Neste texto de Joan Halifax, que participa do CEBB Talks com Lama Samten, ela nos fala sobre quais princípios devem nos mover para agir no mundo de forma útil
A Bodisatva publica trecho exclusivo do livro À Beira do Abismo – Descobrindo a Liberdade onde o Medo e a Coragem se Encontram, da Roshi Joan Halifax, mestra zen, antropóloga e diretora do Upaya Zen Center (EUA), que participa nesta terça-feira (20/10), às 19h, do CEBB Talks, com o Lama Padma Samten. O tema da conversa “À beira do abismo: transformando o sofrimento moral” tem uma profunda conexão com este capítulo do livro Standing at the Edge: Finding Freedom Where Fear and Courage Meet, em processo de tradução ao português por nossa querida Jeanne Pilli, cedido gentilmente pela editora Lúcida Letra.
Joan Halifax é uma das pioneiras no movimento do budismo engajado e faz parte do conselho diretor do Zen Peacemakers e do Instituto Mind and Life. Sua ação inclui lutas por direitos civis e ambientais e atividades pioneiras no ramo dos cuidados médicos paliativos.
Ela narra que, ao longo dos anos, testemunhou a indignação moral se manifestando de formas saudáveis e não saudáveis nos mundos da política, ativismo, jornalismo, medicina e na sua própria experiência. “Investigando um pouco mais profundamente, percebi que a indignação moral, assim como o altruísmo patológico, às vezes reflete uma necessidade não reconhecida da pessoa de ser percebida como uma pessoa ‘boa’, e podemos acreditar que nossa postura moral superior nos faz parecer mais confiáveis e honrados aos olhos dos outros. Nossa indignação justificada pode dar muita satisfação ao ego e nos aliviar da culpa pela nossa própria culpabilidade: ‘Nós estamos certos, os outros estão errados; nós somos moralmente superiores, os outros são moralmente corruptos’”, comenta.
Contando suas próprias histórias, ela nos faz refletir sobre a maneira como podemos agir com indignação moral diante de violações morais, saindo do papel de simples observadores e deixando de nos proteger por meio da negação. Ela chama esta atitude de indignação moral baseada em princípios, que envolve também outras qualidades, designadas por ela de “estados limite”: altruísmo, empatia, integridade e respeito. “Aprendi que a indignação moral pode ter consequências benéficas ou prejudiciais não apenas para nós mesmos, mas também para nossos relacionamentos e até para a nossa sociedade. O discernimento, a percepção de nossas intenções e a capacidade de regular as emoções farão com que a indignação moral seja útil ou não”, nos ensina Halifax.
Numa noite de verão nos anos sessenta, saí do prédio onde morava na cidade de Nova York e vi a cena surpreendente de um homem gritando com uma mulher. De repente, o homem arrancou uma antena de rádio do carro ao lado dele e começou a chicotear a mulher com a antena. Sem pensar, coloquei meu corpo entre eles e gritei para ele parar. Moralmente indignada, nem pensei na minha própria segurança. A cena de um homem abusando de uma mulher me incendiou e eu reagi.
A indignação moral é definida como uma resposta de raiva e aversão em relação a uma violação moral percebida. Naquela cena de rua, eu não estava apenas testemunhando uma violência física, mas também uma violência de gênero. Cinquenta anos mais tarde, a sensação no meu corpo exposto àquela violência ainda está presente. Foi um choque de indignação e repulsa e nada poderia ter me impedido de me colocar entre os dois.
Enquanto estava ali entre os dois, com o coração batendo forte, a mulher rapidamente me agradeceu e fugiu da cena. O homem jogou a antena na rua, rosnou para mim e se afastou. Em retrospecto, tenho certeza de que não estava agindo por motivações egoicas quando tentei impedir aquela violência; não estava querendo obter a aprovação dos outros nem aumentar minha autoestima. Não tive tempo para um pensamento autocentrado – eu simplesmente não consegui fugir daquela cena horrível sem intervir. O que motivou minha ação foi uma rápida e profunda onda de indignação moral combinada com compaixão.
Ao longo dos anos, testemunhei a indignação moral se manifestando de formas saudáveis e não saudáveis nos mundos da política, ativismo, jornalismo, medicina e na minha própria experiência. Investigando um pouco mais profundamente, percebi que a indignação moral, assim como o altruísmo patológico, às vezes reflete uma necessidade não reconhecida da pessoa de ser percebida como uma pessoa “boa”, e podemos acreditar que nossa postura moral superior nos faz parecer mais confiáveis e honrados aos olhos dos outros. Nossa indignação justificada pode dar muita satisfação ao ego e nos aliviar da culpa pela nossa própria culpabilidade: “Nós estamos certos, os outros estão errados; nós somos moralmente superiores, os outros são moralmente corruptos.”
