Elizabeth Mattis Namgyel no Brasil, em outubro de 2019. Foto: Michelle Magrini

Um caminho de investigação aberta: Conversa com Elizabeth Mattis Namgyel

Nesta entrevista, a Lama descortina a potência de uma atitude de questionamento aberto no caminho


Por
Revisão: Dirlene Ribeiro Martins
Edição: Dirlene Ribeiro Martins
Transcrição: Marcio Lobo, Lilian Moreira Mendes, Jana Macedo
Tradução: Alessandra Granatto, Ormando M. Neto
Entrevista por: Lia Beltrão

Bodisatva: A primeira pergunta é sobre seu livro O poder de uma pergunta aberta. No final do livro, você nos desafia a nos perguntarmos como vamos atingir a iluminação, qual é o nosso plano para realizar isso. Você também tem enfatizado o ensinamento de que nós devemos reivindicar o papel de agente do nosso próprio despertar. A pergunta é: como exercitar esse protagonismo e colocar esse planejamento em ação com sabedoria, sem confundir isso com as nossas propensões e escolhas cármicas?

Elizabeth: Esta é uma pergunta maravilhosa, que pode ser respondida em muitas partes diferentes. Hoje pela manhã, eu estava lendo e pensando que muito do que trata o budismo refere-se a como nós podemos combinar as nossas ações e intenções. Acho que, às vezes, nem sabemos quais são as nossas intenções. Dizemos que queremos a felicidade, mas não examinamos o que é a felicidade e como ela acontece. Penso que isto, de certo modo, sintetiza a estrutura inteira dos ensinamentos do Buda. As perguntas que ele fez foram: “o que é a felicidade?”, “o que é o sofrimento?”, “quais são as causas e as condições para a felicidade e para o sofrimento?”. Portanto, é necessário um processo profundo de classificação e de exame. Gosto muito de perguntas abertas e de investigação, e sinto que o caminho budista é uma investigação sobre os mecanismos do nosso sofrimento e da nossa felicidade.

Sinto que, no caminho budista, o que realmente nos é solicitado é que olhemos de forma realista para a condição humana. Quando olhamos para a condição humana, encontramos todo tipo de coisa – muitas delas dolorosas, como o envelhecimento, a doença, a morte, o luto, as perdas. Recebemos muitas coisas que não queremos, não conseguimos muitas coisas que queremos, e há sempre um descontentamento básico.

A palavra dukkha é frequentemente traduzida como “sofrimento”, mas ela também significa “não se sentir contente”, como se houvesse algo que não está saciado ou que não parece ótimo. Como não gozamos de uma alegria livre e aberta, somos sempre perseguidos pela sensação de que talvez não tenhamos alcançado o nosso potencial, a grandeza do potencial humano. Por outro lado, às vezes desfrutamos de momentos aos quais gosto de me referir pelo termo “graça”. Esta é uma palavra muito cristã, mas é bonita porque significa sentirmos nós mesmos na relação com o mundo ao nosso redor de uma forma fácil e natural. Graça é nos sentirmos inspirados e conectados, apaixonados pelas outras pessoas. É sentirmos que está tudo bem com quem nós somos. Acho que graça sintetiza uma compreensão de quem nós somos na relação com o mundo ao nosso redor. 

Graça não é uma coisa que acontece no vácuo ou em isolamento. É algo que sempre acontece na relação. Quando uma pessoa tem consciência das outras pessoas e é bondosa, dizemos que ela tem “graciosidade”, que é “graciosa”. E é assim que nós encontramos o melhor de quem nós somos. Portanto, não quero dizer que dukkha é tudo o que há. Quase todas as pessoas dizem que entendem o sentido de “graça” ou que desfrutam de momentos nos quais não se sentem descontentes, nos quais se sentem totalmente livres e naturais. E isto não é algo grandioso como raios de luz se abrindo na sala –, é apenas um jeito de ser que é muito comum, belo, claro e pleno de insight.

Nós temos essas duas coisas acontecendo – dukkha e graça –, em relação às quais o Buda tinha muita curiosidade. Porque viu muito sofrimento, ele tinha muitas perguntas. Ele se perguntava sobre como acabar com o sofrimento, mas também tinha experiências de graça. Sua jornada inteira foi sobre “o que é o sofrimento?”, “o que é a felicidade?”, “quais são as causas e condições para o sofrimento e para a felicidade?”.

O resultado de toda essa exploração foi um plano belíssimo, que nós chamamos de Darma. Podemos nos juntar a ele nesse plano, se quisermos. É comum pensarmos que o Darma e o Buda são coisas religiosas que nos obrigam a abandonar nossas crenças. Mas, na verdade, eles são apenas um plano que tem o propósito de conectar nossas ações e intenções.

Começamos esse plano nos perguntando: “o que é a felicidade e como explorá-la?”; e, em seguida, “o que é o sofrimento e como trabalhamos com ele?”. Trata-se de um processo incrível de classificação. Sem olhar para os aspectos difíceis da existência, não teremos insight. Consequentemente, parte do plano demanda que o praticante tenha interesse pelo sofrimento, pela felicidade e pelo que ambos são. 

Nós frequentemente nos recusamos a ver o sofrimento e vivemos essa fantasia do que queremos experienciar em nossas vidas. Portanto, isso nos ajuda um pouco a entender que a fantasia não tende a trazer felicidade. Então, como fazer essa exploração? E como nós de forma destemida, mas bem devagar, gradualmente nos engajamos nisso e examinamos isso? E, quando começamos a examinar,  começamos a ver o mecanismo que cria a ignorância e o sofrimento, e passamos a ter menos medo da nossa mente. Aprendemos a trabalhar com as causas e condições. É muito bonito.

Você usou a palavra agência, e acho que foi porque você viu que eu tenho realmente explorado esse tópico. Afinal, se nós não fizermos acontecer, quem é que vai? Não é uma coisa que acontece sem a nossa visão, sem a nossa dedicação e a nossa vontade de avançar. Esta palavra agência é muito interessante porque, em alguns sentidos, nós não temos agência. Se olharmos para as nossas experiências, veremos que não temos agência. Talvez isso se deva, parcialmente, ao fato de que não temos uma prática do Darma, ou porque não sabemos o que estamos fazendo.

Ter agência significa nos sentirmos empoderados, confiar em nós mesmos e ter a habilidade de unir ação e intenção. Mas, falando de forma realista, não podemos simplesmente fazer qualquer coisa que quisermos. Se nós tivéssemos cem por cento de agência, provavelmente resolveríamos a crise climática e nunca teríamos nenhum sofrimento sequer. Então, esta é uma pergunta interessante: quanta agência nós temos? Por exemplo, se não formos educados, não vamos saber como praticar o Darma e simplesmente ficaremos presos à mente reativa o tempo todo apenas cedendo aos nossos impulsos e tentando ser felizes –,  mas nossas ações e intenções não estarão conectadas.

Portanto, precisamos nos educar. Se não ultrapassarmos nossos padrões habituais, não vamos ter agência, pois estaremos sempre reagindo. Reatividade é o oposto de ter agência. Então, há muito trabalho a ser feito na base. Acho que parte do Darma trata de como cultivar a escolha. Cultivar o ser capaz de escolher em vez de reagir. Ter paciência. Cultivar amor e compaixão para que, em vez de fazer algo de um jeito antigo, de um jeito habitual, possamos realmente criar para nós maior habilidade de escolha, graça e força. Claro que isto dá muito trabalho, mas o que melhor do que isso podemos fazer da nossa vida? É um bem-estar que serve ao nosso ambiente, serve às nossas relações, e traz graça ao mundo em que vivemos.

Livro O poder de uma pergunta aberta, de Elizabeth Mattis Namgyel, publicado no Brasil pela editora Lúcida Letra

 

Quando você falou sobre agência, eu me lembrei do seu primeiro livro (O poder de uma pergunta aberta), da parte em que você enfatiza o discernimento e diz que devemos confiar no nosso próprio discernimento enquanto andamos pelo caminho. Esta palavra “discernimento” também é muito poderosa, certo? Porque em alguns momentos sentimos que temos apenas que nos render ou nos oferecer para o caminho como se ele fosse uma coisa mística, “apenas seguir o fluxo” ou algo assim. O discernimento realmente faz as peças se encaixarem, confiando na nossa própria inteligência, na nossa própria sabedoria.

