Escravidão e Liberdade no Brasil

Retiro Zen Peacemakers Brasil na Bahia, de 01 a 05 de maio.


Por
Revisão: Sandra Knoll
Edição: Carol Franchi
Entrevista por: Carol Franchi e Elen Cezar

Durante os três séculos de comércio de escravos no Brasil, cerca de 4,9 milhões de pessoas africanas escravizadas foram enviadas para o Brasil, sendo a Bahia o segundo principal destino – depois do Rio de Janeiro -, para trabalhar nos incrivelmente lucrativos e bárbaros campos de açúcar. Muitas delas escaparam das plantações e formaram comunidades de fugitivos, conhecidas como quilombos, onde criaram novas formas de vida, concentrando-se principalmente na agricultura e incorporando costumes e rituais que seus ancestrais haviam trazido da África.

É nesse cenário que o retiro Escravidão e Liberdade no Brasil será oferecido, como o primeiro evento do círculo Zen Peacemakers no Brasil. Para saber mais sobre como será a dinâmica das atividades, a Bodisatva conversou com o monge Koho Mello, um dos idealizadores.


Como surgiu a ideia de realizar o retiro Escravidão e Liberdade no Brasil?

A ideia surgiu por conta das experiências prévias que tive com outros retiros desse tipo realizados pelo Zen Peacemakers International, especialmente o Retiro de Auschwitz-Birkenau, que participo já há alguns anos. Percebi que o efeito na prática das pessoas é muito notável. Uma diretriz básica desse tipo de retiro é proporcionar experiências que permitam insights sobre a aplicação da sua prática espiritual no cotidiano e na sociedade.

E por que eu digo prática espiritual? Porque são retiros interreligiosos, não são retiros budistas. Os princípios, no caso, o “não saber”, é não ir com uma ideia pré-concebida sobre os fatos e sobre os personagens envolvidos nesses fatos.

Também tem o conceito básico de um retiro de “plena presença”, em imergimos naquela situação, mergulhamos na água e todas as nossas capacidades perceptivas e conscienciais estão dentro daquela situação. Como nós partimos do pressuposto de não ir com uma ideia pré-concebida, abrimos mão dos nossos conceitos anteriores, e o resultado é que usualmente surge um insight muito pessoal.

Nesse tipo de retiro, buscamos uma situação histórica ou um evento que tenha gerado um trauma social histórico. No caso do Brasil, não fomos nós que optamos pela situação, mas ela que optou por nós: a primeira ideia foi fazer com os povos nativos. Chegamos a fazer toda uma preparação há mais de cinco anos, mas as coisas não andaram, também teve a pandemia… aí, por conta de um retiro que fizemos na Bahia, no CEBB Recôncavo, fizemos uma visita aos quilombos e a situação andou naturalmente. Houve uma abertura, surgiu a inspiração, as coisas começaram a andar e as circunstâncias começaram a ser favoráveis. Por isso a opção por começarmos essa caminhada com a questão da escravidão e liberdade no Brasil, lembrando que não se trata apenas da população afrodescendente, mas também sobre as que vieram escravizadas da África.

Existem várias escravidões e várias possibilidades de cultivar liberdade na sociedade brasileira. A partir disso surgiu a motivação, e agora é que se reuniram as condições para a fundação, digamos assim, para a criação institucional de um círculo Zen Peacamekers no Brasil, e esse modelo do círculo foi mais bem sucedido durante a trajetória do Bernie Glassman, principal líder do Zen Peacemakers.

Como o retiro se alinha aos princípios e valores do Zen Peacemakers?

Essa forma de fazer é estruturada na medida em que se acolhe a diversidade sem perder a visão principal do Zen Peacemakers, que é não ter uma ideia pré-concebida sobre os fatos, mergulhar completamente na situação e, assim, buscar ações sociais a partir do não saber e da presença plena.

Quais são as principais atividades e experiências que os participantes podem esperar durante o retiro?

Em primeiro lugar, como disse, é ter condições de imergir nessas situações. Isso é uma questão básica, proporcionar condições para que as pessoas tenham contato direto pessoal com as situações, com as pessoas, com as comunidades, com as memórias daqueles lugares. Vamos começar de uma forma um pouco não convencional, olhando soluções possíveis, visitando uma comunidade e locais em Salvador que estão ligados à história do escravagismo no Brasil, mas onde já houve movimentos evolutivos de superar isso pela articulação social.