A crítica social Rebecca Solnit desmascara ainda mais a dimensão egoísta da indignação moral em seu ensaio publicado no The Guardian: “Poderíamos ser heróis: uma carta no ano das eleições”. Ela observa que alguns de extrema esquerda frequentemente se envolvem em “amargura recreativa”, transformando a indignação moral em um esporte competitivo, tornando o perfeito o inimigo do bem, encontrando falhas nos avanços, nas melhorias e até mesmo em vitórias diretas. Solnit observa que essa postura não promove nenhuma causa e, na verdade, mina a construção de alianças. Por fim, me pergunto o quanto a amargura recreativa contribuiu para o resultado das eleições nos EUA em 2016, ampliando a divisão entre liberais e extrema esquerda.
A amargura recreativa e outras formas de indignação moral podem ser contagiosas, viciantes e infundadas e podem nos fazer adoecer. Uma pequena dose pode nos levar adiante. Em excesso nos leva à exaustão e é isso que nossos adversários querem. Quando estamos com raiva e emocionalmente superestimulados, começamos a perder o equilíbrio e a capacidade de ver as coisas com clareza e ficamos propensos a cair no abismo do sofrimento moral.
No entanto, muitos de nós sentimos estar violando nossa própria integridade se não responsabilizarmos os outros pelos danos que causam. Diante de violações morais não podemos ser apenas observadores nem nos proteger através da negação. Para preservar nossa integridade precisamos expor a verdade ao poder. Isso é o que chamo de indignação moral baseada em princípios.
A indignação moral baseada em princípios envolve elementos de outros Estados Limite: altruísmo, empatia, integridade e respeito. Em 1981, o neurocientista Francisco Varela, juntamente com Harry Woolf, diretor do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, e eu visitamos um laboratório que estudava primatas. O laboratório, localizado em um porão, abrigava dezenas de pequenas gaiolas com macacos Rhesus. Harry e eu nos aproximamos de uma das gaiolas e vimos que o topo do crânio do macaco havia sido serrado e seu cérebro estava exposto. Os eletrodos estavam fazendo contato direto com o cérebro do macaquinho. O pobre macaco estava algemado e imobilizado, mas seus olhos diziam tudo – estavam cheios de dor e de horror. Harry desmoronou ao meu lado e se ajoelhou no chão em frente ao macaco. Ele parecia estar pedindo perdão. Bastante abalada, levantei-me e olhei nos olhos do macaco. Tomei o que senti ser sua dor e enviei compaixão àquele pequeno ser.
Mais tarde, disse a Francisco que achava aquele tipo de pesquisa absolutamente imoral. Os animais eram frequentemente sacrificados durante as pesquisas em neurociência. Diante daquele macaco, experienciei mais do que uma leve indignação moral. Algo se abriu em mim. Decidi usar minha raiva e aversão como uma maneira de aprofundar meu compromisso de acabar com o sofrimento. Resolvi nunca deixar as experiências com animais fora do meu radar. Quanto a Francisco, não demorou muito para que ele desistisse da pesquisa com animais também. Eu não sei o que Harry fez; perdi contato com ele logo depois. Mas não perdi aquele macaco de vista. Ele mora dentro de mim até hoje, quase quarenta anos depois.
Senti profunda compaixão por aquele macaco. E uma aversão dolorosa também fazia parte do emaranhado de emoções que senti naquele laboratório – aversão à crueldade com que os humanos são capazes de agir em relação aos outros seres sencientes. Uma qualidade importante da indignação moral é que ela envolve sentimentos de repulsa em resposta a uma violação da ética. Os psicólogos sociais estudaram o efeito da aversão no discernimento moral. Em um desses estudos, quando jurados em julgamentos simulados eram expostos a um cheiro repugnante, eles determinavam sentenças mais duras contra o acusado. A aversão pareceu ampliar a experiência de indignação moral, levando a julgamentos mais rigorosos. Outro estudo mostrou que as pessoas que tendem a ter sentimentos mais fortes de nojo consideram as pessoas que fazem parte de seu círculo mais próximo mais atraentes e têm atitudes mais negativas em relação às pessoas pertencentes a outros grupos. Essa pode ser uma das razões pela qual a indignação moral pode ser tão polarizadora – ela amplia a distância entre o eu e o outro.
