Foto por Gabe Pierce (Unsplash)

Essa noite encontrei Buda

Relato de um praticante budista-nàgó sobre o sofrimento perpetuado pelo racismo e o seu caminho no Darma


Por
Edição: Caroline Souza

Felipe Rocha é um jovem de Salvador que, depois de cinco anos como monge beneditino, conectou-se profundamente com o Darma e descobriu-se budista. Daí em diante ele se aproximou tanto dos ensinamentos de Buda quanto da tradição nagô de seus ancestrais. Além disso, Felipe é psicanalista e estudioso de religião e filosofia. É autor e co-organizador do livro A mística do bem viver [Editora Senso]. Na sua imaginação é um tipo de “filósofo desescolarizado” no ermo urbano da cidade mais nagô do país.

Em meio à turbulência social que tem eclodido no mundo todo e nos chacoalhado, publicamos um relato deste querido praticante da nossa sanga. Que suas palavras e as incontáveis vozes que têm bradado ao redor do globo nos acordem para a realidade grotesca da discriminação racial e, sim, que elas nos escandalizem por completo.


Essa madrugada bell hooks me convidou para um encontro com o Buda. Na verdade, lá atrás bell hooks ensinou-me o caminho do Darma, um que tem a cor do negrume da noite, o gingado de um samba, a habilidade de um capoeira, o gosto do azeite de dendê quentinho do acarajé. Ela me contou que Seu Buda era radical, que era bem distante da projeção orientalista good vibe estilo nova era. Fiquei me perguntando se ele não se escandalizaria com as coisas que eu tinha para dizer, daí lembrei que o dono dos escândalos era ele, pois certa vez tinha dito a Shariputra que até os seres celestiais se escandalizariam se ele contasse o que sabia.

No caminho fiquei pensando: o que sei é que Buda não se escandalizará quando eu lhe contar sobre o racismo, talvez ele me diga que são os venenos do eu institucionalizados. Também não se escandalizaria se eu dissesse que meu povo tem padecido por ser preto na pandemia, talvez ele me diga que é resultado da ganância desmedida dos brâmanes da modernidade colonial que os faz cair na armadilha ardilosa do apego. Também não se escandalizaria se eu lhe contasse que querem intoxicar os corpos em massa do meu povo preto e pobre com a cloroquina, talvez ele me diga que é Mara disfarçado de salvação para que a gente não conheça a via libertadora da medicina de um Buda.

Daí pensei que é provável que não me dissesse nada, pois eu jamais poderia entender o que se passa na mente de um Buda. 

Quando cheguei, comecei a falar e, quando concluí, ele apenas disse: “Amigo, há sofrimento”. Por um momento fiquei frustrado, mas foi então que eu soube que deveria preservar os votos de bodisatva, continuar na prática do amor revolucionário de sua discípula bell e continuar segurando a adaga decolonial sem medo de ser um Malcolm X pós-conversão ao Islã (rsrs). 

Depois disso, ele achou graça quando eu falei que era nàgó, achou mais graça ainda quando disse que parecida era nossa cor. Ria me vendo dançar samba e ficou encantado com meu gingado de capoeira. Partilhei com ele um pedaço de acarajé, comida vegetariana de meu povo, daí ele me disse que o cheiro da sabedoria verdadeira era como o azeite de dendê borbulhando no tacho da baiana lá no tabuleiro da esquina.

Foi aí que eu acordei. E acordando fiquei sabendo que para quem está no caminho do Darma desistir de estar com seu povo na aflição não é uma opção.

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1 Comentário

  1. Devagar mas não perca tempo. Energia para mudar o que deve ser mudado, sem estar dominado pelas emoções perturbadoras, paciência para esperar o céu se mover, compaixão para entender qual é a situação e sabedoria para entender a natural perfeição de todas as coisas.

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