Diálogos em um Sonho, um texto Zen Clássico, traz ensinamentos práticos para o cotidiano

Musō Soseki, neste texto escrito por volta de 1.300, ao mesmo tempo que enfatiza a importância da meditação, da prática e da contemplação por dentro do silêncio, traz inúmeras referências de textos clássicos e passagens de sutras em uma linguagem totalmente voltada para questões cotidianas


Por
Revisão: Luciana Vinhas e Henrique Lemes
Edição: Henrique Lemes e Elise Bozzetto
Tradução: Pedro Lemme

No início deste ano, Henrique Lemes, tutor do Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB), deu início ao estudo do texto Diálogos em um Sonho, de Musō Soseki. Um texto raro, recém traduzido do japonês para o inglês pela editora Wisdom Publications (MA) e agora aos poucos sendo gentilmente traduzido para o português por praticantes do CEBB e disponibilizado para toda a sanga brasileira. A grande riqueza deste precioso ensinamento é que ao mesmo tempo em que é um texto tradicional, com ênfase na meditação, na prática formal e com inúmeras referências a textos clássicos, ele é atravessado por questões cotidianas, abordando de forma direta temas como prosperidade, carma e fé. Soseki aproveita as aflições e perguntas do imperador do Japão para tornar questões comuns da vida ordinária em ensinamentos profundos e atemporais.


 

Muso Soseki foi um mestre da escola Rinzai, dentro da tradição Zen. Como praticantes ocidentais, estamos mais familiarizados com os ensinamentos da escola Soto Zen, representada por mestres como Dogen. Apesar de ser menos conhecida, a escola Rinzai sempre foi muito importante na tradição Zen.

A obra completa, Diálogos em um Sonho, é dividida em três grandes etapas. Na primeira delas, a ênfase é no aspecto cotidiano; em seguida, o mestre aprofunda aspectos da meditação, sabedoria, visão e prática; por fim, ele revela a natureza de Buda, natureza original. São 93 capítulos e neste texto disponibilizamos dois deles.

Segundo Henrique, Soseki não foi um mestre convencional. “Ainda que ele tenha estabelecido muitos templos, mosteiros, tenha ensinado muitas pessoas (monges e leigos, inclusive o Imperador), ele sempre tentou escapar para viver como um iogue nas montanhas. Sua ênfase era na prática. Ele é a primeira geração de praticantes e mestres totalmente treinados no Japão em japonês e por mestres japoneses”, explica. Até então, a maioria dos ensinamentos era transmitido em chinês e por mestres chineses, mesmo dentro do país nipônico.

Embora enfatize bastante que o aspecto profundo das coisas, rigpa, a natureza de buda, não possa ser contemplado por palavras (pois está além do intelecto), Muso via a dificuldade que os praticantes da época passavam. “Muitos praticantes não conseguiam avançar com esse aspecto por vezes excessivamente direto, em que a ênfase recai sobre o aspecto absoluto, curto e direto. Por compaixão, Muso enfatiza bastante os meios hábeis, a importância das coisas ficarem mais claras. Esta forma de abordar os ensinamentos com inúmeros exemplos e contemplações era menos comum dentro das escolas Zen”, analisa Henrique.

 

>>>>>>>> O estudo deste livro integra a programação do CEBB Caminho do Meio, abrindo a participação para todas as pessoas interessadas em conhecerem estes ensinamentos tão preciosos.
Saiba mais em: cebb.org.br/estudos-dialogos-em-um-sonho/


CAPÍTULO 4

Renunciando à Avareza

Pergunta: Eu compreendo plenamente que, ao abandonar o desejo pela prosperidade, a prosperidade naturalmente vem em nossa direção. Mas abandonar este desejo é excessivamente difícil—como fazemos isso?

Resposta: Não é difícil, se nosso desejo de livrar-se da avareza for tão profundo quanto o desejo por prosperidade, porém, se deixarmos de lado a avareza com a esperança de obter boa fortuna, isso não é melhor do que buscar a felicidade através de esquemas lucrativos.

