“Ia subir em uma moto e viajar pelo mundo, quando descobri que seria mãe”

Relatos sobre maternidade, impermanência, diferentes identidades e a prática do darma


Por
Revisão: Cristiane Schardosim Martins
Edição: Carol Franchi

A vida, muitas vezes, tira o chão e todo o perfeito planejamento e (falso) controle sobre as coisas. Aproveitamos a data de hoje, 8 de março – Dia Internacional da Mulher, para trazer esse tocante relato da praticante Sayane Pagnoncelli Martins, que expõe questões delicadas da maternidade, relação com a família e vida em casal, tabus pouco falados, e mostra o exercício de lucidez através da prática do darma no dia a dia.


Uma das perguntas mais intrigantes da minha vida toda é “quem é você?” Depois que me tornei aluna do Lama Padma Samten, minha relação com essa pergunta melhorou, afinal, entendi um pouco sobre as infinitas identidades que sustentamos, mas ainda assim tinha dificuldade em responder. Me tornei mãe aos 42 anos. De certa forma, ficou melhor responder à pergunta que tanto me intrigava porque não conheço identidade mais presente que essa, de mãe. E virei mãe do Ian!

Meu filho agora está com 3 anos e 8 meses e, esses dias, me disse “mamãe, hoje eu sou um tubarão e você é uma “tubaroa”, num outro dia “mamãe, agora eu sou um bebê dino e você é uma mamãe dina”. Essas falas me remeteram direto ao ensinamento sobre as identidades e, de repente, percebi que a de mãe se desdobra além do que imaginei e isso me preocupou (rsrs).

Em meio a tudo isso, costumo ser administradora de empresas. Sempre gostei da gestão e do movimento das empresas. Hoje empreendo com meu marido e estamos focados em construir um mundo melhor através de construções que tragam qualidade de vida para os usuários, além de sustentabilidade para todo o empreendimento e para os envolvidos.

Estudo a mente e tudo o que envolve o mundo das emoções desde que lembro da minha vida, gosto de viajar, do verão e de leitura. Me conectei com o budismo em 2009, quando assisti uma palestra do Lama Padma Samten. Pensei que ele estivesse falando só comigo num auditório cheio de gente, e toda a vida começou a ter mais sentido.

Voltando à identidade de mãe, eu não nasci e nem cresci sonhando com ela, inclusive, nunca fui muito fã de crianças. Casei sem pensar em filhos, mas a vida foi passando, eu e meu marido nos casamos mais velhos e, de repente, a vida estava meio igual.

Junto com isso, via crescer as gêmeas de uma prima-irmã. Embora eu tenha me mudado de Curitiba um pouco antes delas completarem um ano, essa relação se manteve acesa e era muito prazeroso vê-las se desenvolver e criar uma relação com elas.

Sentia que ainda precisava trabalhar a minha mente, porque era difícil incluir um bebê nela, até que engravidei sem esperar ou planejar. Foi um susto para mim, fiquei confusa, não sabia se ria ou se chorava, mas perdi o bebê com 13 semanas. Tive uma pequena amostra do poder da palavra “relação” e o que se constrói com um(a) filho(a). Que perda! Como eu olhei e analisei aquele vazio de diferentes formas… e rezei!

 Não foi instantaneamente que comecei a aceitar a ideia de ser mãe mas, me abri, aceitei que poderia deixar fluir, que não me cabia fazer julgamentos de como é a vida com filhos ou sem eles!

Para a Medicina, depois de uma perda gestacional, em seis meses eu poderia engravidar novamente, mas tinha se passado mais de um ano e não aconteceu. Então eu e meu marido decidimos comprar uma moto e seguir a vida livremente como sempre fizemos, sem esperar que nada fosse acontecer.

Na volta do retiro do Lama Alan Wallace, em outubro de 2018, tínhamos planejado nos organizar para uma longa viagem de moto, mas um bebê invadiu a minha mente durante uma meditação no retiro. Depois de uns cálculos, concluí que poderia estar grávida. Consegui alguém que me trouxesse exames de farmácia e confirmei minha suspeita. Quando cheguei do retiro e fui ao médico, estava com quase dois meses. Eu tinha 41 anos. Fiz 42 dez dias depois que descobri a gravidez.