Elizabeth: Sim, isto também é parte da sua pergunta, e é uma parte muito importante, porque você estava perguntando sobre como nós discernimos nossas tendências cármicas de nossa sabedoria. Isto é parte do plano através do qual o Buda ensinou. Esta é uma pergunta muito crítica, e eu estou muito feliz que você tenha perguntado isso. No caminho do Darma, isso se relaciona ao “como”: como nós fazemos isso. O Buda ensinou sobre as três sabedorias. A primeira é quando “nós ouvimos os ensinamentos”, e é chamada de a “sabedoria de ouvir”, “sabedoria de escutar”. Assim, quando ouvimos os ensinamentos, nós não apenas escutamos e dizemos: “Oh, eu tenho de concordar com o que o Buda disser”. Na verdade, o Buda pediu que nós não fizéssemos isso. Ele disse: “Você deve sempre examinar os meus ensinamentos e ter certeza de que eles são verdadeiros para você”. Portanto, isso é parte do cultivo do discernimento.

De forma geral, todos temos discernimento. Sabemos a diferença entre uma maçã e uma laranja. Quando temos de decidir em que escola vamos matricular nossos filhos, precisamos de discernimento, precisamos pesquisar, precisamos entender. Portanto, no nosso caminho nós temos de cultivar o discernimento. Ele não vem por conta própria, não o temos logo de cara. Assim, quando temos a “sabedoria de escutar” ou “sabedoria de ouvir”, somos instruídos a manter a nossa mente muito aberta. Então, mantemos a nossa mente muito aberta. 

Há um ensinamento que diz: “Não seja como um pote que está tampado”, o que significa que você está fechado para os ensinamentos, não quer deixá-los entrar. E: “Não seja como um pote que está rachado”, que é quando você ouve os ensinamentos e eles vazam para fora. Também: “Não seja como um pote que tem veneno dentro”, de forma que, quando os ensinamentos entram, eles se misturam com todo tipo de pressuposições, visões errôneas, cinismo, etc. Seja um recipiente aberto, apenas ouça. Você não precisa acreditar nem precisa duvidar. Há uma outra forma de escutar, chamada de “o caminho do meio”. Este é o caminho do meio do Buda. Ou “a mente de uma pergunta aberta”, ou “a mente de investigar”’, que é altamente valorizada nesta tradição. Esta é a primeira sabedoria, ‘a sabedoria de ouvir’.

Então, uma vez que você deixa os ensinamentos entrarem, você pensa:“Hummm, o que isso significa para mim? Como isso se encaixa na minha experiência? Como isso pode me ajudar na minha vida? Como isto funciona, por exemplo, quando eu sou paciente em vez de ser reativo?”. Nós começamos a testar isso, a ver como isso funciona. Isto é chamado de “sabedoria contemplativa”, e é onde começamos a ver como isso se encaixa na nossa vida. Esta é a segunda sabedoria.

Há a sabedoria de ouvir e a sabedoria contemplativa, e ambas ajudam nosso discernimento crescer, nosso senso de discernimento crescer. Começamos a perguntar, por exemplo: “Quais são as causas e condições para a felicidade ou o sofrimento?”. E talvez reflitamos se estamos pensando apenas em nós mesmos, se estamos absortos em nós mesmos. Agir assim faz o que com a nossa mente? E o que acontece conosco quando somos generosos e bondosos com os outros? Isto abre nossa mente e traz muita liberdade a ela. Esse tipo de discernimento experiencial é necessário. 

A terceira sabedoria é a meditação. Quando você senta na sua almofada e começa a olhar bastante para a sua própria mente, podem surgir muitas perguntas. Perguntas como: “O que eu estou fazendo quando meus pensamentos e emoções emergem?”. Começamos a ver que não conseguimos nem mesmo sentar com eles. Passamos a entender os mecanismos do nosso próprio sofrimento e da nossa própria falta de insight. E pensamos: “O que acontece se apenas observarmos nossa respiração em vez de observarmos nossa mente?”. Começamos a ver que nossa mente está pacífica. E, assim, passamos a perceber que, quando nossa mente está pacífica e mais aberta, ela é um grande ambiente para o insight. Começamos a ver as coisas de forma muito diferente. Isso é insight meditativo, sabedoria meditativa. 

Nós todos temos discernimento comum, mas o discernimento sobre o qual falamos no Darma é o discernimento que apoia o despertar e examina as causas e condições do sofrimento e da felicidade. A palavra em sânscrito para discernimento é prajna. Ou, em tibetano, sherab. Prajna é uma bela palavra. Significa visão precisa, discernimento preciso; significa que somos capazes de unir as ações e as intenções. Por exemplo, se queremos ser saudáveis, mas saímos e compramos um monte de doces, isso quer dizer que as ações e as intenções não estão unidas. Então, como unimos as ações e as intenções? Isto é muito básico. 

No Darma, prajna tem duas partes: há o prajna relativo, que é a nossa capacidade de conectar os pontos entre as causas e os efeitos. Cultivar as causas e as condições para a felicidade: isto é conectar os pontos. Mas há outro aspecto de prajna, muito profundo, que diz respeito a ver as coisas como elas são. Por exemplo, quando sentimos raiva de uma pessoa para a qual nos fechamos, isso significa que a nossa mente está fechada ao redor de um objeto e não vê esse objeto de forma apropriada. As pessoas fazem coisas que nos machucam o tempo todo, e nós machucamos os outros o tempo todo. Mas, se a mente não estiver fechada, se pudermos apenas testemunhar a completude de uma experiência, começaremos a ver que há muitas causas e condições que deram origem àquela agressão e àquela pessoa. Apesar de a pessoa talvez ter feito algo prejudicial, nunca é uma via de mão única, há muitas razões para ela ter feito algo tão doloroso. E esta pessoa também tem muitos outros aspectos. Este tipo de prajna, que se refere a não fechar a sua mente ao redor do objeto, é talvez o que nós chamamos de “prajna absoluta”. Ele é muito profundo. Começamos a ver melhor as causas e condições ao redor das coisas, e não olhamos para elas de um jeito tão rude e grosseiro.

Em resumo, estes são os dois aspectos de prajna: “conectar os  pontos” e “ver as coisas como elas são”. Nós cultivamos ambos os aspectos no caminho. Portanto, este é um caminho no qual, em vez de cedermos às nossas tendências cármicas, começamos a ver a diferença, desenvolvemos discernimento perante as  nossas experiências: “Oh, esta não é a forma de conectar os pontos, e esta não é uma percepção acurada do que nós estamos experienciando”. Começamos a questionar coisas, suspeitar de coisas e entender coisas. E todo o nosso modo de discernir muda. Mas, é claro, isso leva tempo, requer esforço, mas é muito possível de ser feito. 

 

Bodisatva: Esta é uma  boa notícia!

Elizabeth: É mesmo uma boa notícia! E isso é muito prático, porque nós já temos discernimento. É um dom com o qual já nascemos, o dom de distinguir uma coisa de outra coisa, de saber a diferença entre felicidade e sofrimento. Talvez não saibamos isso de forma completa, mas passamos a saber por meio do processo de examinar isso.

 

Bodisatva: Acho que esse seu modo de apresentar ajuda muito. Você não falou sobre prajna como uma experiência muito, muito profunda, mas como algo que começa com o reconhecimento de prajna ao se ver a causa e efeito. Então precisamos de alguma confiança de que podemos finalmente ver a verdadeira natureza das coisas, a natureza da realidade. Assim, ela está um passo à nossa frente.

Elizabeth: Exatamente. 

 

Bodisatva: No seu segundo livro, você relaciona a sabedoria de prajnaparamita com a fé. Essa não é uma palavra comum nos círculos budistas e, para os meditadores, ela soa um pouco estranha. Você fala sobre isto no começo do seu livro. Então, como você se interessou tanto por esta palavra: fé?

