No último texto da série em homenagem ao Losar, Ano Novo tibetano, Lama Samten explica a sabedoria discriminativa e sabedoria da causalidade
Em homenagem ao Losar, período de celebração do Ano Novo tibetano, que iniciou no dia 5 de fevereiro e terminou no dia 19 de fevereiro, compartilhamos uma série de ensinamentos que Lama Padma Samten ofereceu à Sanga durante a virada do ano ocidental, no 108 Horas de Paz.
De acordo com a astrologia e o calendário lunar tibetanos, o ano de 2146 é o ano da Porca da Terra. Diferentes comunidades e centros budistas ao redor do mundo tradicionalmente celebram este período auspicioso por 15 dias. O Losar é um momento especial para agradecer, refazer os votos e amadurecer nossa aspiração de beneficiar todos os seres!
Neste trecho de hoje, o Lama explica a sabedoria discriminativa e a sabedoria da causalidade, ressaltando a importância do Darma enquanto expressão viva de compaixão e sabedoria da mente livre do Buda. Ele também nos convida ao desafio da prática em meio à vida cotidiana, com auto-organização e construção de redes sociais positivas.
Acho maravilhoso quando os guaranis dizem que existe um livro vivo. O budismo é exatamente isso. O Darma está escrito nas aparências. Existe, naturalmente, uma tradição que vem através dos livros e é perfeita. Mas a tradição budista não se sustenta por grandes livros. A forma mais profunda de olharmos essa tradição que vem através dos sutras, dos ensinamentos do Buda, é entender que são indicações diretas de Guru Yoga, ou seja, para entender o que o Buda está dizendo não precisamos utilizar sistemas lógicos. Somos desafiados a sentar e a parar no mesmo lugar a partir do qual o Buda vê. Mas esse lugar não é físico, ele é o lugar livre da mente.
Quando o Buda diz “isso é assim, veja isso, olhe aquilo”, ele está nos ajudando a chegar a esse lugar a partir do qual ele olha. Ao entendermos que o caminho é ir em direção ao lugar de onde os mestres olharam, de onde o Buda olhou, estamos adotando Guru Yoga como a essência da nossa prática.
Naturalmente, quando não entendemos isso, podemos seguir por recomendações. O próprio Buda disse: “Faça o bem, não faça o mal, dirija sua mente”. No mínimo, é possível compreender intelectualmente este aspecto: existe uma natureza livre que é totalmente atuante, constrói as aparências ilusórias da realidade, e especialmente produz essa sabedoria que nos oferece um direcionamento.
Olhando o que é confuso e artificial, o que vai produzir alegrias ou sofrimentos ilusórios, podemos achar que isso não é uma grande ideia e deveríamos seguir de outro modo. Então, a sabedoria discriminativa, representada pelo Buda Amitaba na cor vermelha, não é uma sabedoria aleatória na qual vale tudo. Ela é uma sabedoria que propicia o que Dilgo Khyentse Rinpoche chamou de grande compaixão. Compaixão é aquilo que nos move quando vemos a dor do outro – ele disse.
É como aconteceu com uma cachorrinha que chegou machucada aqui na comunidade. As crianças manifestaram compaixão, correram em volta, ajudaram, cuidaram, isso é compaixão. Mas existe também a grande compaixão, que seria as crianças olharem a cachorrinha e entenderem assim: não tem solução; todos os seres nascem, vivem, morrem e têm um nível de ilusão nessa realidade; e há um aspecto profundo neles próprios que não conseguem ver. Essa é a grande compaixão que vem de reconhecermos a ignorância, ou seja avydia, como a essência dos problemas.
Mas a grande compaixão não é algo intelectual. Isso é um aspecto espantoso, porque não estamos acostumados a entender que o movimento da energia é a própria mente. Acreditamos que a mente é o que pensa, mas ela tem muitas ações. A mente manifesta tudo: a luz do sol, a luz da lua, a compaixão, a sabedoria discriminativa.
Por exemplo, olhamos a foto de um filho e o nosso olho brilha. Só que o filho não está ali, só tem papel e tôner. Mas estamos vendo mais do que existe ali, mais do que a impressão visual. A luz do sol produz o significado e a nitidez daquilo que estamos vendo. Não nos relacionamos com papel e tôner, mas com a imagem do filho, as emoções e os diferentes aspectos.
E a luz da lua é a que ilumina os nossos sonhos, é a luz básica da nossa mente luminosa. A luz da lua significa a luz da natureza primordial, incessantemente presente. E a luz do sol está ligada aos objetos nos quais criamos significados. Nós temos uma luz incessantemente presente.
A luz da lua e a luz do sol são inseparáveis. Assim, no pôr do sol, a lua começa a surgir. A luminosidade básica da mente surge porque é natural, pertence ao aspecto secreto, não é dependente dos condicionamentos e das aparências.
Imaginem, num clássico de futebol, a pessoa sentindo compaixão pela torcida do outro time. Isso não pertence ao jogo. A compaixão é subversiva, porque normalmente queremos a destruição do outro. Mas nesse lugar da mente a pessoa não está numa posição adversária; ela olha aquilo tudo como um cenário que se constrói; ela olha desde um lugar livre.
Essa posição diz respeito a Guru Yoga e aos mestres todos. Estudamos os sutras, os textos, e nos aproximamos desse lugar a partir do qual os mestres falaram. Sabemos que isso está acontecendo quando começamos a compreender o que eles estão dizendo. Quando não compreendemos, não estamos conseguindo nos colocar no lugar de onde eles estão falando.
Logo, esse lugar muito amplo – o lugar secreto que é semelhante ao espaço – não é aleatório e sem direção. É do encontro desse aspecto livre com o samsara que brota lucidez, o Darma, todos os ensinamentos. Assim também brotam os ensinamentos dos guaranis, a sabedoria xamânica e todas as tradições diretas.
Existem as tradições que se sustentam por textos, são um pouco mais complicadas. É como se alguém tivesse uma visão, mas não transmitisse o lugar de onde ele teve a visão, o lugar de onde ele vê. Há uma transmissão por palavras, que vão se distorcendo um pouco e podem perder o contexto, porque na época daquela transmissão as pessoas viam o mundo de um certo jeito, então usavam aquilo. Mas agora o mundo tem outras aparências, e não se consegue usar bem aquela linguagem.
Todos os mestres leem o Darma desse modo. Guru Yoga é a base para aquilo que chamamos de bloco um, a possibilidade de conversarmos com as outras tradições religiosas. De algum modo, todas vão beber nesse lugar amplo, que é a mente livre olhando as aparências de um certo modo e, a partir desse olhar, gerando a sabedoria correspondente para se expressar em um tempo, dentro de uma cultura, de um certo modo. No bloco um, entendemos que todas as tradições convergem.
Alguns estudiosos dizem que isto é a visão monista do budismo, que significaria a visão de deus único, princípio único, gerador das coisas todas. Essa também é uma explicação pertencente ao barco na travessia. Tomamos o Darma e os ensinamentos como um barco na travessia do caminho espiritual. Uma vez que nos liberamos, atingimos visão e sabedoria, não precisamos mais de um conjunto de reflexões, estruturas acadêmicas, religiosas, filosóficas ou psicológicas. Isso foi utilizado para sairmos do lugar onde estávamos, dissolvermos as ilusões e chegarmos ao outro lado.
Se, quando chegarmos ao outro lado, ainda estivermos presos àquele conjunto de ideias, estaremos presos ao arcabouço. Quando atravessamos o rio da ignorância de avydia por meio dos ensinamentos, sejam eles quais forem, chegamos a um lugar não dual, ou seja, não há um observador olhando para as coisas, nem uma mente com uma sensação de um observador e objetos correspondentes. Esse é o lugar a partir do qual observador e seus objetos surgem e se dissolvem, surgem de outro jeito e se dissolvem, e assim por diante.
É importante também compreender como isso se reflete sobre o bloco zero. Ou seja, no meio da nossa ilusão comum, sem compreender esses aspectos profundos, o que deveríamos promover e o que deveríamos evitar? Isso é a sabedoria da causalidade, o Buda Amogasidi, da cor verde. Ainda que o mundo seja ilusório, luminoso, transitório, quando eu faço ações de um modo, porque estou preso e operando de certo modo, haverá decorrências daquelas ações. Se eu fizer ações de outro modo, as decorrências serão outras. Portanto, ainda que não seja absoluta, a causalidade existe.
Os seres que necessitam do caminho espiritual, que andam pelo caminho espiritual, estão presos, sentem-se vivos dentro do mundo. Eles são seres que precisam cuidar delicadamente das suas ações, porque estão suscetíveis aos mundos que constroem. Constroem mundos e significados e, se não cuidarem disso, na medida em que suas ações decorrem, podem produzir eventos de sofrimento ilusório para eles mesmos e para os outros. Assim brota a noção de moralidade. Cuidamos com atenção das ações porque elas produzem problemas, isso é inevitável.
Eventualmente, passam-se vinte anos, olhamos para aquilo e pensamos: “Eu não precisava ter me preocupado tanto, aquilo não era tão horrível, isso não era um problema…”. Mas, na época em que estávamos vivendo aquilo, a sensação era muito sólida. Podemos dizer: “Aquilo veio numa boa hora porque, enfim, fui demitido, fui desgraçado, fiquei miserável, mas me permitiu surgir de outro jeito. Se eu tivesse seguido ali, isso sim seria meu fim! Então, fui atingido por alguma coisa, mas aquilo na verdade foi muito bom”. Nós temos a capacidade de recriar o nosso mundo, de recriar as nossas vidas.
Estamos vivendo um tempo de crises. Existe um adoecimento social, uma fonte de sofrimento coletivo estabelecida. Quando as coisas começam a se delinear, entendemos que há uma ação individual — que são as nossa vidas —, mas há fenômenos sociais, coletivas, que se refletem diretamente sobre nós. Esses fenômenos podem ser positivos ou ameaçadores, problemáticos.
Eventualmente, esses fenômenos sociais são sedutores, muito elevados, ocorreram em diferentes momentos e, atualmente, chamamos de fascismo. É um tipo de sedução coletiva que nos leva a fazer coisas negativas, estreitas, duras e agressivas. Mas, quando surgem, parecem muito favoráveis, parece que aquele é o lugar certo. Mas não é que ali tenha depressão ou raiva, especificamente. Aquilo tem uma sensação de vitória, de grupo, e isso produz também dificuldades. Esse enigma é algo que precisaremos decifrar.
Quando surge um nível de desordem, o budismo tem a capacidade de reflexão, de olhar os fenômenos e se mover por dentro deles. De certo modo, se manifestarmos compaixão, se tivermos interesse genuíno pelos seres, gostaríamos de operar não apenas no nível individual, mas também em um nível mais amplo, que inclua o meio ambiente, a sustentabilidade, as questões sociais.
Isso para nós é um desafio, porque nós quase não conseguimos olhar antes de copiar. Vamos copiando ao olhar a própria natureza, olhamos o funcionamento de rede, pois a natureza funciona como uma rede. Nós vemos uma multiplicidade de inteligências operando incessantemente.
Quando operamos em rede enquanto uma instituição, ela é mais frágil do que se operarmos em rede verdadeira – isso significa que os diferentes pontos que estão conectados nessa rede trocam informação, são capazes de compartilhar visões, mas têm autonomia de gerência e de risco. E, na medida em que representam uma visão de todos os outros pontos de rede, eles se tornam merecedores do apoio do restante da rede. Ainda que cada ponto da rede tenha gestão própria, projetos próprios e movimentos próprios, todos os outros se sentem representados e apoiam aqui e ali.
Então, a rede tem muito poder. Nós podemos nos auto-organizar e atravessar as crises sem a postura de adversário. Simplesmente, começamos a construir de outro modo, que é o aspecto luminoso da realidade. Todos nós podemos, isso está disponível. Então, a rede fortalece cada ponto. Se alguns pontos entrarem em dificuldades e desaparecerem, a rede não desaparece, ela segue. A rede segue se reconstruindo constantemente.
Trecho da tradicional palestra de abertura do ano, oferecida por Lama Padma Samten, que está disponível aqui.
Complemente sua leitura com os outros textos desta série de ensinamentos do Lama Padma Samten clicando aqui.
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