Embora o Ian tenha recebido a iniciação do retiro junto comigo, rezei durante toda a minha gravidez, porque a medicina (que chegou até mim) não confiava muito na possibilidade de uma gravidez saudável para uma mulher de 42 anos. As preces deram certo, pois tudo fluiu muito bem! Inclusive a posição de meditação (sentada no chão) era uma das melhores para acomodar o barrigão, era só demorado para me posicionar e depois para sair dela (rsrs).

Meu parto também foi ótimo, queria que fosse normal pela relação com um filho. Eu simplesmente não podia pegar uma criança nos braços e dizer que era minha, precisava de um caminho, precisava atravessar um portal e que sorte a minha: tive um parto natural cercada de cuidados, com meu marido acompanhando tudo, inclusive segurando a minha mão nas contrações e apoiando todo meu corpo, quando peguei o Ian no colo pela primeira vez!

Tenho lembranças de muitas pessoas falando em puerpério, que é o período após o parto até que o organismo físico e mental da mulher volte às condições normais, enquanto estava grávida, mas nunca dei muita atenção. Minha médica me deu muitas estratégias para os primeiros meses, que achei um exagero, até que eu cheguei lá!

A amamentação foi o pior desafio da minha vida até hoje. Penso que a deidade Tara, Buda na forma feminina, tem que mostrar os seios mesmo, porque só as mães sabem o quanto eles se ferem para nutrir o bebê.

Durante esse processo, tive a sensação de que perdia tudo, inclusive a mim mesma. No começo, ainda conseguia fazer uma contemplação ou outra durante os períodos da amamentação, como minha sábia e amada tutora¹ me sugeriu. Com o tempo, o Ian foi crescendo, começou a interagir e me senti sendo arrastada cada vez mais. Perdi até o darma. Eu cantava mantras para ele, mas sentia como se aquilo estivesse realmente longe de mim.

Eu sabia que nada ficava no lugar, só não sabia que esse nada incluía a minha mente. Eu não dormia, nem quando o bebê dormia. Minha família estava longe, haviam as oscilações hormonais e também a demanda incrível de atividades que um bebê gera. Lembro de uma consulta de revisão com minha médica que disse “força, o puerpério não é coisa de Deus”. Essa era a mesma médica que tinha me dado várias estratégias para passar esse período, que até achei exagero, e que é muito espiritualizada e crente em Deus.

Então, veio a notícia de que o Lama Samten viria para Belo Horizonte. Que alegria seria encontrá-lo e levar o Ian para conhecê-lo. Eu ainda tinha receio de sair com o bebê, mas a ideia de ver o Lama presencialmente me trazia alegria, porque sua presença afasta qualquer confusão! Mas veio a pandemia e o evento foi cancelado. O Ian tinha 7 meses.

A pandemia não mudou muito minha vida, pois moro longe da minha família, então já vivia um pouco só e, com um bebê, sobrava pouco tempo para ver o mundo lá fora. Quando o Ian fez um ano e meio, comecei a perceber que ele estranhava ver gente e tinha medo de pessoas desconhecidas. Por isso, assim que as escolinhas voltaram, fizemos sua matrícula e foi ótimo. Desde o primeiro dia ele adorou estar entre as crianças, como adora até hoje.

Acredito que o darma é um fio condutor para enfrentar melhor qualquer desafio, inclusive o de um puerpério, mas é difícil ter consciência dele antes de realmente vivê-lo. Eu sinto como se tivesse sido pega de surpresa, mesmo tendo sido avisada. Acho que para quem tem um segundo filho pode ser melhor, porque já sabe o que vai enfrentar, mas eu tinha 42 anos e uma vida estável até chegar ali. Hoje vejo que os ensinamentos mais simples teriam trazido mais leveza ao processo. Mas meu irmão vajra mais próximo, meu marido, estava tão inundado no processo quanto eu, então talvez nem ele lembrasse dos ensinamentos mais simples.

