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O indivíduo como corpo, voz e mente

Namkhai Norbu Rinpoche explica do que verdadeiramente se trata o Dzogchen e como praticar para alcançar o que está além de qualquer condicionamento


Por
Revisão: Igor Souto e Caroline Souza
Tradução: Ormando MN

Neste capítulo da obra Dzogchen: The self-perfected state, o grande mestre Chögyal Namkhai Norbu explica como os três níveis de corpo, voz e mente interagem no aspecto relativo, e como podemos utilizá-los para atingir aquilo que está além de qualquer conhecimento intelectual: a natureza da mente tal como ela é.


Uma pessoa que começa a desenvolver interesse por estes ensinamentos pode tender a se distanciar da realidade das coisas materiais, como se os ensinamentos fossem algo completamente separado da vida cotidiana. Com frequência, no fundo de tudo isso, há uma atitude de desistir e fugir dos próprios problemas, com a ilusão de que a pessoa será capaz de encontrar algo que irá ajudá-la miraculosamente a transcender tudo. Mas os ensinamentos são baseados no princípio da nossa condição humana verdadeira. Nós temos um corpo físico com todos os seus vários limites: a cada dia nós precisamos comer, trabalhar, descansar e assim por diante. Essa é a nossa realidade e não podemos ignorá-la.

Os ensinamentos Dzogchen não são nem uma filosofia, nem uma doutrina religiosa, nem uma tradição cultural. Entender a mensagem dos ensinamentos significa descobrir a sua verdadeira condição, despida de todos os autoenganos e falsificações que a mente cria. O próprio significado do termo tibetano Dzogchen, “Grande Perfeição”, se refere ao estado primordial verdadeiro de todos os indivíduos, e não a qualquer realidade transcendente.

Muitos caminhos espirituais têm como suas bases o princípio da compaixão, de beneficiar os outros. Na tradição do budismo Mahayana, por exemplo, a compaixão é um dos pontos fundamentais da prática, junto com o conhecimento da verdadeira natureza dos fenômenos, ou “vacuidade”. Algumas vezes, no entanto, a compaixão pode se tornar algo construído e provisório, por não entendermos o princípio real dela. Uma compaixão genuína, não artificial, só pode surgir após nós termos descoberto nossa própria condição. Observando nossos próprios limites, nosso condicionamento, nossos conflitos e assim por diante, tornamo-nos verdadeiramente conscientes do sofrimento dos outros, e a partir daí a nossa própria experiência se torna uma base ou um modelo para sermos capazes de melhor entender e ajudar aqueles ao nosso redor.

A única fonte de todo tipo de benefício para os outros é a consciência da nossa própria condição. Quando sabemos como ajudar a nós mesmos e como lidar com a nossa situação, conseguimos realmente beneficiar os outros, e o nosso sentimento de compaixão emerge espontaneamente, sem a necessidade de nos atermos às regras de comportamento de qualquer doutrina religiosa.

O que queremos dizer quando falamos “tornarmo-nos conscientes da nossa própria natureza verdadeira”? Isso significa observar a nós mesmos, descobrir quem nós somos, quem acreditamos que somos, e qual é a nossa atitude em relação aos outros e à vida. Se apenas observarmos os limites, os julgamentos mentais, as paixões, o orgulho, a inveja, e os apegos com os quais nos fechamos durante o curso de um único dia: de onde eles surgem e em que estão enraizados? Sua origem é nossa visão dualista, nosso condicionamento. Para sermos capazes de ajudar tanto a nós mesmos quanto os outros, nós precisamos ultrapassar todos os limites dentro dos quais estamos fechados. Essa é a verdadeira função dos ensinamentos.

