Foto: Bosen Yan (Unsplash)

“Ela tá viva!”

Sobre um silêncio que contém todas as respostas


Por
Revisão: Caroline Souza

Hoje falei com o plantonista do hospital-geral, como sempre, no fim da tarde.

“O quadro da Maria Antônia é estável”, ele informou.

Exatamente as mesmas palavras de ontem, anteontem e o dia anterior. Desde que minha grande amiga deu entrada na terapia intensiva com COVID-19, já tinham me avisado que ninguém se daria ao trabalho de me passar detalhes. Um telefonema, meio minuto, quatro ou cinco palavras é tudo que posso filtrar da imensa agonia pela qual a Tônia deve estar passando. “Melhor”, “pior”, “faleceu”, “vai ter alta” são as possibilidades diferentes desse “estável” que já conheço.

“Por mais angustiante que seja o silêncio, pelo menos você vai saber que ela tá viva. Quando um paciente morre eles avisam rápido”, explicou minha vizinha, que é médica.

A noite chega, paro de trabalhar e vou ao pátio olhar o céu. Procuro lembrar as muitas belezas que passaram por mim desde a tarde em que tomamos juntas o derradeiro café antes da doença – claro, cada uma em sua casa e sorrindo para sua tela. Penso no pé de limão siciliano todo pintado de amarelo – colhi aqueles frutos e uma comadre fez um bolo delicioso. As flores brancas da ora-pro-nóbis abriram, criaram um festival de besouros barulhentos e dois dias depois se foram. Imagino que os três dias tenham sido o grande carnaval na vida daquela geração de besouros e gosto da sensação de tamanha catarse ter acontecido no meu pátio. Também abriram-se as míticas flores da cerejeira, com forte comparecimento dos insetos polinizadores. A arruda, que andava meio desmaiada, recebeu uma boa poda e rejuvenesceu. Todas as cebolas que comprei na feira vieram brotadas; metade devolvi pro solo. Adicionei terra de composteira e agora as folhinhas espetam o ar.

Tônia ama essas diferentes manifestações da natureza, por isso intuo que ela gostaria de saber que nem tudo por aqui foi afetado pela maré de doença e morte. Claro, seria preciso omitir algumas coisas. Eu não contaria, por exemplo, que chorei quando assisti ao concerto Solo Piano no canal do Fito Páez, com direito a lágrimas rolando bem na hora em que ele cantou esses versos de “Al Lado del Camino”.

Se vês que estou pensando em outra coisa / Não é nada mau, é que passou uma brisa / A brisa da morte enamorada / que ronda como um anjo assassino”.

A questão é que não tenho mais as escolhas de falar, nem de omitir. Se já era estranho tomar um café intermediado por cabos de fibra ótica, agora nossa comunicação se dá por meio de um ser lacônico vestido de branco, um ser que tem milhões de outras demandas e nada além de meio minuto para me oferecer. “Estável”, diz esse ser, a palavra mais descabida possível diante de tudo que tenho sentido. Sim, já tinham me falado que a Tônia nem sempre estaria consciente e, mesmo se estivesse, o plantonista não passaria sequer um recado do tipo “estou com saudade”, muito menos um relatório sobre flores de ora-pro-nóbis, aliás, que diabo é isso, minha senhora.

Ou seja, tenho mesmo que me conformar com o silêncio que me diz: “Aqui e agora, Tônia está viva”. Isso é tudo que vou saber sobre ela até o próximo telefonema. A tragédia nos despojou das numerosas facetas de nossa convivência, tanto as divertidas quanto as irritantes.

De repente já não existe a mulher que tem uma boina vermelha que eu adoro; nem aquela com quem discuto política e cinema aos gritos; nem a que gosta de beber mate gelado com rum no verão; nem a que se esconde para chorar no dia do aniversário da mãe que faleceu; a que faz listinha de tarefas todas as manhãs; a que paquera na internet; a que gosta de gatos. O jogo das identidades foi temporariamente suspenso. Tônia segue viva num leito do hospital-geral, lá onde a brisa da morte enamorada com frequência se torna uma ventania.

Então me dou conta de que o silêncio contém todas as informações que preciso saber também a meu respeito. Estou viva. No aspecto grosseiro – aquilo que é visível – estou em casa para escapar da mesma doença que abateu minha amiga. Aprendi que as alegrias e depressões que experimento não são sólidas; elas podem durar um tempo longo, mas nunca serão eternas. Os personagens que as pessoas enxergam em mim não sou eu, mas apenas acessórios úteis, como os espelhos retrovisores de um carro. Não são o motor do carro. Repito para mim mesma: estou viva. Posso usar meu tempo de vida em atividades que vão trazer felicidade para os outros e para mim, ou posso me entregar às paranoias. A escolha é óbvia. Respiro e relaxo.


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1 Comentário

  1. Ormando disse:

    Lindo texto 🙂

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