Hoje percebo que tenho apego pela prática formal e ter deixado de realizá-la, por conta dos afazeres da maternidade, me trouxe a sensação de ter perdido o darma. Minha prática sempre foi mais na almofada do que em meio à vida cotidiana e a inversão disso, de repente, me fez pensar que eu não fazia mais prática, quando, na verdade, estou caminhando na vida ao lado do “meu melhor mestre”, meu filho e toda a bagagem que ele traz.

Sinto algumas culpas como mãe, muito por ser mãe de primeira viagem. Confiei mais em médicos do que na minha própria intuição. Às vezes, não tenho a paciência e a clareza que gostaria no trato com o Ian, mas não as carrego comigo.

Carrego mais culpas em relação a mim mesma, ao meu descanso e minha mente, ao papel de filha, amiga e principalmente ao papel de esposa. É um milagre eu e o Roberto estarmos casados, nossa relação em algum momento zerou. Minha expectativa era que um filho nos unisse, mas o dia a dia é muito cansativo, os conflitos são inevitáveis e isso afeta muito a relação. Incrivelmente, foi no meio desse caos que descobri o poder do bom companheiro. Em nenhum momento, o Roberto soltou minha mão. Acho que ele percebia toda a instabilidade da minha mente e, já que não podia fazer nada quanto a isso, se mantinha ali presente, acompanhando em silêncio, e isso me ajudou muito, porque, com o passar do tempo, fui percebendo que algo permanecia, que ele estava ali tentando ajudar, mas nem eu sabia como me ajudar. Não conseguia me organizar, como se minha cabeça não funcionasse. Até hoje devo respostas a mulheres que me procuraram para saber sobre gravidez, parto e puerpério aos 42 anos. Nossa retomada foi o resgate de todo o darma que estudamos juntos, que foi nosso ponto de partida e nossa sustentação sempre.

Dos ensinamentos a que tive acesso até hoje, o que mais me marcou nesse processo foi o da impermanência e a grandeza dos bons momentos presentes que a gente pode viver. Claro que eu já tinha passado por algumas fortes impermanências na vida, por exemplo, quando meu pai sofreu um AVC, mas nem se compara a eu tê-la vivenciado no dia a dia, comigo mesma, por tanto tempo. O pior é que na vivência do dia a dia, eu mesma me esquecia dela e esperava que as coisas tivessem alguma estabilidade.

Às vezes, penso que senti muito todo esse processo porque sempre trabalhei com planejamento e organização e as coisas funcionavam e, de repente, não tinha chão, não tinha base de planejamento. Penso também que escolhi ter um filho. Antigamente as mulheres não tinham muitas escolhas, casavam, tinham filhos, cuidavam da família. Não havia muitas questões ou dúvidas. Agora, também vejo um grande apego pela identidade de Sayane antes de ser mãe e das limitações impostas pelo filho. Minha mãe sempre diz que não sentiu tanto quanto eu, ou que sentia mais o cansaço físico e não tanto esse desespero interno. Mas, ao mesmo tempo, quando converso com mães de primeira viagem da minha idade, percebo que não sou a única que se assustou com o puerpério e a maternidade. Inclusive no livro O Poder das Dakinis, uma querida mestra que acompanho há um tempo (e ainda vou conhecê-la), diz que teve dificuldades no pós-parto e em todas as tarefas das crianças. Isso me ajuda a perceber que é assim e por isso a gente vai lidando com o que aparece ao invés de ter o planejamento todo pronto.

Penso que a vida de muitas mães de primeira viagem melhoraria se houvesse mais espaço de fala e acolhimento. Mas parece vergonhoso se expor como estou fazendo aqui. Lembro de pelo menos 4 histórias muito parecidas com a minha, que talvez trouxesse um acalento para o coração de outras. Existem espaços específicos para as mães, mas esses espaços não estão no dia a dia comum das pessoas e é ali que deveriam estar. Lembro de falas como “você precisa de uma comunidade para cuidar de uma criança”, na qual eu incluiria “da criança e da mãe”, e penso que na nossa sociedade a comunidade está muito ocupada economicamente para cuidar das mães. Talvez, em outros tempos, as questões psicológicas das mães fossem cuidadas no contato com a família.

Quando voltei a colocar as ideias no lugar, toda manhã pensava “o que vou fazer por uma mãe hoje”. Estou assim até agora. Ajudar mães me traz paz e alegria!