Elizabeth: Eu estou feliz que você esteja fazendo esta pergunta. Aqui nos Estados Unidos, é uma palavra provocadora e difícil, porque as pessoas são muito científicas e costumam assumir que aqueles que têm fé são ignorantes, que fé é uma coisa errada, etc. Como eu cresci aqui, sinto um pouco disso, mas também sinto que, para mim, a fé como experiência é diferente da fé como uma ideia. Isto me agitava, e eu comecei a examinar. Sempre penso que, se há algo que agita você, você deve investigar. Um pouco de agitação pode ser uma coisa muito boa. Eu sempre tive muita fé na experiência desses momentos de “graça”. Sempre confiei nessa experiência em que minha mente estava aberta e conectada. Sempre pensei: “Esta é a experiência mais confiável que eu tenho”. E essa não é uma experiência condicionada. Ela apenas acontece, e você não sabe o porquê. Sempre fui obcecada por isso. Também sempre me perguntei por que às vezes sofria. Desde que eu era uma jovem menina tenho questionado isso, mas eu sempre senti essa devoção, ou fé, nessas experiẽncias. Por isso, acho que eu tenho, mesmo, muita fé nas coisas.

Ao mesmo tempo, a palavra fé também me incomoda, ou me agita, porque as pessoas dizem: “Ah, apenas tenha fé”. Isso é uma coisa difícil de se pedir. Pra começar, qual é o significado disso? Significa ter fé cegamente em algo? Ou significa ser um fundamentalista? Pois eu não gosto dessas coisas. Eu sou uma pessoa que gosta de examinar e investigar, da forma como eu acabei de falar sobre as três sabedorias. Eu gosto de ver as coisas com meus próprios olhos. E penso que isso é muito inteligente, porque talvez eu tenha, sim, fé no meu próprio discernimento e, conforme eu me torno uma praticante, vou tendo ainda mais fé no meu discernimento. 

Assim, nós temos, de um lado, um senso de lógica e de descobrir as coisas por nós mesmos e, do outro, a fé. E em alguns momentos a fé simplesmente surge de uma forma muito natural, e eu confio nisso. Às vezes, as coisas são difíceis e a fé não surge de forma natural, mas aí eu tenho fé no meu próprio discernimento, na minha própria mente, e eu estou cultivando isso.

O ponto interessante da fé é que nós realmente não podemos saber nada de uma forma definitiva. Tudo é interdependente e está mudando o tempo todo, assim como o nosso modo de ver as coisas, e não sabemos o que vai acontecer a seguir. Nós vivemos neste mundo interessante, e a condição humana é a de não saber. Precisamos ter fé, não temos escolha. No meu livro, há uma bela citação de Thinley Norbu Rinpoche. Perguntaram a ele: “Rinpoche, o que é fé?”. Todos esperavam uma resposta profunda, mas o Rinpoche apenas disse: “Vacas têm fé em pasto”. Nós precisamos ter fé no mundo em que vivemos porque tudo é dependente, e nós somos interdependentes. 

Eu procurei a palavra “fé” no dicionário e encontrei “fundamentalismo”, “doutrina”, “crença cega”. Mas também achei “amor”, “lealdade” e muitas outras qualidades boas. Assim, existem esses dois conjuntos de ideias opostas. Percebi, entretanto, que todas essas palavras têm uma coisa em comum: elas tentam encontrar um senso de segurança em meio à condição humana. E como nós encontramos segurança, tranquilidade, nosso lugar na condição humana? É isto o que a prática do Darma nos ensina, e ela pede que olhemos para a interdependência. 

Em certo sentido, nós estamos no comando, estamos aprendendo, somos parte desse processo criativo de encontrar o nosso lugar na natureza das relações interdependentes. Mas também não sabemos. E isto nos torna muito humildes. É um aspecto comovente da condição humana o fato de que nós não podemos dizer o que acontecerá a seguir. E, ainda assim, se nós estamos conscientes e dispostos a olhar para tudo, a nos engajarmos mesmo com as coisas mais difíceis, e se temos uma mente aberta, investigativa, curiosa e humilde, encontramo-nos em um lugar muito especial para além da crença e da dúvida. 

Sempre enfatizo: há um lugar que vai além de ter de acreditar de uma forma rígida ou ter de duvidar e viver num mundo muito cético e meio niilista. E isto que o Budismo está oferecendo é a “visão”; a visão que é muito corajosa, aberta, bondosa e humilde. Assim, o modo pelo qual posicionamos, ou equilibramos, a nossa mente é o que chamamos de prajnaparamita, na verdade. É a mente que está configurada para ter algum insight sobre a natureza da realidade e que pode responder às coisas com tremenda compaixão e lucidez. Você pode chamar isto de fé. Eu chamo isto de “faithing”, a habilidade de repousar neste estado.

Bodisatva: Hoje em dia, muitas pessoas estudam o Budismo e algumas vezes são até mesmo muito dedicadas à prática, mas não têm um professor. Elas leem muitos livros e assistem a ensinamentos on-line alguns ensinamentos muito bons estão disponíveis on-line. Elas pegam desses ensinamentos o que pensam que possivelmente deve funcionar nas próprias vidas, em um tipo de “prática Budista autoguiada”. Nós gostaríamos de saber quais são, em sua opinião, as vantagens e desvantagens desse método, e como podemos introduzir a importância de um professor na nossa sociedade? 

Elizabeth: Esta é uma pergunta muito relevante. Como o Buda disse, existem 84 mil tipos diferentes de Darmas (ensinamentos). E eu tenho certeza de que existem mais de 84 mil. Meu professor disse: “Existem tantos Darmas quanto pessoas”. Todos experienciamos o Darma do nosso próprio jeito, todos temos diferentes propensões cármicas, ou preferências, ou maneiras de ver o mundo. Todos vemos o mundo de um jeito tão único! Talvez haja portas de entrada para o Darma que venham através desses outros meios, para pessoas que querem ouvir ensinamentos, mas não querem se envolver muito, pessoas que estão com medo de se comprometer com um professor e fazer parte de uma comunidade. Portanto, eu não acho que isso seja necessariamente problemático. Sempre houve o Darma popular e o Darma muito sério.  

Na tradição tibetana eles dizem que existem os nampas, que são os insiders, e existem os tipas, que são pessoas que só recitam mantras. Sempre existem muitos aspectos diferentes na linhagem tibetana que praticamos. Incluímos todos os vários tipos de ensinamentos, os ensinamentos mais fundamentais, os ensinamentos mahayana, os ensinamentos vajrayana, é um sistema muito inclusivo. Mas nem todos o sistemas incluem o vajrayana ou o mahayana. Por exemplo, os ensinamentos mais fundamentais, que algumas vezes são chamados de ensinamentos hinayana, que significa “veículo inferior”, mas eu não gosto desse significado, porque esses são ensinamentos poderosos e absolutamente necessários, que o Buda ensinou no começo da sua “carreira” como professor. Sangas e praticantes do Theravada não se relacionam com o professor da mesma maneira que nós. Talvez eles tenham um amigo espiritual, mas não é a mesma coisa. Não sei se é assim para você, mas para mim o professor é quase como o centro de tudo. O professor é muito, muito importante.

Mas o que importa é que todos precisamos de professores. Eu sempre digo: “Imagine viver em um mundo sem professores”. Se os professores não existissem, não existiriam os alunos. Não existiria a curiosidade, a investigação e a humildade. Acho que com frequência nós tendemos a pensar que os professores estão aqui em cima e os estudantes lá embaixo [Elizabeth faz gestos com as mãos para indicar um nível mais alto e um nível mais baixo], mas eu acho que é mais deste jeito [Elizabeth faz gestos com os dedos indicadores retos, paralelos e unidos pela ponta]. Acho que é mais desse jeito, mesmo no Vajrayana. 

Então pensamos: “Os professores estão aqui [no alto] e nós estamos aqui embaixo”. Mas isso é muito preguiçoso. Porque, se os estudantes estão aqui embaixo e o professor está aqui em cima, você apenas venera o professor e não tem de realizar o trabalho para despertar. Mas se o professor e o estudantes estão assim [Elizabeth faz de novo gestos com os dedos indicadores retos, paralelos e unidos pela ponta], o professor tem o seu próprio papel único e o estudante tem o seu próprio papel único.  

O papel único dos estudantes é estar aberto, receptivo e com discernimento. Mesmo no Vajrayana, o estudante deve ter discernimento e clareza. Existe muita confusão sobre isso no momento atual. Não sei como está a situação no Brasil, mas aqui [EUA] tem ocorrido muita confusão e, portanto, as pessoas estão com medo de ter um professor. Eu sinto que, uma vez que o Darma tem se espalhado, ele precisa ser mais examinado. Essa é a razão pela qual eu dou muitos ensinamentos sobre agência, porque eu acredito que, mesmo no caminho Vajrayana, o Darma não é sobre desistir do seu discernimento.

Na verdade, como um estudante do Vajrayana, você precisa ter um senso de discernimento muito forte. No Vajrayana é falado sobre “o gancho e o anel”. O professor é o gancho, mas o estudante precisa se tornar o anel. O que significa ser um anel? Este é um grande tópico, claro. Significa ter espaço limpo, sem obstrução. Mas não significa estar vagando no espaço desorientado, sem saber o que está fazendo. No momento em que chega ao Vajrayana, você deve ter muita clareza sobre o que está fazendo.     

Deve existir uma aspiração muito forte de desistir do que quer que esteja bloqueando você na sua vida. Como mulher, eu poderia dizer sobre este tópico: está tudo bem em saber onde você está. Você sempre precisa saber onde você está. Se pedirem para você fazer algo com o qual não se sente confortável, você precisa saber disso, precisa se responsabilizar por isso. Como mulher, sinto que preciso dizer isso, porque isso pode se tornar muito doloroso e desconfortável. Além do mais, do jeito que está não tem funcionado nem para as mulheres, nem para os homens. Eu costumo dizer: “Nunca desista do seu senso de discernimento ou da sua agência”. Em lugar algum no Budismo é dito para desistir da sua prajna, é sempre sobre cultivar prajna. Portanto, é muito importante que eu diga: “Eu me sinto responsável”. E ao mesmo tempo entender que é uma dança. Agora mesmo, existem muitas dificuldades e desafios em torno dessa dança, mas nós não desistimos de desafios. Não podemos desistir dos professores porque não podemos desistir de nós mesmos como estudantes. 

Eu sinto que o papel do estudante é um papel divino. Não é como se só o professor fosse divino e o estudante fosse apenas algo modesto. Ser um estudante é a maior expressão do ser. Os professores são estudantes também. Sempre questiono a mim mesma: “O que significa ser um estudante verdadeiro e empoderado?”. Significa confiar no seu discernimento, significa honrar a sua prajna, significa estar aberto. Então, quando o professor diz algo, nunca somos forçados a apenas aceitar. Nós olhamos com curiosidade e abertura, com essa confiança na nossa própria mente.   

É por isso que eu acho que é um problema, algumas vezes, pular direto para o Vajrayana, ou para um ensinamento mais avançado, sem ter cultivado prajna. Meu professor Dzigar Kongtrul Rinpoche tem nos treinado desse modo: ter uma fundação forte no Hinayana e no Mahayana antes de seguir para o Vajrayana. Portanto, eu não acho que o Vajrayana seja para todas as pessoas 

É preciso entender o que estamos fazendo. A primeira pergunta foi sobre ações e intenções, e como confiar em si mesmo, já que existem tantos padrões cármicos. Precisamos criar uma fundação para que possamos confiar em nós mesmos e, assim, possamos seguir para algo mais avançado sabendo o que estamos fazendo. Caso contrário, ficamos sem poder. Nós devemos sempre nos sentir empoderados, esse é o ponto, mas não empoderados do tipo “lutando contra o professor” ou “lutando contra o Darma ou o patriarcado”.

Voltamos para a questão das mulheres: o Darma não é sobre patriarcado ou matriarcado, ou nada disso. A melhor coisa que podemos fazer como mulheres ou como homens, ou como quer que seja que nos identifiquemos em termos de gênero, de onde quer que venhamos, nossa herança é reconhecer e compreender o Darma, e permitir que a nossa prajna floresça. Esse é o verdadeiro poder. Acho que é aí que precisamos nos concentrar. Eu não sei como está o clima no Brasil, mas aqui a atmosfera psicológica ao redor do Darma está realmente tumultuada neste momento. Há muita agitação e reexaminação do Darma.

Eu sou completamente a favor do Darma, do reconhecimento do Darma, e de ajudar as pessoas a fazerem isso. Isso é onde eu realmente me concentro. Mas é claro que existem questões, e é por isso que eu falei: diga “não” se precisar. Confie em si mesmo, e crie uma plataforma para confiar em si mesmo. É disso que precisamos. Mas não desconsidere simplesmente a ideia de ter um professor. Não precisamos rejeitar nada, mas, ao mesmo tempo, não temos de aceitar qualquer coisa. Precisamos nos manter abertos. Mantenha-se aberto isso é o caminho budista.  

 

Bodisatva: Acho que esta é a questão principal. O fato de você permanecer aberta não significa que você desiste do seu discernimento. 

Elizabeth: Você acertou em cheio ao dizer isto. É isso que estamos tentando fazer aqui, investigando tudo isto. Na verdade, há uma alternativa para a crença e a dúvida, para o que o Buda chamou de eternalismo e niilismo. Essa alternativa se chama “o Caminho do Meio”. É isto que “caminho do meio” significa; ele está além da crença e da dúvida, além do eternalismo e do niilismo. Há outra maneira de equilibrar a sua mente e viver no mundo. Isto é como um lugar de descanso para nós, além da crença e da dúvida. 

Temos dificuldades com os relacionamentos, e parte da relação, de qualquer relação, é tentar encontrar o jeito de funcionar. Então, certa vez perguntei ao meu professor, Dzigar Kongtrul Rinpoche: “O que significa ser uma aluna realmente autêntica?”. E ele respondeu: “Lizie (ele me chama de Lizie), apenas seja aberta”. Ele está tentando dizer: “Você não tem que acreditar no que eu digo e vocề não tem que duvidar. Apenas use as três sabedorias, internalize a informação, deixe que ela toque você, e veja se ela a transforma. Veja o que vem à sua mente, porque tudo o que acontece com você ao longo do dia inteiro a transforma. Nós estamos sempre nos movendo, e mudando, e experienciando coisas, então apenas deixei isso acontecer”. Ele está dizendo: “Permita-se abrir e permita-se ter um insight. Não lute contra isso, mas não desista da sua prajna”.

Bodisatva: No livro A lógica da fé, você conta sobre o momento em que se sentiu “emperrada”. Quando estava em sua cabana de retiro, você não sentia nenhuma inspiração na sua prática de meditação e se lembrou de um livro da Madre Teresa de Calcutá, no qual ela fala sobre a “noite escura da alma”. Foi o que você chamou de “lugar de dúvida”. Como lidar com esse momento?

Elizabeth: Todo tipo de coisa pode surgir na meditação. Eu não tinha um “lugar de dúvida” no sentido de que estava duvidando do Darma como uma ferramenta poderosa, mas no sentido de que eu me sentia desconectada. O lugar no qual eu caí era muito escuro, eu não sabia como me conectar. Eu fui até o meu professor num determinado momento e disse: “Eu não estou me sentindo conectada, e a sensação é muito escura”. E ele disse: “Essa escuridão em si é a sua professora agora”.

Ao mesmo tempo, eu estava ouvindo sobre a Madre Teresa e me senti profundamente tocada por ela. Ela era uma pessoa de fé, tão maravilhosa e que fez um trabalho tão bom. Ela era uma Bodisatva e tanto. Eu simplesmente senti um vínculo com ela. E pensei: “A menos que realmente entenda as partes escuras, você vai sempre estar empurrando para longe as coisas que não quer e tentando segurar as coisas que quer. E você quer ter certas experiências e não quer ter outras experiências, o que significa que você não está ficando aberta”. Isto é meio o que você falou sobre “dualismo”: “Você não está ficando aberta às experiências que estão emergindo no momento”. E isso me ajudou muito.

Então eu comecei a tocar um pouco nisso, apenas experienciar sem me fechar. E o que eu encontrei foi uma experiência vívida, dinâmica e em transformação. Eu apenas precisava experienciar o que estava emergindo. A meditação é tão bela por causa disto, pois nós começamos a ver que: “Oh, uau! Eu tenho tantas preferências. Eu quero isto e não quero aquilo”. E isto se torna uma mente comum de apego e rejeição, de crença e dúvida.

As expressões de crença e dúvida são: se temos crença, apegamo-nos ao que queremos ou que pensamos que é verdade. E, quando temos dúvida, há esta constante rejeição à nossa experiência. Portanto, sempre há esperança e medo. Mas nós podemos relaxar um pouco ao redor da nossa experiência. Eu entendo que não é tão fácil, todos nós nos esforçamos muito, eu me esforçava muito naquele tempo. Aprendi que eu tenho um monte de apegos e aversões. Apenas relaxei um pouco mais profundamente, e estas coisas escuras se tornaram menos assustadoras e intimidadoras, e elas não eram o que eu pensava que fossem. Eu pensava que fossem uma grande bolha na qual eu estava aprisionada e condenada a ficar, mas isso se tornou mais trabalhável e começou a se abrir. E eu comecei a me sentir mais livre.

Bodisatva: Tudo o que você falou agora, Elizabeth, me lembra muito de Joanna Macy, e você a cita bastante, certo? Joanna está sempre enfatizando que nós deveríamos nos conectar com a dor que sentimos pelo mundo, que não deveríamos colocar isso de lado. Dentro dessa dor encontraremos compaixão, encontraremos bodicita, encontraremos o coração do Bodisatva. Então, nós gostaríamos de saber um pouco sobre essa conexão entre vocês duas e o que inspira você, seja o que for.

Elizabeth: Ela é definitivamente minha professora, e eu a admiro muito. Eu a amo e amo o trabalho dela. Desde pequena ouvia sobre o trabalho dela em Ecologia, o que ela fez em Chernobyl, ela é uma maravilhosa ativista, uma humanitária. Ela não é uma dessas ativistas rígidas e difíceis, porque ela é uma Lama, ela é praticante, ela é budista, ela estudou Paticcasamuppada, então ela tem esse sentimento de abertura em relação a si mesma. Eu não a conhecia pessoalmente, mas em algum ponto um amigo recomendou um livro que era a tese de doutorado dela, chamada Causalidade Mútua no Budismo e na Teoria dos Sistemas em Geral. É um longo trabalho, bastante acadêmico, mas eu amo os ensinamentos do Caminho do Meio, Madhyamaka, e eu a amei. Eu estava muito interessada no que ela teria a dizer, li aquele livro e me apaixonei por ela. Na realidade, aquilo me inspirou a escrever A lógica da fé

Através um amigo em comum, entrei em contato com ela e perguntei se ela poderia escrever um endosso para o meu livro. Ela escreveu um lindo Prefácio. Soube que ela viria perto da minha casa, a quatro horas de distância, então fui vê-la, tive uma reunião com ela e nos tornamos amigas. Quem mais você conhece e com quem pode falar sobre Paticcasamuppada, originação dependente, interdependência! Assim, nós apenas nos conectamos e nos tornamos amigas desde então. Ela é brilhante, é uma pessoa que eu sinto que entende o caminho do Bodisatva muito bem, porque ela entende que neste mundo no qual vivemos, como tudo é interdependente, o que eu digo em tudo se apoia. Ela chama isso de causalidade mútua, tudo se move e muda o tempo todo, então o mundo não é um tipo de coisa consertável, o mundo não é uma coisa só, é feito de partes. Todos nós vemos isso diferentemente. 

O que vem à sua cabeça quando eu digo “o mundo”? Todos nós temos uma imagem diferente. Talvez imaginemos uma fotografia do mundo completamente iluminado publicada na Life Magazine. Talvez vejamos a violência das notícias na TV. Talvez vejamos o nosso escritório ou a nossa família. As pessoas também pensam sobre a natureza. Mas o mundo não é uma coisa singular, ele é dinâmico e está em movimento. Então, nós temos essa ideia de que o mundo é, por exemplo, bagunçado. Isso é uma ideia singular, muito estática. Na realidade, o mundo é o máximo de coisas que podemos pensar e experimentar. Mas isso não é para negar que existem problemas, como mudanças climáticas e assim por diante. Joanna entende isso como uma ecologista profunda, porque ela tem essa sabedoria do Darma, do princípio budista da interdependência de que, se você acredita que pode consertar o mundo, isso pode ser um problema. Isso vai continuar mudando e, se não está no caminho que você gostaria, eventualmente você pode cair em desespero.

O Bodisatva toma isso de uma forma muito realista. Com a prática da bodicita, ganhamos um olhar muito realista sobre a natureza das coisas, e elas não são consertáveis. Mas, como tudo é interdependente, tudo o que fazemos importa muito e está influenciando tudo. Portanto, ao mesmo tempo, temos de observar nossa conduta e nossas ações com muito cuidado. Quando encontrei Joanna pela primeira vez, pensei: “Ok, ela é ativista, mas ela é dogmática? Ela está presa e rígida? Ela está com raiva? Ela está tentando consertar o mundo?”. Ela não estava, e fiquei muito feliz em ver que ela adotava a abordagem do Bodisatva. Joanna adotou uma abordagem corajosa. Ela sabe que o mundo não é consertável e ainda assim temos de tentar com toda a nossa mente, o tempo todo, ser esperançosos, bondosos e compassivos e servir de inspiração. Temos um poder tremendo, mas ainda assim não podemos consertar o mundo, porque consertar significa trazê-lo para algum lugar estático. Então, quando digo consertar, não significa necessariamente quebrado, apenas dinâmico.

Bodisatva: E ela também é um exemplo muito bom de como os ensinamentos budistas podem se misturar com a nossa cultura. A maioria das pessoas que a seguem os estudantes dela não são budistas, e eles estão fazendo coisas grandiosas a partir da contemplação profunda da realidade, sem uma prática budista.

Elizabeth: Exatamente, Joanna é uma Bodisatva, e eu sinto que ela está fazendo muitas coisas boas neste mundo. Eu me sinto tão sortuda por conhecê-la, isto me dá calafrios. Ela é mulher, não é da Ásia, nós temos alguém como ela neste mundo. Eu me sinto verdadeiramente grata a ela. Pediram-me para escrever um capítulo sobre Paticcasamuppada no livro de Joanna que será lançado em breve. É um tipo de presente para ela por seu aniversário de 90 anos.

Bodisatva: Como muitos outros professores budistas, você experimentou a tradição do mundo tibetano de dentro e, ao mesmo tempo, participou da implantação dessa mesma tradição em solo ocidental. Sendo você mesma uma mulher ocidental, quais são os desafios que você vê? Você se preocupa que algo possa se perder e que o Darma seja personalizado como você falou no seu livro? Como nós, praticantes, podemos evitar isto, por exemplo?

Elizabeth: Sim, eu acho que tive meus pés em ambas as culturas, por ser casada com um tibetano, por ter estudado essa tradição em um caminho bastante tradicional. É interessante. Penso que esse aspecto de investigação aberta está realmente no coração do Buddhadharma. Está além de cultura e tempo para mim.

Meus professores sempre enfatizam isso: investigação aberta, investigação profunda, prajna, tudo isso, e fé também, mas a fé fundamentada na experiência direta. Sinto que, se você apenas se concentrar nisso, não tem de se preocupar muito com a cultura ou a prática no Darma autêntico. Na realidade, ouço muitas pessoas que estão muito preocupadas com isso, com a criação de um Budismo ocidental ou mudança de forma. Tudo isso pode apoiar o Darma, e eu entendo que algumas pessoas são atraídas por algumas coisas e não por outras. Talvez nós pudéssemos olhar para o patriarcado e o Budismo, mas, no longo prazo, o único modo de realmente incorporar o Darma e nos sentirmos empoderados como humanos é trazê-lo vivo em você. Eu não conseguiria enfatizar suficientemente isso. Para mim, o resto é distração.

Bodisatva: Isso é muito libertador.

Elizabeth: Por que se importar? Apenas pratique o Darma, é tão empoderador! Para as mulheres também, eu me sinto muito animada em certo sentido, porque é o nosso tempo de brilhar, de empoderar e brilhar. Não lutando contra algum patriarcado masculino, mas praticando o Darma, incorporando-o. E fazer isso sendo o melhor ser humano que podemos ser, aproveitando a nossa vida profundamente dessa maneira, porque o Darma nos oferece justamente um caminho para desfrutarmos do modo mais intenso possível.