O segundo ponto é a prática. O Zen tem referencial budista, então nós praticamos diariamente meditação, e também praticamos diariamente o council, que é a partilha respeitosa no círculo. Temos um referencial ético muito claro porque os retiros são abertos a qualquer pessoa de qualquer tradição, e é importante que haja um referencial ético que vá além de qualquer particularidade dessa ou daquela religião, ou dessa ou daquela referência cultural.

Além disso, existe uma coordenação dupla: uma se refere aos aspectos logísticos para que tudo seja suprido de maneira adequada, e outra se refere a visão. Em inglês esse último grupo é chamado de spirit holders. São aquelas pessoas que sustentam a visão no caráter da experiência espiritual. São mais experientes, participaram de vários retiros e tem uma caminhada nessa visão da prática socialmente engajada, que ocorre de uma forma contemplativa, diferente de um ativismo.

Nós vamos para aprender e trazer para a nossa realidade as possibilidades de superação das causas e condições daquele sofrimento que vimos, que experienciamos nesse retiro, expandindo para um processo humano que está presente em qualquer lugar do mundo, em qualquer época da história da sociedade humana.

Qual é o papel da meditação e das práticas de partilha durante o retiro? Como elas podem contribuir para essa reflexão, transformação e mudança no olhar, ainda que seja um processo pessoal?

As práticas meditativas seguem um formato bem peculiar, porque são em grupo. São oferecidas práticas opcionais no início da manhã de cada dia mas, durante o retiro, há práticas coletivas em que nós sentamos e fazemos silêncio no local dos fatos, de modo a poder ter um olhar mais lúcido e que nutra esse desprendimento de conceitos que possamos ter a respeito daquela situação. É como entrar em um espaço muito mais amplo, onde podemos olhar a situação sem apegos a essa ou aquela visão.

Eu sempre me refiro assim, é como que acessar a possibilidade de vivenciar todos os papéis que tiveram alguma importância, alguma relevância naquele local. Esses retiros são feitos em locais ligados a eventos traumáticos, dolorosos, marcantes. A meditação é o espaço de repouso onde essas impressões culturais e emocionais se assentam, e o espaço diário de partilha da manhã no círculo, é onde a pessoa pode relaxar através da partilha e de uma escuta atenta. Ela tem um contêiner, um recipiente coletivo, onde ela pode expressar o que está sentindo. Não se trata aqui de contar uma história a respeito daquilo, mas é sobre o que se está sentindo agora, o que que está vivo no seu ser agora, com base na experiência que você está vivendo.

Essa é uma metodologia muito antiga que foi revisitada e adequada para esse tipo de contexto. Não são apenas os Zen Peacemakers que a utilizam. Prova de que funciona muito bem, é que recentemente tivemos uma experiência desse tipo, online, específica sobre a situação em Gaza, e que se nota que as pessoas que se manifestam são gratas por terem um espaço de partilha respeitoso, confidencial em que elas podem realmente depurar o que estão sentindo, e também nutrir a lucidez a partir desse espaço mais lúcido, mais neutro.

Essas práticas proporcionam o acesso à dimensão humana da experiência e aos meios para que essa experiência no nível humano possa ser desprovida de julgamentos. São metodologias que não estão ligadas a uma visão religiosa mas a uma visão que vai muito além, é um espaço não-interpretativo, não-discriminativo e funciona.

Pode falar um pouco mais sobre a colaboração voluntária dos participantes nas atividades sociais durante o retiro?

Quando vamos para qualquer atividade social do Zen Peacemakers, não levamos nenhum tipo de solução. Levamos a nossa presença que se dispõe a colocar serviços. Se na escola Luiza Mahim nos pedirem para ajudar na limpeza, vamos ajudar na limpeza; na preparação de alimentos, vamos ajudar na preparação de alimentos. Levamos a nossa presença disponível para o serviço, porque isso traz uma humanização do processo possível de solução.

As soluções, nessa visão e nessa experiência, não acontecem pela simples doação de dinheiro, mas pelo engajamento da pessoa em algo que realmente traga compartilhamento das causas. Então, nós não sabemos, a gente não sabe o que vai ser o serviço, mas vamos dispostos a colaborar com a nossa presença e com a nossa atividade, naquilo que for necessário.