No ano passado eu e o Roberto fizemos 10 anos de casados. Quando casamos fomos abençoados pelo Lama Santem no encerramento de um Retiro de Iluminação do Buda. A bênção foi boa porque temos atravessado tempestades. Então pensei que poderíamos receber essa benção novamente no mesmo retiro em 2022 e, dessa vez, com nosso filho.

A princípio, pareceu uma ideia maluca, mas fui conversando com a organização do evento, com possíveis pessoas que pudessem ajudar com o Ian, e decidimos ir. Nossa motivação em levar o Ian conosco era a de imprimir na memória dele o ambiente do darma, a presença do Lama, o silêncio do templo, a comunidade, a energia do lugar, mesmo que isso não fosse consciente para ele.

O Ian adorou quando chegamos. O Cebb Caminho do Meio virou a floresta dos dinossauros e andar com lanternas à noite era uma aventura sem igual. Ele foi muito bem recebido por todos. A sanga é incrível né?! Ele estava encantado com o som da concha, com os animais, era tudo novidade. Mas, aos poucos, ele foi se cansando, queria a escola, os amigos. Veio a chuva, o que exigia alguns cuidados extras e o dia a dia com ele começou a ficar difícil para mim também. Decidimos voltar um dia antes do final do retiro, quando ocorreria a tão sonhada benção. Me entristeci por isso mas, ao mesmo tempo, me alegrava em ver que o Ian estava feliz em vir pra casa. Contudo, conseguimos uma boa prosa com o Lama que nos falou da vida com os filhos, da vida com o mundo e com nós mesmos. E só por aqueles minutinhos, tudo valeu. Fazia muito tempo que não víamos o Lama e estar com ele foi realmente um presente.

Para mim, o maior presente da maternidade é a cura de nós mesmas, da nossa criança. Sempre ouvia o Lama comentar que a gente ensina pelas costas e, de repente, a gente vê um pequeno ser fazendo o mesmo gesto que a gente faz sem pensar (rsrs). É assustador, a princípio, mas também uma grande oportunidade de evoluir, se a gente tiver tempo de prestar atenção aos detalhes e mudar. Ao mesmo tempo, descobrir um mundo novo pelos olhos de uma criança é mágico. O Ian começou a se expressar quando eu já tinha 43 anos e o mundo todo ganhou um novo sentido.

São muitas transformações em tão pouco tempo. Eu nunca consegui terminar de responder uma questão sem que várias outras aparecessem antes. Quando o Ian fez dois anos, eu tinha novas questões, trazia toda aquela impermanência do período de bebê no meu coração e lidava com um ser de vontades! Eu não queria repetir alguns padrões com os quais fui criada. Então, uma pessoa do CEBB de Itabira me indicou um estudo do CEBB Caminho do Meio com a educadora Tatiana Rubin Klein, aluna do Lama. Iniciei o estudo e tive toda a maternidade e a vida da minha família salva.

A Tatiana conseguiu colocar a maternidade na linguagem que eu entendo, que faz sentido para mim. Fiz alguns atendimentos com ela e me acalmei em relação às transformações do Ian, as minhas e todas as novas demandas na família. Ela me ajudou a olhar a mulher, a família, tudo na benção da linguagem que o darma é! 

Eu acompanhava muito conteúdo de maternidade, fazia terapia e não conseguia me convencer. O estudo com a Tati transformou tudo em caminho. Ela trabalha com parentalidade, atende famílias e que bom que a minha pode encontrá-la.

Hoje sigo mais consciente de que a vida com uma criança flutua muito e que, por mais perfeita que eu seja, não vou conseguir colocar tudo no lugar. Só não dá para ter a sensação de perder o darma novamente.

¹Alunos/as do Lama Padma Samten que orientam praticantes nos estudos do darma.
Créditos de foto de capa: Carol Franchi
Apoiadores

2 Comentários

  1. Hiolanda disse:

    Que presente!!!! Obrigada por partilhar de sua experiência e vivência!

  2. Moisés disse:

    Estou no meu primeiro ano de namoro e pra mim é muito importante ter essa oportunidade para ler relatos assim. Obrigado pelo trabalho.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *