma mãe. Você vai descobrir que não existe um único ser senciente que não foi sua mãe no passado.

Depois, examine se você ganha ou perde cultivando esse reconhecimento dos outros como mães. Uma vez que você está preocupado em cultivar bodicita, a aspiração altruísta, você deve reconhecer que se não tiver esse fator básico de reconhecimento dos outros como tendo sido suas mães, você não será bem-sucedido nesse cultivo. Logo, você perde ao não desenvolver esse reconhecimento.

 O reconhecimento dos outros como sendo seus entes mais queridos não precisa ser obrigatoriamente relacionado a reconhecê-los como mães. Como Maitreya recomenda em seu Abhisamayalankara, você também pode vê-los como tendo sido seus melhores amigos ou parentes mais próximos. Por exemplo, você pode ver todos os seres sencientes como seus pais, se você se relaciona melhor com seu pai do que com sua mãe, ou como seus filhos, por quem você sente a afeição mais profunda. O ponto é causar um efeito na sua mente e desenvolver um estado mental que possibilite que você perceba todos os seres vivos como os mais próximos objetos de afeição e bondade. É assim que se cultiva o reconhecimento de seres sencientes como tendo sido nossas mães. 

 

  1. Recordando a bondade de todos os seres

 

A próxima meditação é sobre recordar a bondade de todos os seres. Para isso, você deve visualizar a pessoa de quem você se sente mais próxima — pode ser sua mãe ou seu pai — quando ela ou ele for bastante velho. Visualize essa pessoa claramente numa idade em que ela ou ele dependa da cooperação e ajuda de outros. Fazer isso tem um significado especial, pois fará sua meditação mais poderosa e efetiva.

Então pense que a sua mãe, por exemplo, foi sua mãe não somente nesta vida, mas também em vidas passadas. Particularmente nesta vida, a bondade dela foi sem fronteiras na hora do seu nascimento e antes, durante a gestação, ela teve que passar por diversas dificuldades e mesmo depois do nascimento, sua afeição foi tanta que ela foi capaz de submeter sua própria felicidade e seu próprio prazer em função do prazer e da felicidade de seu filho. No momento do seu nascimento ela se sentiu feliz como se tivesse encontrado um tesouro, e de acordo com suas próprias capacidades, ela protegeu você. Você foi então protegido até que fosse capaz de se sustentar sozinho.

 Depois de refletir sobre a generosidade das mães, particularmente nesta vida, você deve visualizar outros seres que você percebe como distantes e repulsivos, até mesmo animais, e utilizá-los como seu objeto de visualização. Pense que apesar desses inimigos serem perigosos para você e serem seus adversários nesta vida, em vidas passadas eles podem ter sido um de seus pais mais queridos e podem até mesmo ter protegido e salvo sua vida incontáveis vezes. Assim, sua bondade é sem fronteiras. É assim que você deve treinar sua mente. 

 

  1. Retribuindo bondade

 

A meditação de recordação da bondade deve ser seguida pela meditação de retribuição dessa bondade. O pensamento de retribuição da bondade das mães irá surgir naturalmente quando você for bem-sucedido em recordar essa bondade – deve surgir do fundo do seu coração. Não retribuir a sua bondade seria injusto e ingrato da sua parte. Por isso, você deve trabalhar de acordo com sua própria capacidade para benefício dos outros; fazer isso retribui a bondade deles. 

 

  1. Bondade amorosa

 

Tendo cultivado equanimidade e o reconhecimento de todos os seres sencientes como tendo sido nossas mães, você verá todos os seres sencientes como objetos de afeição e carinho. E quanto mais forte for seu sentimento de afeição por eles, mais forte será sua aspiração de que eles se libertem do sofrimento e desfrutem da felicidade. Então, o reconhecimento dos outros como tendo sido nossas mães é a base para as meditações subsequentes. Tendo estabelecido a base correta, recordado sua bondade e desenvolvido o desejo genuíno de retribuir, você alcança um estágio no qual você se sente próximo e sente afeto por todos os seres vivos. Agora reflita que todos os seres sencientes, apesar de desejarem naturalmente a felicidade e evitar o sofrimento, são atormentados por sofrimentos inimagináveis. Reflita sobre o fato de que eles são exatamente como você em seu desejo pela felicidade, mas não alcançam a felicidade. Através dessa reflexão, cultive bondade amorosa. 

 

  1. Grande compaixão

 

Quando fizer a meditação sobre compaixão, reflita sobre a forma como os seres sencientes passam pela experiência do sofrimento. Primeiro, para ter uma intensidade de compaixão bem forte, visualize uma pessoa passando por sofrimentos ativos. Você pode visualizar qualquer situação que você acha insuportável. Fazer isso vai ativar em você uma compaixão bastante poderosa e tornará mais fácil o desenvolvimento de compaixão universal genuína.

 Então pense sobre os seres sencientes em outras categorias; talvez eles não estejam passando por sofrimentos manifestos nesse exato momento, mas por se permitirem ações negativas eles irão definitivamente produzir consequências indesejáveis no futuro, eles certamente irão enfrentar tais experiências. 

 O desejo de que todos os seres sencientes que não possuem felicidade possam alcançar a felicidade é o estado de mente chamado de amor universal, e o desejo de que todos os seres sencientes se libertem do sofrimento é chamado compaixão. Essas duas meditações podem ser praticadas de forma combinada, até que haja algum tipo de efeito ou mudança na sua mente. 

 

  1. A atitude não usual

 

Seu cultivo de amor e grande compaixão não deve se tornar apenas um estado de imaginação ou desejo; para além disso, você deve desenvolver uma noção de responsabilidade, uma intenção genuína de se dedicar na missão de aliviar o sofrimento dos seres sencientes e oferecer a eles felicidade. É importante para o praticante trabalhar nesse sentido e assumir a responsabilidade de realizar essa intenção. Quanto mais forte for seu cultivo de compaixão, mais você se sentirá comprometido com essa responsabilidade. Por causa da ignorância, os seres sencientes não conhecem os métodos certos para alcançar suas metas. É responsabilidade daqueles que possuem esse conhecimento realizar a intenção de trabalhar para o benefício deles.

 Tal estado mental é chamado atitude especial ou extraordinária, atitude não usual. É chamada não usual ou extraordinária porque tal força compassiva, comprometer-se com tamanha responsabilidade, não é encontrada em aprendizes de capacidade menor. Como as tradições orais explicam, com essa atitude extraordinária há um comprometimento de tomar para si a responsabilidade de alcançar esse objetivo. É como chegar a um acordo em um negócio e assinar um contrato.

 Depois de gerar a atitude extraordinária, pergunte a si mesmo se, mesmo tendo desenvolvido a coragem e determinação de trabalhar em benefício dos outros seres sencientes, você realmente possui a capacidade e os meios hábeis para levar a felicidade genuína até eles. 

 É apenas através da sua demonstração aos seres vivos do caminho correto em direção à onisciência, e dos seres vivos, por sua vez, eliminando a ignorância dentro deles, que eles serão capazes de alcançar felicidade duradoura. Mesmo que você seja capaz de trabalhar por outros seres sencientes para trazer felicidade temporária para eles, eles só alcançarão seus objetivos finais quando tomarem para si a iniciativa de eliminar a ignorância dentro de si mesmos. O mesmo é válido para você: se você deseja alcançar a liberação, é sua responsabilidade assumir a iniciativa de eliminar a ignorância dentro de você mesmo. 

 Como eu acabei de mencionar, você também deve mostrar o caminho certo aos seres vivos – e para isso, primeiro, você mesmo deve possuir o conhecimento. Enquanto você não estiver completamente iluminado, sempre haverá uma obstrução interior. Por isso, é muito importante que você trabalhe para alcançar o seu próprio estado completo de iluminação. Pensando dessa forma, você será capaz de desenvolver a crença profunda de que sem alcançar o estado de onisciência você não será capaz de realizar sua missão e realmente beneficiar os outros.

 

  1. Bodicita

 

Tendo como base o amor e a compaixão, você deve gerar aspiração do fundo do seu coração de beneficiar todos os seres sencientes. O cultivo desse estado mental constitui a realização de bodicita. 

 Depois da meditação sobre a geração de bodicita, você deve se dedicar na prática de cultivar bodicita que resulta no caminho. Visualizando o guru espiritual no topo da sua própria cabeça, imagine que o guru expressa satisfação, dizendo que é muito admirável, que você é muito privilegiado por ter gerado bodicita e por ter se dedicado no caminho de cultivá-la, e que ele irá tomar conta de você. Imagine que como resultado da satisfação do guru, ele se dissolve a partir do topo da sua cabeça em direção ao seu coração. Então você se dissolve em vacuidade e da vacuidade surge com o aspecto do Buda Shakyamuni. Veja a si mesmo como inseparável dele e se alegre. No seu coração, visualize todas as virtudes acumuladas pela prática de bodicita. Elas emanam, na forma de raios de luz, na direção de todos os seres vivos e trabalham ativamente em seu benefício, aliviando-os de seus sofrimentos, colocando-os em estado de liberação e renascimento favorável e eventualmente guiando-os ao estado onisciente. 

 

Equalização e Troca com os Outros

 

O próximo passo é a instrução de cultivo da bodicita de acordo com o método de equalização e troca com os outros. Essa meditação possui cinco sessões: 1) equalização com os outros; 2) reflexão sobre as desvantagens da atitude de auto-importância de múltiplas perspectivas; 3) reflexão sobre as vantagens do pensamento apreciador do bem-estar dos outros de múltiplas perspectivas; 4) substituirmos a nós mesmos pelos outros e 5) dando e recebendo.

 

  1. Equalizando-se com os outros

 

Essa fase se refere à prática da reflexão sobre a igualdade entre nós mesmos e os outros por termos o desejo natural e espontâneo de desfrutar a felicidade e evitar o sofrimento. Para gerar esse tipo de equanimidade, a instrução de Kyabje Trijang Rinpoche da meditação de nove estágios é muito poderosa e efetiva.

 Meditação sobre Equanimidade

 A meditação de nove estágios é composta de um treinamento da mente em equanimidade com um panorama mental baseado na natureza dual das coisas e dos eventos: a convencional e a definitiva. Baseada em diferentes perspectivas, é dividida, a princípio, em duas seções, uma do ponto de vista dos outros e a segunda do nosso próprio ponto de vista.

Os estágios de visualização no cultivo da equanimidade do ponto de vista dos outros são divididos em três:

 

  1. Desenvolver o pensamento de que todos os seres sencientes são iguais no sentido de possuir o desejo natural de evitar o sofrimento e que por isso não faz sentido ser parcial ou discriminativo.
  2. Refletir que todos os seres sencientes igualmente desejam a felicidade e por isso não há base para discriminação entre eles quando estamos trabalhando em seu benefício. A situação é análoga a quando uma pessoa encontra dez mendicantes igualmente miseráveis que pedem desesperadamente para que sua fome seja aliviada. Em tais circunstâncias, nenhum sentimento de preferência faria sentido.
  3. Desenvolver uma equanimidade baseada na reflexão de que todos os seres sencientes são iguais na falta de felicidade genuína apesar de terem o desejo inato de alcançá-la. Da mesma forma, todos os seres sencientes são os mesmos pois sofrem e desejam evitar o sofrimento.

 

Com as três práticas acima você treina sua mente na seguinte atitude: “eu nunca irei discriminar os seres e irei sempre trabalhar igualmente para ajudá-los a superar o sofrimento e alcançar a felicidade.”

 Os próximos três estágios da meditação reforçam o pensamento de que não há justificativa para discriminar seres sencientes nem do nosso próprio ponto de vista nem do ponto de vista dos outros. Esse treinamento é dividido em três sessões:

 

  1. Você pode pensar que mesmo que a reflexão sobre a igualdade dos outros seja bastante persuasiva do ponto de vista da futilidade da sua discriminação em relação aos outros seres, certamente quando vista pelo seu lado a situação parecerá muito diferente. Afinal, algumas pessoas são amigas que te ajudam, enquanto muitas outras te prejudicam. Para conter esse pensamento que tenta criar bases falsas para que você seja parcial em relação aos outros, reflita que todos os seres sencientes são igualmente bondosos com você: todos eles já foram em um momento ou outro seus amigos mais próximos e parentes. Logo, não há nenhuma base racional para sermos a favor ou contra eles.
  2. Talvez você tenha a ideia de que mesmo que as pessoas tenham sido suas amigas no passado, também foram suas inimigas e causaram danos. Tais noções devem ser contidas pela reflexão de que a bondade dos seres sencientes com você não está limitada a quando eles foram seus amigos e parentes; sua bondade quando eles são seus inimigos é sem limites. Um inimigo nos dá a oportunidade preciosa de treinarmos os nobres ideais de paciência e tolerância, características vitais para a perfeição da sua geração de compaixão universal e bodicita. Para um bodisatva que enfatiza a prática de bodicita, o treinamento da paciência é indispensável. Contemplar sobre essas linhas de argumentação irá nos persuadir de que não existe base para descuidar do bem-estar de nenhum único ser senciente.
  3. Reflita que, como Shantideva escreveu no Bodhisattvacaryavatara, não faz sentido que alguém, sendo ele mesmo submetido ao sofrimento e à impermanência, seja egoísta e discriminativo em relação a outros seres que são atormentados pelo mesmo destino. 

 

Os próximos três estágios de meditação dizem respeito ao cultivo da equanimidade baseado na visão da natureza definitiva das coisas e dos eventos (esse “definitiva” não deve fazer referência à verdade definitiva em termos de vacuidade – mas significa que o panorama adotado nessas visualizações é mais profundo e por isso relativamente definitivo em comparação com as meditações anteriores): 

  1. Considere se existem ou não “verdadeiros” inimigos no sentido real da palavra. Se existem, então os budas completamente iluminados devem percebê-los de tal forma, o que definitivamente não é o caso. Para um buda, todos os seres sencientes são igualmente caros. Além disso, quando você examinar profundamente, você descobrirá que são as delusões no interior dos inimigos e não os inimigos que causam danos. Aryadeva disse no seu Chatu-shataka Shastra:

 

Budas veem a delusão como inimigo;

E não o ser infantil que a possui.

 

Logo, não há nenhuma justificativa para guardar ressentimento contra aqueles que causaram mal e descuidar do bem-estar de tais seres. 

  1. Em segundo lugar, pergunte-se se os chamados inimigos são permanentes e vão sempre permanecer como inimigos ou se eles são mutáveis. Concluir que eles não são permanentes irá possibilitar a superação do desinteresse em seu bem-estar.
  2. A última meditação é uma reflexão sobre a natureza relativa do “inimigo” e do “amigo” e toca na natureza definitiva dos fenômenos. Conceitos como inimigo, amigo e assim por diante são relativos e existem apenas no nível convencional. Eles são mutuamente dependentes, como são os conceitos de longo e curto. Uma pessoa pode ser um inimigo para uma pessoa e um amigo querido para outra. É a sua compreensão incorreta de amigos, parentes e inimigos como existentes inerentemente que dá origem às emoções flutuantes em relação a eles. Logo, compreendendo que não existe algo como um inimigo ou um amigo inerentemente existente, você será capaz de superar seus sentimentos parciais em relação aos seres. 