Qualquer ensinamento é transmitido por meio da cultura e do conhecimento dos seres humanos. Mas é importante não confundir nenhuma cultura ou tradição com os ensinamentos em si, pois a essência dos ensinamentos é o conhecimento da natureza do indivíduo. Qualquer cultura em particular pode ser de grande valor, pois ela é o meio que permite às pessoas receber a mensagem de um ensinamento, mas a cultura não é o ensinamento em si. Vamos pegar o exemplo do budismo. O Buda viveu na Índia e, para transmitir seu conhecimento, ele não criou uma nova forma de cultura, mas usou a cultura do povo indiano do seu tempo como base para a comunicação. No Abhidharmakosha, por exemplo, encontramos conceitos e noções, como a descrição do Monte Meru e dos cinco continentes, que são típicos da cultura antiga da Índia e não deveriam ser considerados de importância fundamental para a compreensão do ensinamento do Buda em si. Podemos ver outro exemplo disso no formato completamente novo que o budismo assumiu no Tibete, após sua integração à cultura indígena tibetana. De fato, quando Padmasambava introduziu o Vajrayana no Tibete, ele não acabou com as práticas rituais da antiga tradição Bön, mas soube exatamente como usá-las, incorporando-as nas práticas tântricas budistas.

Pelo contrário, é de fundamental importância que ele saiba como integrar esse ensinamento à sua própria cultura, a fim de ser capaz de comunicá-lo, na sua forma essencial, aos outros ocidentais. Mas, com frequência, quando as pessoas se aproximam de um ensinamento oriental, elas acreditam que suas culturas de origem não têm valor.

Se a pessoa não sabe como entender o verdadeiro significado de um ensinamento por meio de sua própria cultura, ela pode gerar confusão entre a forma externa de uma tradição religiosa e a essência da sua mensagem. Vamos usar o exemplo de uma pessoa ocidental interessada em budismo que vai até a Índia procurar por um professor. Lá ela encontra um mestre tibetano tradicional que vive em um monastério isolado e não sabe nada sobre a cultura ocidental. Quando um mestre assim for solicitado a ensinar, ele seguirá o método que está acostumado a usar para ensinar tibetanos. Mas a pessoa ocidental tem grandes dificuldades a ultrapassar, começando com o obstáculo do idioma. Talvez ela receba uma iniciação importante e fique muito impressionada pela atmosfera especial, pela “vibração” espiritual, mas não entenda o significado da iniciação. Atraída pela ideia de um misticismo exótico, ela talvez fique alguns meses no monastério, absorvendo um pouco dos aspectos dos costumes religiosos e da cultura tibetana. Quando ela retorna para o Ocidente, está convencida de que entendeu o budismo e se sente diferente das pessoas ao redor, enquanto se comporta igual a um tibetano.

Mas a verdade é que, para um ocidental praticar um ensinamento que vem do Tibete, não é necessário que ele seja igual a um tibetano. Pelo contrário, é de fundamental importância que ele saiba como integrar esse ensinamento à sua própria cultura, a fim de ser capaz de comunicá-lo, na sua forma essencial, aos outros ocidentais. Mas, com frequência, quando as pessoas se aproximam de um ensinamento oriental, elas acreditam que suas culturas de origem não têm valor. Essa é uma atitude muito equivocada, pois toda cultura tem seu valor, que está relacionado ao ambiente e às circunstâncias nos quais ela surgiu. Não se pode dizer que uma cultura é melhor do que outra. Depende, em vez disso, do indivíduo humano se ele ou ela vai obter mais ou menos vantagem da cultura em termos de desenvolvimento interior. Por esse motivo, é inútil transportar regras e costumes para um ambiente cultural diferente daquele no qual surgiram.

Os hábitos e o ambiente cultural de uma pessoa são importantes para que ela seja capaz de entender um ensinamento. Você não consegue transmitir um estado de conhecimento usando exemplos que a pessoa que está ouvindo não conhece. Se tsampa com chá tibetano for servido para um(a) ocidental, provavelmente ele ou ela não terão ideia de como comer isso. Por outro lado, um tibetano que come tsampa desde criança não vai ter esse problema, e logo vai misturar o tsampa ao chá e comer. Da mesma forma, se a pessoa não tem conhecimento sobre a cultura pela qual um ensinamento está sendo transmitido, é difícil entender a mensagem essencial do ensinamento. É aí que reside o valor de conhecer uma cultura particular. Mas os ensinamentos envolvem um estado interior de conhecimento que não deveria ser confundido com a cultura por meio da qual ele é transmitido, ou com os seus hábitos, costumes, sistemas políticos e sociais e assim por diante. Os seres humanos criaram muitas culturas diferentes em diferentes épocas e lugares, e alguém que tem interesse nos ensinamentos deve estar ciente disso e saber como trabalhar com culturas diferentes, sem, no entanto, se tornar condicionado(a) pelas suas formas externas.