É como se você pudesse apreciar a sua mente em meditação mesmo quando coisas difíceis acontecem. Você pode encontrar significado, propósito. Pode se abrir quando não é pega em crenças e dúvidas, e encontra esse lugar de descanso de maneira humilde e aberta. As coisas são realmente interessantes e bonitas. Coisas que você não pensou que aconteceriam começam a acontecer. Você se sente presa em um momento e no momento seguinte pensa: “Uau! Existem tantas possibilidades!”. Eu não sei se sou feminista, tanto faz, eu nem penso muito sobre gênero, mas eu me sinto como mulher, eu sei o que preciso fazer e por que outras mulheres deveriam fazer isso também.

Este é um caminho humano que leva a maior qualidade de vida. Não perca tempo tentando consertar tudo isso, você nunca vai conseguir consertar. Neste momento, as causas e condições ofereceram razões para que as mulheres tenham mais voz. Eu acho isso fantástico, acho isso realmente emocionante.

Eu acredito que existem muitas professoras ótimas: Khandro Rinpoche, Sangye Khandro, no Ocidente, Joanna Macy. Eu sou um pouco mais jovem que algumas delas, mas estou envelhecendo agora também, e espero ver, ainda na minha geração, muitas praticantes mulheres realmente espetaculares, eu tenho fé nisso. Eu vejo mulheres praticando, e você aqui também me fazendo estas perguntas bonitas, você também faz parte disso. Sinto muita empolgação e suporte nisso.

Vamos praticar o Darma, porque esse é o único modo de as mulheres poderem manter a linhagem, é isso que eu encorajo. Se eu tive algum desafio, foi este. É um tipo de desafio de linguagem, mas é o mesmo desafio que todos podem ter. Você ouve alguma coisa e então tem de explicar isso para si mesma, precisa entender isso do seu jeito. Por isso eu sempre digo: não é apenas como o Darma é explicado para você, mas como você o explica para si mesma. E isso é uma questão de linguagem, tradução, experiência e profundidade da investigação; todas elas têm de acontecer com as três sabedorias. Então, volto à sua pergunta: faça você mesma, é muito pessoal, torne pessoal e faça isso ganhar vida em você, pratique viver o Darma.

 

Bodisatva: No Brasil, o nome mais popular do Budismo é a Monja Cohen. Você já ouviu falar nela?

Elizabeth: Eu apenas a procurei [na internet]. Não consigo entender nada porque é em português, então eu tive de observar o rosto dela. Ela parece extremamente brilhante e extremamente expressiva. Parece cheia de Darma, então eu acho que isto é maravilhoso.

Bodisatva: Gostaríamos de lhe perguntar sobre retiros, em especial retiros longos. Às vezes, quando nós falamos sobre você, contamos que você foi hábil em fazer um retiro longo (sete anos), mesmo sendo mãe, e que sua comunidade a ajudou. E todo mundo reage com: “O quê? Como isso poderia ser?”.

Elizabeth: Chocante de certa maneira.

 

Bodisatva: Gostaríamos que você falasse um pouco sobre a importância do amadurecimento da prática e também sobre como as pessoas que provavelmente não terão a oportunidade de fazer seu próprio retiro nesta vida podem aprofundar suas práticas. 

Elizabeth: Eu não acho que todos tenham de fazer um longo retiro para serem praticantes, essa é uma circunstância que surgiu para mim. Dzigar Kongtrul, meu professor, me apoia muito a fazer isso, numa área extremamente remota. Nós temos um terreno de retiro muito próximo da casa, onde eu estou neste momento, fica a apenas alguns quilômetros de distância. Nós construímos uma cabana lá fora, e o meu filho, que era muito jovem, se tornou parte do retiro. Ele tinha uma pequena cama lá e, às vezes, ia me ver à noite. Também fazíamos longas caminhadas nos finais de semana. Meu filho é muito quieto, ele se sente confortável com a quietude, em não falar muito. Ele costumava dizer: “Mãe, eu amo que você esteja em retiro, porque eu sempre sei onde você está”. Tão doce! Eles moravam na casa, e o meu marido, Kongtrul Rinpoche, ia e vinha. 

Algumas vezes, meu filho quis que eu saísse [do retiro] e eu saí. Certa vez, ele estava numa peça de Shakespeare e interpretou um grande papel, ele é um ótimo ator. Ele tinha apenas 9 ou 12 anos, não lembro bem quantos anos ele tinha. Então, eu saí para assistir à peça e voltei. Em outro momento, ele queria que eu fosse ver os jacarés. Nós vivemos no meio de um deserto alto. Eu não entendo isso, mas existe uma enorme fonte de águas termais e trouxeram os jacarés para viverem nas águas termais, e meu filho queria que eu fosse ver os jacarés. Então, eu saí um dia, fui ver os jacarés e voltei. 

Eu tinha de ser realmente flexível e aberta. E Kongtrul Rinpoche estava sempre me encorajando. Às vezes eu ficava muito apertada no meu retiro e Kongtrul Rinpoche me lembrava: “Tudo bem, os limites estão dentro, não fora”. O mesmo ocorre com os limites da prática, é bom dizer isso. Se a sua mente está descansando num lugar de questionamento aberto, realmente no caminho do meio, esse é o limite. Você deveria checar e ver onde a sua mente está o tempo todo: se é compassiva, aberta, entregue, ou se é apertada, contraída e autocentrada, por exemplo. Onde está o limite da prática? E como trabalhar com isso? Quando estou praticando e quando não estou? Esses são questionamentos profundos, mais profundos do que ter uma cabana ou fazer um círculo que você não pode ultrapassar. Isso é apenas físico.

É claro que entrar em retiro realmente aprofunda e fortalece a sua prática, mas você não tem de fazer retiro para ser um praticante forte, você pode ser apenas uma pessoa simples que presta atenção onde estiver. Tulku Orgyen Riponche, também um dos meus professores, costumava dizer: “Não faça longos períodos de prática em que você está apenas sentada lá, mas não está realmente conectada à prática. Faça muitos pequenos intervalos de prática”. E isso é bom para as mães. Como mãe, eu tentei fazer isso quando meu filho era pequeno. Apenas faça alguns mantras também, cante alguns mantras bem alto quando vocês estão juntos, ou também entenda que aquele tipo de cuidado o trabalho que é cuidar de alguém é também um trabalho nobre e pode ser visto como prática. Então, quando estiver se debatendo, reze para o Guru ou cultive bodicita, ou seja generosa e siga os demais paramitas: disciplina, generosidade, paciência, tudo isso. Faça o máximo de prática que puder e apenas use a sua vida dessa maneira. Cultive prajna. Todas essas coisas.

 

Bodisatva: Sempre que o Lama está dando algum ensinamento, alguém pergunta: como lidar com a tensão social e com famílias rompendo relações? Quando você vê a casa pegando fogo, como praticar com isso? Então, as próximas perguntas seguem nessa direção. A primeira pergunta está relacionada à emergência climática e ao perigo de uma extinção em massa. Como nós, budistas, podemos integrar isso com as nossas práticas espirituais? Existe uma maneira de agir para o benefício do planeta por exemplo, como um ativista ambiental, especialmente aqueles que estão engajados em ações sem a percepção de estar lutando contra um inimigo? Há, de algum modo, um inimigo contra o qual estamos lutando? Você já falou de algumas coisas relacionadas a essas questões, mas seria ótimo se pudéssemos explorar esse assunto um pouco mais.

Elizabeth: Sim, é tão importante falar disso. Você estava dizendo que o Lama também recebe esse tipo de pergunta… Eu ainda não o conheço, mas tenho a sensação de que ele as está respondendo de um jeito muito compassivo e bondoso. 

Talvez eu possa falar um pouco sobre a diferença entre consertar e curar. Uma vez que vivemos neste mundo dinâmico, quando olhamos para as coisas e solidificamos o que pensamos que elas são, nós criamos essa incrível divisão nós e eles ou nós criamos um inimigo, e, é claro, eu não acho que isso nos ajude. Acho que precisamos ser mais corajosos do que isso. Olhar para a evolução no contexto do Budismo é muito interessante, porque é como dizer que, na verdade, as coisas não evoluem de modo linear. Se nós realmente olharmos para a vida, veremos que ela é muito cíclica. O nascimento, envelhecimento, doença e morte não são a evolução, não necessariamente. Isso é como dizer que nós nascemos e estamos imediatamente nos direcionando para a morte. Sempre houve ciclos na natureza, sempre houve ciclos sociais, tudo é impermanente. Talvez este planeta seja impermanente. As coisas estão mudando o tempo todo, então nós temos de reconhecer o mundo físico em que vivemos e no qual nos movemos.  

Então, o fato de que tudo se apoia, tudo é interdependente, significa que tudo é dinâmico, em movimento e em mudança. E nós nunca sabemos para onde está indo, algo singular e único nunca acontece, há muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Existe, você sabe, a queimada da floresta tropical no Brasil (algo sobre o qual estamos ouvindo bastante), isso é muito doloroso e, em virtude da interdependência, pode afetar todo o ecossistema do planeta. Mas também existem coisas bonitas crescendo o tempo todo, existem pessoas se conectando e cuidando umas das outras, existem pores do sol e oceanos… Está tudo ali. E a pergunta que eu sempre faço é: “Podemos aguentar isso? Podemos suportar toda essa vida, beleza e dor?”. Nós, frequentemente, dizemos que é difícil aguentar a dor, mas é difícil aguentar a beleza também. 

Na tradição Mahayana, a tradição do Bodisatva, tem um Bodisatva chamado Chenrezig (a forma feminina é Guanyin). O nome em sânscrito é Avalokiteshvara, que significa aquele que não fecha os olhos para o mundo, então Chenrezig significa aquele cujos olhos estão sempre bem abertos, que não os fecha. O objetivo do Bodisatva é ser capaz de estar presente e testemunhar. Eu acho que o trabalho da Joanna Macy conversa muito com isso. Então, Avalokiteshvara olhou para o mundo lá fora e tentou livrá-lo de todo o sofrimento, mas o sofrimento apenas continuou acontecendo. No minuto em que ele eliminava um sofrimento, mais sofrimento vinha. 

Essa é a essência do samsara, a realidade das aparências relativas. Existe muito sofrimento, e é onipresente. Nós não podemos virar as costas. Então, ele [Avalokiteshvara] ficou tão arrasado pelo fato de não poder consertar o mundo que se quebrou em milhares de pedaços e desenvolveu milhares de braços com milhares de olhos, o que é uma metáfora para: deixe-se realmente ser tocado pela vida. O maior medo do Bodisatva é ser afastado do sofrimento dos outros. Nós temos de ser capazes de testemunhar o que está acontecendo. Então, por ter muitos olhos e muitos braços, Avalokiteshvara conseguiu beneficiar mais. Mesmo que não sejamos capazes de consertar exatamente, nós devemos responder, e isso se torna o referencial da nossa vida. Isso se torna o nosso caminho, torna-se nossa aspiração, o nosso desejo: como eu posso servir? Temos de sempre nos perguntar, como praticantes Bodisatvas: Como eu posso servir? Como eu posso influenciar? O que posso fazer?

E, então, movemos-nos para fora do nosso pequeno mundo insignificante. Porque até mesmo estar com raiva de alguém por causa das mudanças climáticas é uma experiência pequena e autocentrada, não podemos permitir isso. Precisamos experienciar a diferença entre o desespero que sentimos quando nos fechamos e a compaixão que sentimos quando não nos fechamos e somos capazes de estar presentes e testemunhar. Porque não precisamos de mais desespero, precisamos de compaixão. A compaixão nos permite servir. O desespero e a compaixão são coisas extremamente diferentes. Portanto, tomar alguém como nosso inimigo não faz bem algum para ninguém. Nós devemos nos tornar maiores. 

Minha sogra, uma praticante tibetana no Tibete, costuma dizer: “Torne o seu coração tão grande a ponto de você ser capaz de realizar uma corrida de cavalos dentro de si mesmo”. Ela vem de uma cultura de cavalos, nos planaltos do Tibete, então isso significa muito para ela. Ter um coração grande no Tibete significa que o seu coração é grande o bastante para acolher tudo. E isso é o que o Bodisatva está tentando fazer. A habilidade de estar presente, testemunhar e tornar-se cada vez maior para acolher a dor e a beleza do mundo. Isso nos motiva a sermos capazes de servir e não sermos paralisados pela sobrecarga. Eu sinto que é disso que o trabalho da Joanna trata. Certamente é o trabalho de um Bodisatva.

Elizabeth oferecendo ensinamentos no Brasil, no Chagdud Gonpa Ridjed Ling, em 2019. Foto: Michelle Magrini

 

Bodisatva: Com o mundo passando por múltiplas crises, muitas pessoas têm experienciado condições precárias de trabalho e ambientais. A aceleração mental também parece ser generalizada e intensificadora da crise. Como você vê os ensinamentos sobre a vida humana preciosa nestes tempos? A dedicação dos praticantes do Darma está sendo ameaçada pelas dificuldades deste tempo ou é potencializada por isso? Qual é de fato a influência, no nosso caminho, das condições sociais relativas? 

Elizabeth: A vida se torna preciosa se a utilizamos bem. Se não utilizamos a vida bem, ela não é preciosa. Uma mulher me escreveu recentemente dizendo que ama os animais e tem muita dificuldade com as pessoas (eu entendo!). Ela disse: “Eu acho que o mundo e os animais estariam muito melhores sem nós”. Eu respondi que acreditava que isso provavelmente era de fato verdade, em algum nível, mas isso é algo muito doloroso de dizer. A mente humana é muito complexa e difícil, e existe muita confusão no reino dos humanos.  

Aqui entra toda a ideia do Darma. Como podemos utilizar a nossa vida? Vamos viver uma vida confusa ou vamos dedicá-la a beneficiar os outros e também à compreensão da natureza das coisas? Somos seres humanos poderosos, somos muito influentes, mas isso depende de entendermos quem somos. Eu acho que isso é algo sobre identidade, algo sobre o qual eu falo no livro A lógica da fé. Quando nos vemos como algo separado e estamos um tanto contraídos em nós mesmos, ficamos sempre tentando descobrir quem somos nós, mas não seremos capazes de descobrir isso nunca. Se somos, de fato, parte da natureza em relacionamentos interdependentes, não podemos dizer exatamente quem nós somos, porque não conseguimos dizer onde eu termino e onde o mundo começa.  

O mundo está nos influenciando e nós estamos influenciando o mundo, então nós somos algo como [Elizabeth pressiona a ponta dos dedos indicadores um contra o outro]. Tudo se apoia. Então, eu chamo isso de reconhecer que somos parte da grande natureza de infinitas possibilidades. Por exemplo, nós pensamos: “eu sou o cidadão de uma cidade, uma família, uma nação”, ou “eu sou o cidadão desta Terra”. Mas, mais do que isso, temos de dizer: “eu sou um cidadão da grande natureza da interdependência, das possibilidades infinitas”. E, quando nós entendemos isso, não tem como nos sentirmos pequenos e diminuídos. Ao mesmo tempo, não tem também como nos sentirmos todo-poderosos, porque não temos o controle de tudo.   

Então, entendemos quem somos nós de um jeito não-dual. Entendemos a nós mesmos como parte dessa grande teia infinita de continuidades e relações. Portanto, temos de realmente ser muito afetuosos, muito cuidadosos e habilidosos no modo pelo qual nos movemos no mundo que é do que trata toda a prática do Darma. E, assim, encontramos nossa agência nisso, olhando para as causas e efeitos, e também sendo capaz de não cair em desespero, já que conhecemos a nossa própria natureza. É como se você viesse a conhecer quem você é por intermédio do entendimento da natureza da interdependência. Quando, então, você entende a natureza de quem você é, não existe mais toda essa confusão. Na verdade, se entende a natureza de quem você é, você sempre quer servir e sente muita alegria em servir. E sente compaixão em vez de desespero, porque você não está solidificando a experiência e não se sente condenado ou preso.

Uma vez que tudo se apoia, é impossível se sentir preso. No minuto em que você pensa “ai, meu deus”, é tipo isso [Elizabeth pressiona a ponta dos dedos indicadores um contra o outro], e então ele se transforma em algo novo. Podemos descansar aí? Podemos encontrar aí o nosso lugar de descanso? É um lindo lugar de descanso, porque de novo estamos falando sobre uma mente de pergunta aberta, estamos falando de uma mente com as qualidades da humildade, curiosidade, inteligência, discernimento e entendimento de como as coisas são. Estamos falando sobre um jeito bom de ser em relação.

Então, todas essas coisas surgem. Nós não sabemos o que irá acontecer, mas eu sinto que existe agora um potencial para o despertar, talvez porque nós estejamos sendo tão pressionados. Para onde iremos? Tentamos de tudo e não está funcionando! É um lugar de potencial, mas, se vamos utilizar esta vida como preciosa ou não, realmente depende de nós e aí, mais uma vez, é onde entra a agência. O que você quer? Como você chega lá? Você irá mesmo fazê-lo? Ser humano não é tão fácil, mas pode ser significativo, realmente significativo, com o caminho do Darma. É assim que eu sinto. 

 

Bodisatva: A última pergunta é sobre o Brasil. É dito que somos muito bondosos e calorosos…

Elizabeth: Sim, parece que sim.

 

Bodisatva: Ao mesmo tempo, somos um dos países mais violentos do mundo. Eu não sei se você está ciente disso, mas acho que nós somos um dos três países que mais matam ativistas. Você acha que, de algum modo, os ensinamentos budistas podem nos ajudar a liberar as causas da violência, tanto individual quanto coletivamente? Você acredita que o Darma possa ser útil em uma recuperação ou cura coletiva, ou esta é uma expectativa muito alta?

Elizabeth: Esta é uma pergunta difícil! Queremos acreditar que sim, e isso não tem de ser necessariamente budista, poderia ser cristão, poderia ser uma das grandes religiões que dão grande ênfase à compaixão e à bondade e nas quais as pessoas praticam respeito, humildade, e tudo o mais… Eu sinto que essas qualidades são encontradas em outras religiões também. E não apenas em religiões. Acho que as pessoas têm muita propensão para isso, se conseguirmos apenas trabalhar com algumas das nossas tendências habituais. Acho que não podemos controlar o que as outras pessoas fazem, mas podemos ser um exemplo, um exemplo vivo, e podemos ampliar a bondade o máximo possível. Mesmo de formas simples.   

E aqui está um exemplo. Eu não tenho piscina perto de casa porque moro nas montanhas, mas às vezes, quando eu vou ver o meu filho (ele mora a apenas quatro horas daqui), vou ao centro atlético próximo à casa dele. Sempre amei nadar. Algumas vezes, é muito tenso na piscina, porque, como não existem muitas raias, de vez em quando você tem de dividir a raia e todo mundo está com pressa. É tão agressivo que às vezes nem tenho vontade de ir, mas acabo indo de qualquer jeito. Então, eu entro em uma raia e estou nadando. Aí a pessoa chega em geral parece bem tímida, porque todo mundo está meio tenso e diz: “Posso dividir?”. Você simplesmente responde: “Pode chegar, entre aí!”. De um jeito bem caloroso. Assim, você coloca a mente dela à vontade e cria um certo tipo de cordialidade com aquela pessoa. Ela apenas relaxa e algo se abre.  

E isso é apenas um simples ato de bondade, um simples gesto cordial que você tem com alguém. E por todo o dia, ou talvez por toda a manhã, aquilo anima você e anima a outra pessoa. Essas pequenas coisas podem ser enormes. Pode ser enorme para alguém que está realmente sofrendo e você nem sabe. Talvez alguém que acabou de ter uma grande perda. Talvez um pouquinho de bondade é tudo de que ela precisa. Então, com gestos bem pequenos você pode ajudar, ou de grandes formas, quando alguém se encontrar em posição de ajudar. Você consegue do seu próprio jeito. Apenas seja bondoso, autêntico, curioso e amoroso amorosos é o que precisamos ser, o máximo possível, simplesmente amorosos. Diz-se que isso é um benefício para si mesmo e para os outros, então, como podemos perder com esse tipo de atitude? Eu tenho grande fé no poder disso. Isso é algo muito poderoso, não deveria ser subestimado.

 

Bodisatva: Eu tenho lido os trabalhos de alguns ativistas dos Estados Unidos. Há uma ativista chamada Adrienne Maree Brown. Ela não é nada budista, que eu saiba não tem um caminho espiritual, mas diz acreditar que a mudança que queremos ver no nosso mundo virá por meio das pequenas interações baseadas no amor, respeito e também na sabedoria. Essas interações muito pequenas vão florescer, se expandir e, de um jeito não-linear, trarão a mudança que queremos. 

Elizabeth: Realmente concordo, porque acho que parte do problema é que olhamos para as mudanças climáticas, e isso é tão enorme! Nós fazemos disso uma coisa singular e isso nos sobrecarrega. Somos seres individuais, e como um indivíduo seria capaz de mudar esse tipo de coisa grande, geral e vaga? O que “mudanças climáticas”, de fato, significa? A cada lugar onde você vá, o clima é diferente e em mudança: o que isso, de fato, significa? Nós seguramos isso como se fosse como eu digo um retrato reificado, fazemos disso uma coisa real, e então não somos capazes de nos relacionar com isso, e isso passa a ser um fardo para nós. 

Tudo o que nós realmente temos é a nossa habilidade de nos relacionar com o mundo ao nosso redor. Então, vamos nos conectar com ele! E nos relacionarmos com ele com amor. Parece que essa ativista está indo pelo caminho certo. Isso é o que podemos fazer. Nós não podemos nem mesmo fazer disso outras coisas. É algo estranho… Nós fazemos disso uma coisa e então nos sentimos intimidados, sobrecarregados, e simplesmente congelamos. Vamos ver o que somos capazes de fazer. Nós não temos agência para mudar o mundo desse jeito [Elizabeth faz um gesto com as mãos mostrando algo enorme]. Mas nós temos agência para influenciar tudo ao nosso redor, então vamos fazer isso bem. Isso podemos fazer. Imagine se todas as pessoas fizessem isso? Então, estaríamos bem. 

 

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2 Comentários

  1. edlaine garcia da silva disse:

    Nas infinitas possibilidades que a vida oferece, nelas mora a beleza. A beleza de experiências tão vastas com os sofrimentos e as alegrias. Não sou budista e, participando da comunidade O lugar, tenho aprendido muito com toda a filosofia. As reflexões trazidas nos estudos, a cada meditação, a cada compartilhar têm vindo ao encontro do que acomoda num lugar de paz e do que incomoda e acolho, observo. Estou terminando de ler o livro A Lógica da fé e agora me deparo com essa bela entrevista, Lia Beltrão. Mais esclarecimentos vieram. Elizabeth Matis Namgyel e todas as perguntas feitas trazem a luz e a sombra juntas tão necessárias, pra enxergarmos além. A leitura tem sido um convite à abertura de todas as experiências. Todas. A cada momento. Será muito rico o estudo do livro. Quero seguir me nutrindo de todos esses conhecimentos e escolho espalhar leveza e amor na minha comunicação, já que trabalho nessa área. Que delícia ler um conteúdo tão, tão rico. Por mais e mais lindas conexões ( ”com costas fortes, frente suave” – Roshi Joan Halifax ) movimentando o mundo ao redor, que nos cerca, reverberando algo maior…com Fé!

  2. Vera Braga disse:

    Essa entrevista nos mostra como a vida humana é um campo de múltiplas possibilidades . Elizabeth é maravilhosa. Sua fala mostra simplicidade, sabedoria e leveza. Penso que uma grande possibilidade nas nossas vidas é acolher as experiências da vida, as pessoas, a nós mesmos , as nossas humanidades . Está aberta para compreender as outras pessoas, a si mesmo e o seu entorno. Essa abertura ocorre, penso , quando fazemos o deslocamento do nosso autocentramento e passamos a enxergar o nosso entorno e as outras pessoas como parte de nós mesmos. Então, sigo nessa busca de entendimento da nossa existência e de sentidos para as nossas vidas.

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