 

  1. Refletindo sobre as desvantagens de uma atitude de auto-importância

 

O próximo passo é a contemplação — por muitas diferentes perspectivas — acerca das desvantagens e falhas da atitude de auto-importância. Como Geshe Chekawa disse no seu Lojong dhon dun ma (“Sete pontos sobre a transformação da mente”): “Expulse o objeto de toda culpa”. A atitude de auto-importância é a fonte de todo o sofrimento e por isso é o único objeto a ser culpado por todo infortúnio.

 Uma vez que as atitudes de auto-importância e auto-apego estão fortemente enraizadas em nossas mentes, nós nunca fomos capazes de movimentá-las minimamente. Até agora, nós não fomos capazes de incomodá-las mais do que uma pedrinha no sapato nos incomoda.

 Se permanecermos com nossa perspectiva e jeito de pensar atuais, ainda estaremos sob influência e comando desses dois fatores. Nós devemos refletir que esses fatores sempre foram a causa de nossas derrotas passadas e que continuarão sendo no futuro, se continuarmos sob sua influência. 

 Em termos mais profundos, nós vamos descobrir que todos os sofrimentos, problemas e ansiedade de não encontrarmos o que procuramos, de estarmos separados daqueles que amamos, das doenças físicas, do sofrimento do desejo, da falta de contentamento, disputas e assim por diante surgem por causa de nosso apego inerente ao ego e à atitude de auto-importância que tenta proteger esse ego dentro de nós. Quanto mais egoísta a pessoa for, mais sofrimentos e ansiedades ele ou ela terá. Essa atitude de auto-importância se manifesta de diversas maneiras que resultam em problemas e ansiedades. Ainda assim, nós nunca reconhecemos a verdade — que todas essas são ações dessa atitude de  auto-importância. Ao invés disso, nós temos a tendência de culpar os outros e os fatores externos: “Ele fez isso e se tivesse feito algo diferente, isso não teria acontecido.”

 

  1. Reflexão sobre as vantagens do pensamento apreciador do bem-estar dos outros

 

Após perceber as enormes desvantagens de se apegar a um pensamento egoísta que dá importância apenas ao seu próprio bem-estar, você deve refletir sobre a bondade de todos os seres sencientes maternais, como apontado anteriormente. A bondade dos outros seres em relação a nós será infinita enquanto nós estivermos nesse ciclo de existência. Isso é particularmente verdadeiro quando nós embarcamos em um caminho espiritual pela primeira vez, iniciando consequentemente o processo de soltura das correntes que nos prendem a essa existência cíclica. 

 Nós descobrimos que se uma pessoa vive uma vida muito egoísta e nunca se preocupa com o bem-estar dos outros, essa pessoa terá poucos amigos e será pouco percebida. No momento de sua morte, poucas pessoas irão lamentar a sua passagem. Algumas pessoas traiçoeiras e negativas podem ser muito poderosas e ricas e por isso algumas pessoas — por razões econômicas e assim por diante — podem se comportar como se fossem seus amigos, mas irão falar mal delas pelas suas costas. Quando essas pessoas negativas morrerem, esses mesmos “amigos” ficarão felizes com a sua morte.

 Por outro lado, muitas pessoas sofrem e lamentam a morte de uma pessoa que é muito boa, sempre é altruísta e trabalha para o benefício dos outros. Nós descobrimos que altruísmo, assim como a pessoa que o possui, é considerado amigo de todos e se torna objeto de veneração e respeito pelos outros.