Internamente, podemos ter respostas conflitantes em razão da nossa própria indignação moral. Enquanto a raiva pode ativar a agressão, a aversão pode produzir retraimento – o que pode significar se esconder dentro do nosso círculo de iguais e objetificar e evitar o grupo de diferentes. Martha Nussbaum, eticista e jurista, usa a frase “a política da aversão” para criticar leis que discriminam a comunidade LGBT com base na aversão, como proibições de casamento entre pessoas do mesmo sexo e leis de uso de banheiros anti-transgêneros. Ela observa que essas políticas apoiam o fanatismo, a intolerância e a opressão.
Como escreve a especialista em ética Dra. Cynda Rushton: “A indignação moral pode se tornar a cola que mantém um grupo unido por meio de um senso de solidariedade contra aqueles que ameaçam suas identidades pessoais ou profissionais, valores, crenças ou sua integridade. O sentimento de indignação moral pode se tornar contagioso e, se não for avaliado, pode exacerbar as diferenças e estimular a separação, em vez da conexão e da cooperação.”
Em meu trabalho com várias organizações sociais ao longo dos anos, aprendi que nossas predileções e nossos medos podem facilmente nos predispor a responder de determinadas maneiras a dramas morais. Quando senti que tinha que manifestar minhas preocupações sobre a má administração de uma organização com a qual estava envolvida, foi um grande esforço. Eu era amiga de longa data do CEO e me importava com ele. Eu havia expressado minhas preocupações diretamente a ele, mas o padrão de abuso persistia. Por fim, me senti moralmente obrigada a relatar diretamente ao conselho de administração minhas preocupações sobre a forma inadequada como o CEO lidava com funcionários, projetos e fundos. Eu sabia que minha afeição pelo CEO havia adiado minha decisão de tomar uma posição, mas finalmente senti que não tinha escolha. Senti aversão pela situação e estava decepcionada comigo mesma por não falar.
O pensamento racional desempenha um papel importante, é claro, mas frequentemente secundário. “O que faz com que o pensamento moral seja um pensamento moral é a função que desempenha na sociedade, não os processos mecânicos que estão ocorrendo no cérebro”, diz Joshua Greene, professor de psicologia de Harvard. O que finalmente me levou a divulgar minhas preocupações ao conselho foi minha consciência, não minha mente conceitual.
Um capelão escreveu sobre problemas em seu local de trabalho, uma prisão para jovens adultos. “Descobri que me sentia realmente constrangido em dizer que me feria ver o que constituía ‘cuidado’ no sistema e ver como o próprio sistema havia sido criado para ser violento, para provocar violência. Ao testemunhar esse sofrimento nos jovens, me sentia chateado, frustrado, indignado e profundamente envergonhado.” Esse capelão estava sofrendo de angústia empática, de indignação moral e de culpa.
De certa forma, a indignação é uma resposta justificável a uma ação moralmente transgressora, como a tortura de macacos em um laboratório ou a negligência de jovens na prisão. Mas questões morais ainda menos sérias, como a má administração de uma instituição, podem nos causar raiva, aversão e indignação moral baseada em princípios. Quando a indignação moral é episódica e regulada, pode ser um instigador útil da ação ética. Há muitas razões para nos sentirmos indignados neste mundo e a raiva pode nos dar a energia que precisamos para enfrentar a injustiça. Emoções intensas podem nos ajudar a reconhecer uma situação imoral e podem nos motivar a intervir, a tomar uma posição e até a arriscar nossas vidas para beneficiar os outros.
No entanto, quando a indignação moral é egoísta, crônica ou não regulada – quando se torna a própria lente pela qual vemos o mundo – pode ser viciante e divisiva. Aviltar, culpar e se sentir moralmente superior também nos colocam em uma posição superior de poder, que pode parecer satisfatória a curto prazo, mas que nos isola dos outros a longo prazo. E a estimulação excessiva constante pode ter efeitos sérios no corpo, na mente e no espírito – de úlceras a depressão e todos os problemas intermediários. Também pode ter efeitos sérios sobre a maneira como os outros nos percebem. Em última análise, aprendi que a indignação moral pode ter consequências benéficas ou prejudiciais não apenas para nós mesmos, mas também para nossos relacionamentos e até para a nossa sociedade. O discernimento, a percepção de nossas intenções e a capacidade de regular as emoções farão com que a indignação moral seja útil ou não.
O CEBB Talks é uma iniciativa do Instituto Caminho do Meio e do CEBB que visa à promoção de diálogos e ações educacionais para transformação interna e de mundo. Em cada encontro, o Lama Samten conversará com um(a) convidado(a), entre grandes nomes mundiais que têm pensado e agido na direção do reencantamento do mundo e das transformações necessárias nos nossos tempos. Clique aqui para se inscrever.
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