A questão básica aqui é que todas as atividades começam pela escuta, por uma escuta atenta, por uma escuta aberta e não com a pronúncia de uma solução. É uma atitude primeiro, eu diria, de humildade conceitual. Nós não temos as soluções. Eu não tenho a solução para alguém que vive nas ruas. Eu não tenho a solução para quem teve antepassados escravizados ou mortos. Eu não tenho soluções porque eu não vivenciei isso, mas eu posso ouvir com atenção essas pessoas e, me colocando a serviço, talvez surjam soluções criativas ou aberturas criativas para soluções possíveis. E esse é um processo que é preciso vivenciar para entender, ou melhor, para não entender, ou para não tentar entender.

Quando se vivencia isso no plano humano, num espaço de abertura conceitual, de não julgamento e de imersão na situação, acontece. Simplesmente acontece. É o que eu vivencio já há alguns anos, mas isso é apenas a minha opinião, como dizia o Benrie Glassman. As pessoas que vivenciaram esse processo talvez digam a mesma coisa. E é importante que as pessoas digam o que sentem, porque isso orienta a caminhada. É um processo muito vivo, é maravilhoso.

 Você acha que o retiro, voltado para questões relacionadas aos quilombos e à escravidão, pode contribuir para o letramento racial no Brasil? Considerando a importância de mudar os referenciais arraigados na sociedade em relação ao racismo, você acredita que as pessoas que participarem do retiro estarão abertas para ouvir, contemplar e se conscientizar sobre essas questões?

É uma excelente pergunta, porque me dá a oportunidade de abordar uma questão estrutural básica dos Zen Peacemakers e, consequentemente, dos Círculos Zen Peacemakers Brasil, que serão concebidos, gestados e nutridos nesse referencial. Não é uma proposta de ativismo. É um espaço porque, no fundo, acredito que o grande diferencial nesses 30 anos tem sido expandir o referencial de análise. Expliquei recentemente em um evento com Lama sobre a questão que hoje nos mobiliza muito: creio que a questão é ir além dos “ismos” particulares até chegar ao humanismo tão puro quanto possível.

Se olharmos para nossa linguagem, ela é condicionada a gênero, raça, cultura e estrutura social baseada no poder econômico e financeiro. Por isso, acredito que é algo bastante importante neste momento histórico: é como no Sutra, “vá além, vá ainda mais além”. Como chegar a um nível em que essas questões se tornam secundárias porque o que importa é que somos seres humanos?

A meditação, o silêncio, as práticas contemplativas, as partilhas, o propósito, tudo isso serve para desnudar e tornar mais leve essas estruturas conceituais que condicionam nossa visão a um clube, a um lado, a qualquer que ele seja. É uma tarefa de longo prazo, uma caminhada que já dura milênios. A proposta é que, através da experiência, se chegue a esse insight de que não existem lados. Os esforços, nossa disciplina, devem ser sempre em direção a não ter um lado. Como Bernie Glassman disse, ‘é muito fácil gostarmos de fundar clubes. Pode ser que seja outro clube, mas ainda é um clube.’

As vivências e metodologias dos retiros têm o objetivo de expandir a visão e, pelo menos, nos levar a frequentar outros clubes, outros lados, outras realidades, outras visões de mundo. Isso é uma experiência que precisa ser vivenciada e percebida. Sempre existe uma identidade substancial que coloca obstáculos à felicidade coletiva. Os passos para isso são instrumentados através de vivências e metodologias que expandem a visão e pelo menos nos levam a frequentar outros clubes, outros lados, outras realidades, outras visões de mundo.

Essa é a questão. São passos, uma caminhada que dura milênios, mas existem pessoas que querem entender e outras, como eu, que querem fazer algo a respeito. Agradeço por esta excelente pergunta.

Como você vê o potencial de desenvolvimento dos círculos Zen Peacemakers no Brasil e quais são os principais desafios e oportunidades nessa jornada?

Vejo um grande potencial para os círculos Zen Peacemakers no Brasil, dada a riqueza cultural e espiritual do país. No entanto, enfrentaremos desafios como a resistência à mudança e a falta de compreensão sobre essas práticas. As oportunidades incluem promover o diálogo intercultural e abordar questões sociais e ambientais urgentes, capacitando as comunidades locais a se tornarem agentes de mudança positiva.

 A cultura brasileira é conhecida por sua diversidade e acolhimento, mas também enfrenta desafios de discriminação. Como você vê o potencial dessa diversidade cultural no contexto do Zen Peacemakers?

Eu vejo um grande potencial na diversidade cultural brasileira, especialmente quando se trata dos Zen Peacemakers. Essa diversidade é uma fonte rica de experiências e perspectivas, que podem enriquecer muito os círculos Zen Peacemakers. Ao mesmo tempo, acredito que enfrentar a discriminação é crucial para criar um ambiente verdadeiramente inclusivo e acolhedor.

Você mencionou a proposta dos círculos Zen Peacemakers como um conector para acessar elementos básicos da ética relacional comunitária dos Zen Peacemakers no mundo. Como você pretende implementar essa proposta?

Também outra pergunta importante. Creio que tem um potencial muito grande pela diversidade cultural do Brasil e pelo espírito de acolhimento baseado nessa diversidade. Ao mesmo tempo, vejo que é importante dizer o que não será essa proposta. Os círculos Zen Peacemakers, com seus mais de seis mil membros, se propõem a ser como um conector, acessando elementos básicos dessa ética relacional comunitária no mundo, fazendo a ponte, principalmente para pessoas que não têm acesso por questões estruturais do idioma ou culturais.

Então, como uma segunda iniciativa, no segundo semestre, vamos propor uma formação básica, que é basicamente os dois primeiros módulos da formação de dois anos da Ordem Zen Peacemakers, que é o chamado para construção da paz. Qual é o seu chamado? Por que você está sentindo a atração por isso? Então, instrumentar isso com base em alguns conhecimentos e experiências. Em segundo lugar, a introdução e apresentação do Zen Peacemakers. Bom, para esse chamado, nós temos uma metodologia que é essa. E aí, explorar os princípios básicos.

É importante que fique claro que o círculo vai ser como uma entidade leitora, e deixar claro que não vai abrigar projetos, que não vai ser uma organização não governamental, não é um coletivo que vai proporcionar meios, ou apoiar qualquer pessoa ou instituição.

Instituições e pessoas podem se afiliar diretamente ao Zen Peacemakers International e contar com uma estrutura de apoio. Tem uma plataforma virtual onde é possível se conectar com outras pessoas no mundo inteiro e divulgar, receber apoio e apoiar. Então sobre qual é a nossa proposta e quem nós somos, creio que isso será necessário ser repetido muitas vezes.

Vou dar um exemplo simples e bem pragmático. Um praticante diz: ‘Eu tenho interesse em me vincular ao círculo Zen Peacemakers Brasil.’ Beleza, você será bem-vindo. Para quê? Para fazer o treinamento e para receber o nosso apoio metodológico. Talvez para aprender a facilitar um círculo de uma forma simples na sua comunidade sobre os três princípios, sobre as regras éticas, sobre os preceitos básicos, os cinco comprometimentos da interreligiosidade mundiais, e sobre como fazer a sua afiliação ao Zen Peacemakers International. Pronto, você conseguiu isso, siga seu caminho, você agora está afiliado. Divulgue lá suas atividades, proponha, escreva seus textos. É isso, essa autonomia com uma vinculação ética é algo que as pessoas às vezes têm dificuldade de entender e isso, como a Elen falou antes, eu acho que aí assim é um letramento.

Eu gosto do termo que o Capra usa, ‘alfabetização ética’. A parceria ética, ela não deveria implicar numa vinculação instrumental porque senão, no meu entender, na minha nada modesta opinião, existe o risco de considerar que a partir daí nós estamos subordinados a algo ou alguém, é uma visão muito paternalista, colonial. O nosso, o meu pensamento é colonizado e eu preciso de um enorme esforço para ir além disso. Mas isso é uma iniciativa minha. Essa é a minha tradição, essa é a minha instituição, essa é a minha proposta, é o meu projeto, mas o nosso referencial comum ético é esse ponto. Então, isso eu acredito que vai ser um desafio, também do ponto de vista da disciplina.

Na cultura que eu vivo, isso é muito claro. Aqui na Europa, nos meios virtuais, por exemplo, existe uma enorme disciplina, mesmo um enorme respeito aos direitos individuais, às imagens. Então, uma coisa simples assim, por exemplo, num retiro, ninguém tira foto, e as fotos que são publicadas são autorizadas. Na cultura brasileira, isso não é bem assim. Então, a nossa ideia é usar esse referencial porque não faz mal para ninguém. E eu sempre digo, é melhor pedir autorização quando não é necessário do que fazer e depois dizer: ‘Perdão, por que não?’ É uma educação ética baseada no espaço, não apenas material, mas no espaço também existencial das outras pessoas, das outras instituições. Isso é uma reeducação, eu acredito. Em contrapartida, nós temos, voltando à questão da Carol inicial, um potencial muito grande pela abertura afetiva das pessoas. Eu sinto que no Brasil nós sentimos mais as coisas, não precisa muita explicação para entender o sofrimento porque nós sofremos. Nós somos, como povo, colonizados. Veja como somos condicionados. Porque não usamos ” nós somos colonizadas, nós somos condicionadas”. A nossa linguagem é patriarcal, são clubes.