Também não se trata, simplesmente, de desprezar o ganho no mundo dos fenômenos. Em seu desejo pelo nirvana não-condicionado, os dois Veículos —os śrāvakas e pratyekabuddhas—ainda habitam a Cidade Fantasma. Mesmo os bodhisattvas dos Três Estados Valorosos e Dez Estágios de Desenvolvimento, por conta de seu desejo contínuo pelo Dharma, ainda não manifestaram a grande sabedoria da iluminação. No momento em que abrimos mão de todo o desejo pelo sucesso mundano, o repositório inesgotável de nossa Natureza Original imediatamente se abre, permitindo que utilizemos todos os tesouros nele contidos — uma operação que é infinita e profunda, um samādhi além de qualquer medida — para o benefício ilimitado de si e dos outros. Já que você dará origem ao desejo, por que não dar origem a esse Grande Desejo? Qualquer pessoa que conceba esse Grande Desejo não poderá mais se satisfazer nem com o grau de arhat, ou mesmo com o estado exaltado de um bodhisattva, e menos ainda com as recompensas dos reinos humano e celestial.

 


 

CAPÍTULO 13

Os Três Tipos de Compaixão

Pergunta: Os escritos dos mestres do Zen recomendam que nós busquemos primeiramente despertar nossas próprias mentes e que, então, após ter lidado com as relações e hábitos restantes, ampliemos nossa preocupação para os outros. Sendo assim, isso não seria contraditório em relação ao ensinamento de que o voto dos bodhisattvas tem o propósito de liberar os outros antes de atingir a liberação para si mesmos?

Resposta: Há três tipos de compaixão. A primeira é a compaixão dirigida aos seres sencientes; a segunda é a compaixão baseada no Darma; e a terceira é a compaixão sem objeto.
A compaixão dirigida aos seres sencientes é o tipo de compaixão que considera os seres sencientes que sofrem no ciclo de nascimento e morte como verdadeiramente existentes, e que se empenha em liberar esses seres do mundo da delusão. Essa é a compaixão do bodhisattva Hinayana. Embora ela seja superior às aspirações do śrāvaka e do pratyekabuddha, que se preocupam apenas com a liberação para si mesmos, ela é, a despeito disso, uma visão substancialista que adere ao conceito de benefício, e, portanto, não é compaixão verdadeira. Ela é o que o Sutra de Vimalakīrti critica como sendo a “compaixão sentimental” — a compaixão marcada pela afeição e por visões falsas.
A compaixão baseada no Darma, que percebe claramente a natureza ilusória de toda a existência senciente e não-senciente que surge a partir da originação dependente, é uma compaixão ilusória que ensina portões do Darma ilusórios para a liberação de seres sencientes ilusórios. Essa é a compaixão do bodhisattva Mahayana. Embora ela deixe de sustentar visões substancialistas e seja, portanto, diferente da compaixão sentimental, esse tipo de compaixão ainda não é a verdadeira compaixão, uma vez que adere ao conceito de não-substancialidade.

A compaixão sem objeto ocorre quando, após o atingimento da iluminação, a compaixão que é uma virtude inerente da Natureza Búdica manifesta a si mesma e opera naturalmente para liberar todos os seres sencientes, mesmo quando não há nenhum esforço consciente em fazê-lo. Ela é como a lua, que projeta igualmente seu reflexo na água em todos os lugares. Assim, na difusão do Darma, não há distinção entre “ensinamento” e “não-ensinamento”, e, na liberação das pessoas, não há noções de “benefício” e “não-benefício”.

Isso é compaixão verdadeira. Aqueles que praticam a compaixão direcionada a seres sencientes ou a compaixão baseada no Darma são obstruídos por tal compaixão e não podem atingir a compaixão sem objeto. É esse o significado da máxima “A compaixão menor impede a grande compaixão.” O mestre Zen chinês Baizhang Huaihai tinha a mesma coisa em mente quando alertou, “Não tenha ganância por ganhos e méritos mesquinhos.” É isso o que os mestres Zen querem dizer em seus ensinamentos sobre a compaixão.

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