 Com frequência eu comento, parcialmente como piada, que se uma pessoa realmente quer ser egoísta, ela deveria ser “um egoísta sabido” trabalhando para os outros. Ao ajudar os outros, a pessoa irá receber ajuda e apoio em troca, particularmente quando estiver numa situação difícil — no momento em que precisamos mais da ajuda dos outros. Mas se a pessoa for muito egoísta, quando estiver em circunstâncias difíceis, irá encontrar menos pessoas dispostas a ajudar e terá que resolver a situação e a dificuldade sozinha. É da natureza dos seres humanos depender da cooperação e apoio dos outros, particularmente em tempos difíceis; nesses momentos e nas dificuldades apenas os verdadeiros amigos serão benéficos e irão ajudar. Ao viver uma vida sem egoísmo, a pessoa será capaz de possuir amigos verdadeiros, ao passo que pensamentos egoístas e uma vida egoísta nunca levarão a amigos verdadeiros e genuínos.

 A essência da prática Mahayana é realmente nos ensinar os métodos pelos quais nós seremos capazes de ter êxito não apenas nesta vida, mas também no futuro. Tal instrução é, de fato, muito prática e benéfica para todos — crentes ou não. Se formos capazes de criar benefícios práticos nesta vida ao viver uma vida virtuosa, também seremos capazes de realizar os desejos da vida futura.

 

  1. Substituirmos a nós mesmos pelos outros

 

Substituir a nós mesmos pelos outros é inverter uma atitude anterior: o pensamento de auto-importância e auto-afeição e de indiferença em relação aos outros deve ser invertido como segue. A pessoa deveria sentir indiferença quanto a si mesma, reduzir a força de apego a si mesma e perceber o bem-estar dos outros seres sencientes como preciosos ao invés disso. Esse é o significado de se substituir pelos outros. O grau de valor que alguém sente em relação a si mesmo deve ser voltado para os outros.

 Para essa prática, a pessoa também deve estar familiarizada com os compromissos e preceitos das práticas de transformação da mente. Ao realizar essa prática, a pessoa será capaz de transformar quaisquer circunstâncias adversas em condições favoráveis para o caminho. Nestes tempos de degenerescência, quando encontramos todo tipo de problemas e circunstâncias adversas, a prática de transformação da mente é muito efetiva. Ao não possuir a prática de transformação da mente, mesmo que a pessoa seja um meditador muito sério, ele ou ela irá enfrentar muitas dificuldades e obstáculos. 

 

  1. Dando e recebendo

 

A prática da substituição verdadeira de nós mesmos pelos outros deve ser seguida pela prática de dar e receber. Esta começa pela reflexão de que apesar de todos os seres sencientes maternais desejarem a felicidade, eles não a possuem, e apesar de não desejarem o sofrimento, eles sofrem. Pense que é a ignorância dos seres sencientes que os impele a trabalhar pela realização de suas metas egoístas. 

 Você deveria desenvolver a atitude pouco usual e extraordinária de desejar que todos os sofrimentos deles caiam sobre você. Provocado pela forte noção de compaixão pelos outros seres sencientes, visualize-se tomando todos os sofrimentos deles para si; e então, provocado pelo intenso desejo de amor, visualize-se abrindo mão do fundo de seu coração de todas os seus bens virtuosos, felicidade, riqueza, posses, até mesmo o seu corpo, para os outros seres sencientes. Se você conseguir unir essas práticas à respiração — isto é, imaginar-se recebendo quando inala e dando quando exala — você será capaz de se envolver em uma prática poderosa que o levará ao forte comprometimento de se dedicar às ações bodisatva. Se você for capaz de se dedicar a uma prática tão poderosa, então por causa da forte determinação e comprometimento gerados como resultado do cultivo de boditica, você se tornará capaz de aliviar as forças dos vastos e poderosos depósitos de ações negativas produzidas nas vidas passadas, além de acumular enormes quantidades de méritos.

 É assim que você deve desenvolver a prática da bodicita.

 

Adaptado de “O caminho da felicidade” por Tenzin Gyatso, o XIV Dalai Lama. Traduzido para o inglês por Thupten Jinpa (Snow Lion Publications, 2003).

 

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