Faça algo no mundo com base nessa ética e divulgue isso, pertença. Desenvolva o pertencimento a essa comunidade. Vamos supor que você não queira colaborar com o Zen Peacemakers. Então atue como voluntário na sua cidade, na sua comunidade, faça algo a respeito uma hora por semana. É a não localização que proporciona a possibilidade de que isso realmente aconteça, a natureza não funciona por centralização, ela é distribuída, mas os princípios são os mesmos, a vida funciona de uma forma distribuída, mas os princípios são os mesmos.

Então primeiro seja um cidadão, um ser humano melhor. Faça algo com base em uma mente não condicionada e no conhecimento das situações baseadas na sua experiência, não em um livro que você leu, ou uma palestra que você ouviu. Conviva com as pessoas, vivencie minimamente a realidade delas e faça aquilo que a sua mente sugerir. Pergunte o que as pessoas e as situações precisam. Essa é a melhor forma de apoiar porque isso inspira outras pessoas, apoia a expansão do movimento que não tem centro e que não tem beneficiário direto.

Lembro quando eu comecei, em uma das primeiras reuniões uma pessoa me disse: ‘Ah, eu quero te ajudar nesse movimento.’ Falei: ‘Esqueça, eu não preciso de ajuda, não é a mim que você vai ajudar, porque eu também estou a serviço. Se você quer ajudar, faça algo a respeito, e eu posso ajudar na visibilidade, na partilha de metodologias e na conexão com mentes, atividades, iniciativas e metodologias afins, porque a ética é a mesma.’

Como já disse, é uma caminhada, um processo que inicia vendo se isso faz sentido para mim. Se faz, eu vou, no bom sentido, me apropriar, corporificar essa ética e aplicá-la, dar conhecimento, ouvir, compartilhar, é assim que vem acontecendo há, agora, quase 30 anos. É bem o que o Lama [Samten] fala sobre irmos tecendo e ampliando os tecidos bonitos.

O monge Koho fala muito das experiências pessoais, que é a partir da nossa própria prática que a gente tem para compartilhar com as pessoas. Se puder compartilhar um pouco dessas experiências que ilustram esse impacto do que está dentro do contexto Zen Peacemakers, para podermos concluir com uma mensagem final?

Desde o início pratiquei no Zen japonês. Desde o meu primeiro professor sempre houve essa visão da responsabilidade social e, a partir daí, os fatos foram se sucedendo até eu ter contato específico com o budismo socialmente engajado. Através da minha entrega a essa possibilidade de prática, aprendi que é importante ser extremamente disciplinado com liberdade. Por isso agora tenho investido muito na questão do básico.

Mantenha o básico, mas expresse esse básico de uma forma individual, por que? Me considero bastante tradicionalista na minha prática. Aprecio a prática japonesa, a estética, ao que muitas pessoas consideram um pouco árido, eu aprecio isso. Gosto porque preciso de disciplina e isso me permitiu ir pra ruas. No segundo dia já percebi que agora ‘eles’ se tornaram ‘nós’, então as pessoas sujas, mal-cheirosas, que não tinham ritmo, que dormiam de dia para dormir o mínimo à noite, agora ‘somos nós’, agora ‘eu sou assim’. Eu, que antes tinha uma vida organizada, hora para levantar, para comer, para ir ao serviço, etc, agora ‘são eles’ né? Agora ‘são eles’ aquelas pessoas perfumadas que não me cumprimentam, não ouvem que eu estou com fome,  com frio, isso foi um insight.

Se isso acontece comigo depois de dois dias, que direito tenho eu, e não vou nem dizer de culpabilizar, mas de julgar uma pessoa que está há anos nessa condição? Mas essa é a minha experiência individual, porque senti frio, senti fome, mas não senti meu mau-cheiro. Então por que que as pessoas se afastam? Estou agora mergulhado nessa realidade, sentindo isso em todos os níveis. inclusive na minha capacidade discriminativa. Não preciso mais ler sobre isso, eu jamais vou esquecer porque agora está no meu corpo.

Por que não preciso preparar o que eu vou falar ou não preciso buscar explicações? Porque eu tenho no meu corpo. Como que é estar em uma rua, em um lugar onde pessoas foram executadas, ir lá e ver, sentir e ouvir pessoas cujas famílias passaram por isso de todos os lados, de todos os clubes, todas as vozes ouvidas simbolicamente?

Então, as referências pessoais são potentes do ponto de vista experiencial, porque elas realmente promovem não uma reflexão teórica dos meus posicionamentos, dos meus pertencimentos a clubes, mas da experiência real de habitar um outro clube. E aí, ver que agora eu sou eles e eles passam a ser os outros.

O monge acredita que os círculos e a metodologia discutidos também poderiam ser aplicados para promover um diálogo ético e educacional em grupos que lidam com questões de minorias, como no caso da violência contra as mulheres, considerando a violência do dia a dia e casos extremos como o feminicídio?

Eu penso que sim. A metodologia é até certo ponto, neutra. O mais importante é a ética subjacente, porque, no meu entender, eu concordo contigo. Especialmente a violência de gênero é absurda. Na minha opinião, mais importante é abrir um espaço de escuta e revisitar os nossos conceitos, que podem, ainda que de uma forma muito sutil, estar nutrindo o próximo estágio da discriminação.

Eu te falo como homem heterossexual, quando ouço muitas vezes a afirmação que ‘os homens…’, eu penso, ‘mas não são os homens, é a mente patriarcal’. E eu conheço homens muito mais feministas do que muitas mulheres. E esse diálogo desarmado é essencial.

Em primeiro lugar, é coibir a violência explícita, porque isso é inaceitável, seja numa família, ou seja, como você disse, num consultório, nas ruas, ou num evento social, ou como agora eu vi recentemente, num elevador. A violência tem que ser coibida de uma forma clara.

Em segundo lugar, tem a violência estrutural, que é aquela mais baseada nos conceitos. E aí começa o grande desafio, porque o que vejo é que me coloco totalmente sob a condição de alguém não preparado para falar sobre isso ou não adequadamente preparado. Eu sinto que é muito fácil polarizar, alternar de um lado para outro, e é importante que sejam ouvidos, no meu entender, todos os lados, para que possamos ir além dos lados, e aí não existem mais lados. Nós queremos o quê? Uma sociedade com respeito às liberdades individuais, à diversidade e assim por diante.

Volto a dizer, inquestionável, primeiro nós temos que aborar a situação da violência dos atos violentos, mas a segunda discussão, que cabe logo depois, são as causas estruturais, mas o círculo pode servir para isso, para fornecer metodologias ou para instrumentalizar as pessoas com metodologias para que essas pessoas, instituições, façam o seu processo, e não haja um processo de delegação da responsabilidade para busca de soluções.

Quem pode buscar soluções é quem vivencia o problema, por melhor, por maior que seja a boa vontade de pessoas que pertençam ao Zen Peacemakers. A instrumentação decorre da experiência, então se organize, nós fornecemos a metodologia e podemos lhe auxiliar e abrir um espaço para isso. Como agora tem uma praticante da Alemanha, por exemplo, todo mês ela promove um council sobre ecodarma, como é que nós nos posicionamos perante essas questões com base nos ensinamentos do David Loy, tem um outro que é sobre Haikai, como é que a poesia pode nos ajudar a lidar com o sofrimento, com estresse, e assim nós vamos.

Eu acho que não tem valor o debate que quer  convencer alguém. No meu ponto de vista, são coisas diferentes, nós discutimos quando queremos chegar ao mesmo objetivo. E melhor do que discutir sobre essas questões, é jogar luz. Por isso, quando vamos começar um council ou uma experiência desse tipo de diálogo, a primeira coisa é ficar em silêncio. Vamos primeiro assentar as nossas crenças, as nossas certezas, e apenas ouvir sem preparar o que eu vou dizer logo depois. Isso é treinamento. Eu tenho dois ouvidos e uma boca. Primeiro eu ouço duas vezes mais do que eu falo e, antes de falar, silencio de novo. É treinamento, é uma prática de desaprendizagem.

Espero ter respondido a sua pergunta. São pautas, são agendas muito importantes e, pessoalmente, acredito primeiro que a violência explícita não deve ser aceita pela sociedade, que deve coibir e responsabilizar. Agora, na sequência, vamos discutir o que levou, quais são as estruturas que propiciaram as condições para que isso acontecesse. E aí é um longo processo. Mas o principal é entender qual o papel de cada pessoa e cada instituição nesse longo e complexo processo de superação dos nossos desafios sociais.

O retiro acontecerá de 01 a 05 de maio em Salvador, na Bahia.

Para saber mais e fazer sua inscrição, acesse zpbr.org.

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