Por exemplo, pessoas que já têm certa familiaridade com a cultura tibetana talvez pensem que, para praticar Dzogchen, precisam se converter ao budismo ou ao Bön, pois o Dzogchen se propagou através dessas duas religiões. Isso mostra como o nosso modo de pensar é limitado. Se nós decidimos seguir um ensinamento espiritual, temos a convicção de que precisamos mudar alguma coisa, como a nossa forma de se vestir, de se alimentar e assim por diante. Mas o Dzogchen não pede que a pessoa faça parte de qualquer doutrina religiosa ou que entre numa ordem monástica, ou que aceite cegamente os ensinamentos e se torne uma “Dzogchenista”. Na verdade, todas essas coisas podem criar sérios obstáculos para o conhecimento verdadeiro.

Alguém que está realmente interessado nos ensinamentos tem de entender seu princípio fundamental sem se deixar condicionar pelos limites de uma tradição. As organizações, instituições e hierarquias que existem nas várias escolas frequentemente se tornam fatores que nos condicionam, mas isso é algo que, para nós, é difícil de notar.

O fato é que as pessoas estão tão acostumadas a rotular tudo, que são incapazes de entender qualquer coisa que não se enquadre nos limites de tais rótulos. Deixe-me oferecer um exemplo pessoal. De vez em quando, encontro algum(a) tibetano(a) que não me conhece bem e pergunta: “A qual escola você pertence?” No Tibete, ao longo dos séculos, surgiram quatro tradições principais de budismo tibetano, e se um(a) tibetano(a) ouve falar de um(a) mestre(a), ele(a) está convencido(a) de que o(a) mestre(a) deve necessariamente pertencer a um desses quatro grupos. Se eu responder que sou um praticante Dzogchen, essa pessoa vai presumir que eu pertenço à escola Nyingmapa, dentro da qual os textos Dzogchen foram preservados. Por outro lado, algumas pessoas, como já aconteceu, sabendo que eu escrevi alguns livros sobre o Bön a fim de revalorizar a cultura indígena do Tibete, diriam que sou um Bönpo. Mas o Dzogchen não é uma escola ou grupo, nem um sistema religioso. Ele é apenas um estado de conhecimento que mestres transmitiram além de qualquer limites de grupo ou tradição monástica. Na linhagem dos ensinamentos Dzogchen, tem havido mestres de todas as classes sociais, incluindo agricultores, nômades, nobres, monges e grandes figuras religiosas de todas as tradições ou grupos espirituais. O quinto Dalai Lama, por exemplo, enquanto mantinha perfeitamente as obrigações da sua elevada posição religiosa e política, era um grande praticante Dzogchen.

Alguém que está realmente interessado nos ensinamentos tem de entender seu princípio fundamental sem se deixar condicionar pelos limites de uma tradição. As organizações, instituições e hierarquias que existem nas várias escolas frequentemente se tornam fatores que nos condicionam, mas isso é algo que, para nós, é difícil de notar. O verdadeiro valor dos ensinamentos está além de todas as superestruturas que as pessoas criam, e para descobrir se os ensinamentos são realmente uma coisa viva para nós, só precisamos observar o quanto nos libertamos de todos os fatores que nos condicionam. Às vezes, podemos acreditar que entendemos os ensinamentos e sabemos como aplicá-los, mas, na prática, permanecemos condicionados pelas atitudes e princípios doutrinais, os quais estão bem distantes do verdadeiro conhecimento da nossa real condição.

Quando um(a) mestre(a) ensina Dzogchen, ele ou ela está tentando transmitir um estado de conhecimento. O objetivo do(a) mestre(a) é despertar o(a) estudante, abrindo a consciência desse indivíduo para o estado primordial. O mestre não vai dizer: “siga minhas regras e obedeça meus preceitos!” Ele vai dizer: “abra seu olho interno e observe você mesmo(a). Pare de buscar uma lâmpada externa para iluminá-lo desde fora, e acenda a sua própria lâmpada interna. Assim, os ensinamentos passarão a viver em você, e você neles.”

Os ensinamentos precisam se tornar um conhecimento vivo em todas as nossas atividades cotidianas. Essa é a essência da prática. Para além disso, não há nada a ser feito em particular. Um monge, sem abandonar seus votos, pode praticar Dzogchen perfeitamente bem, assim como também podem praticar Dzogchen um padre católico, uma pessoa que trabalha em escritório, um(a) operário(a) e assim por diante, sem precisarem abandonar seus papéis na sociedade, porque o Dzogchen não muda as pessoas desde o exterior. Em vez disso, ele as desperta internamente. A única coisa que um mestre Dzogchen vai pedir é que a pessoa observe a si mesma, a fim de ganhar a consciência necessária para aplicar os ensinamentos na vida cotidiana.

Cada religião, cada ensinamento espiritual tem seus princípios filosóficos básicos, seu modo característico de ver as coisas. Por exemplo, dentro da filosofia budista, surgiram diferentes sistemas e tradições, que com frequência discordam uns dos outros apenas em relação às sutilezas de interpretação sobre os princípios fundamentais. No Tibete, essas controvérsias filosóficas duram até hoje, e os escritos polêmicos que resultam delas agora formam um corpo literário inteiro. Mas no Dzogchen nenhuma importância é dada às opiniões e às convicções filosóficas. O modo de ver no Dzogchen não é baseado em conhecimento intelectual, mas em uma consciência da própria condição verdadeira do indivíduo.

Cada pessoa geralmente tem seu próprio modo de pensar e convicções sobre a vida, mesmo que nem sempre as consiga definir de forma filosófica. Todas as teorias filosóficas que existem foram criadas pelas mentes dualistas enganadas dos seres humanos. No reino da filosofia, aquilo que hoje é considerado verdade talvez seja provado falso amanhã. Ninguém pode garantir a validade de uma filosofia. Por causa disso, qualquer modo intelectual de olhar qualquer coisa é sempre parcial e relativo. O fato é que não existe nenhuma verdade a ser buscada ou confirmada logicamente. O que precisamos fazer, na verdade, é descobrir o quanto a mente continuamente se limita em uma condição de dualismo.

O dualismo é a real raiz do nosso sofrimento e de todos os nossos conflitos. Todos os nossos conceitos e crenças, não importa quão profundos eles possam parecer, são como redes que nos prendem no dualismo. Quando descobrimos nossos limites, precisamos tentar superá-los, nos desatando de qualquer tipo de convicção religiosa, política ou social que possa nos condicionar. Precisamos abandonar conceitos como “iluminação”, “natureza da mente” e assim por diante, até que o mero conhecimento intelectual não mais nos satisfaça, e até que não mais negligenciemos a integração do nosso conhecimento à nossa real existência.

Portanto, é necessário começar com o que nós conhecemos, com a nossa condição humana material. No ensinamento, é explicado que o indivíduo é feito de três aspectos: corpo, voz e mente. Esses aspectos constituem nossa condição relativa, que é sujeita ao tempo e à divisão entre sujeito e objeto. Aquilo que está além do tempo e dos limites do dualismo é chamado de “condição absoluta”, o verdadeiro estado de corpo, voz e mente. No entanto, para entrar nisso de forma experiencial, é necessário primeiro entender a nossa existência relativa.

O corpo é algo real para nós, é a forma material que nos limita dentro do reino humano. Externamente, o corpo encontra seu reflexo em nossa dimensão material inteira, com a qual ele está conectado de forma próxima. No tantrismo, por exemplo, fala-se de uma correspondência precisa entre o corpo humano e o universo, baseada no princípio de que existe uma única energia. Quando pensamos em nós mesmos, a primeira coisa que pensamos é no nosso corpo e no nosso ser físico. Disso surge o senso de um eu, nosso apego e todos os conceitos de propriedade que seguem a partir disso, como minha casa, meu país, meu planeta e assim por diante.

Por meio da dimensão material do corpo, podemos entender sua energia, ou a “voz”, o segundo aspecto do indivíduo. A energia não é material, visível ou tangível. Ela é algo mais sutil e difícil de entender. Um dos aspectos perceptíveis da energia é a vibração, ou som, e portanto ela é conhecida como a “voz”. A voz está ligada à respiração, e a respiração está ligada à energia vital do indivíduo. Na Yantra Yoga, os movimentos do corpo e os exercícios de respiração têm como objetivo o controle dessa energia vital.

A relação entre voz, respiração e mantra pode ser melhor demonstrada através do modo como o mantra funciona. Um mantra é uma série de sílabas cujo poder reside no seu som. Através da pronúncia repetida do mantra pode-se obter controle de uma determinada forma de energia. A energia do indivíduo é intimamente conectada à energia externa, e uma pode influenciar a outra. O conhecimento sobre os vários aspectos das relações entre as duas energias é a base das tradições rituais Bön, que até agora têm sido um tanto negligenciadas pelos estudiosos ocidentais. No Bön, por exemplo, é considerado que muitas perturbações e doenças derivam de classes de seres que têm a capacidade de dominar certas formas de energia. Quando a energia de um indivíduo se enfraquece, é como deixar uma porta aberta através da qual essas perturbações causadas por essas classes de seres podem passar. Assim, é considerado muito importante manter a plenitude da energia do indivíduo.

Falando com franqueza, do ponto de vista do absoluto, não existe realmente qualquer separação entre a condição relativa e sua verdadeira natureza, do mesmo modo como um espelho e os reflexos são, de fato, um todo indivisível.

Desde uma perspectiva inversa, é possível influenciar a energia externa, realizando o que são chamados de “milagres”. Tal atividade é, na verdade, resultado de ter se alcançado o controle da própria energia, por meio do qual se obtém a capacidade de ter poder sobre fenômenos externos.

A mente é o aspecto mais sutil e oculto da nossa condição relativa, mas não é difícil notar sua existência. Tudo o que precisamos fazer é observar nossos próprios pensamentos e como nos deixamos ser capturados pelo seu fluxo. Se alguém perguntar “o que é a mente?”, a resposta poderia ser que é a mente que faz essa pergunta. A mente é o fluxo ininterrupto de pensamentos que surgem e depois desaparecem. Ela tem a capacidade de julgar, raciocinar, imaginar e assim por diante, dentro dos limites do espaço e do tempo. Mas, além da mente, além dos nossos pensamentos, há algo que chamamos de “natureza da mente”, a verdadeira condição da mente, que está além de todos os limites. Mas se a natureza da mente está além da mente, como podemos alcançar uma compreensão sobre ela?

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Vamos usar um espelho como exemplo. Quando olhamos para um espelho, vemos nele as imagens refletidas de qualquer objeto que esteja à sua frente; não vemos a natureza do espelho. Mas o que queremos dizer com essa “natureza do espelho”? Estamos nos referindo à capacidade do espelho de refletir ‒ que é definível pela sua clareza, pureza e limpidez, condições indispensáveis para a manifestação de reflexos. Essa “natureza do espelho” não é algo visível e o único meio de concebê-la é através das imagens refletidas no espelho. Da mesma forma, só conhecemos e temos experiências concretas daquilo que é relativo à nossa condição de corpo, voz e mente. Mas isso, em si, é o caminho para entender a verdadeira natureza deles.

Falando com franqueza, do ponto de vista do absoluto, não existe realmente qualquer separação entre a condição relativa e sua verdadeira natureza, do mesmo modo como um espelho e os reflexos são, de fato, um todo indivisível. No entanto, a nossa situação é tal que é como se tivéssemos saído do espelho e agora olhássemos para os reflexos que estão aparecendo nele. Inconscientes da nossa própria natureza de clareza, pureza e limpidez, consideramos que os reflexos são reais, desenvolvendo, assim, aversão e apego. Desse modo, em vez de os reflexos serem meios para descobrirmos nossa verdadeira natureza, eles se tornam um fator que nos condiciona. E vivemos distraídos pela condição relativa, dando muito importância a tudo.

A condição dualista, que é a situação geral de todos os seres humanos, é chamada de “ignorância” nos ensinamentos. E mesmo uma pessoa que estudou os conceitos mais profundos relacionados à “natureza da mente”, mas que não entende realmente a sua situação relativa, pode ser chamada de “ignorante”, porque para essa pessoa a “natureza da mente” permanece sendo apenas um conhecimento intelectual. Entender a nossa real natureza não necessariamente requer o uso de processos mentais de análise e raciocínio. Uma pessoa que tem um conhecimento intelectual sobre a natureza da mente vai permanecer atraída, como qualquer outra pessoa, pelos reflexos que aparecem, e vai julgar os reflexos como bonitos ou feios, permitindo-se ser capturada pelo dualismo da mente.

Nos ensinamentos Dzogchen, o termo “conhecimento” ou “estado de conhecimento” denota um estado de consciência que é como um espelho, no sentido de que sua natureza não pode ser maculada por quaisquer imagens que sejam refletidas nele. Quando dispomos de conhecimento acerca da nossa verdadeira natureza, nada pode nos condicionar. Tudo o que surge é, então, experienciado como parte das qualidades inerentes do nosso próprio estado primordial. Por essa razão, o ponto fundamental não é abandonar ou transformar a condição relativa, mas entender sua verdadeira natureza. Para este fim, é necessário eliminar todas as concepções errôneas e falsificações que continuamente aplicamos a nós mesmos.

Nós temos um corpo material, que é extremamente delicado e tem muitas necessidades que precisamos respeitar. Se estamos com fome, precisamos comer; se estamos cansados, precisamos descansar, e assim por diante. Se não fizermos isso, podemos desenvolver sérios problemas de saúde, pois os limites dos nossos corpos são reais para nós. Os ensinamentos dizem que superar o apego ao corpo é muito importante. Mas isso não significa que a pessoa deveria romper abruptamente todos os limites e negar suas necessidades. O primeiro passo para superar esse apego é entender a condição do corpo e, assim, saber como respeitá-lo. Isso também é verdade em relação ao funcionamento da nossa energia. Quando uma pessoa é ignorante em relação à própria energia e tenta lutar contra os limites naturais dela, as perturbações que resultam disso podem facilmente se espalhar para as áreas do corpo e da mente. Na medicina tibetana, por exemplo, considera-se que algumas formas de loucura são causadas pela circulação de alguma das energias vitais sutis por lugares diferentes de onde ela normalmente deveria fluir.

Os problemas de energia são muito sérios. Nos tempos modernos, estamos vivendo um período em que existe uma difusão cada vez maior de doenças, como o câncer, conectadas a desordens de energia. As formas oficiais da medicina ocidental, mesmo se já tiverem identificado os sintomas de tais doenças, não sabem qual é sua causa fundamental, visto que essas formas de medicina não entendem como a energia funciona. Na medicina tibetana, quando um tratamento médico para esses tipos de perturbações se mostra ineficaz, elas são curadas através da prática do mantra, que pode influenciar e coordenar a condição energética de um paciente através do som e da respiração. Além disso, na Yantra Yoga existem posições corporais, métodos para controlar a respiração e concentrações mentais que podem ser usadas para re-estabilizar desordens de energia.

Os ensinamentos Dzogchen aconselham que a pessoa nunca force a condição da própria energia, mas que sempre esteja consciente dos limites dela em todas as várias circunstâncias que encontrar. Se em alguns momentos a pessoa não sente vontade de se sentar e praticar, ela deveria evitar entrar em um confronto consigo mesma. Por trás de uma sensação como essa, talvez haja algum problema na nossa energia, do qual não sabemos. Em tais situações é importante saber como relaxar e dar espaço a si mesmo, a fim de não bloquear o progresso da própria prática. Problemas de solidão, depressão, confusão mental e assim por diante com frequência também derivam de uma condição desequilibrada da nossa energia.

A mente influencia a condição tanto do corpo quanto da energia e, ao mesmo tempo, depende deles. Às vezes a mente está totalmente escravizada pela energia, e não há como equilibrá-la sem antes remover as desordens de energia. É muito importante entender a relação de interdependência entre a mente e a energia. Em todas as tradições budistas, quando alguém é ensinado a meditar, é explicado para essa pessoa que a respiração deve ser lenta e profunda, a fim de favorecer o desenvolvimento de um estado mental calmo. Por outro lado, se observarmos uma pessoa nervosa cuja mente está em um estado agitado, vamos logo perceber que a respiração dela está rápida e apressada. Algumas vezes é impossível acalmar a mente apenas através da meditação, e é necessário praticar movimentos e respirações de Yantra Yoga para recoordenar a energia da pessoa.

A imagem de uma gaiola é frequentemente usada como um exemplo para ilustrar a nossa condição relativa. É dito que um indivíduo é como um pequeno pássaro trancado e protegido por uma gaiola. A gaiola é usada aqui como um símbolo para todos os limites do nosso corpo, voz e mente. Mas a gaiola, no exemplo, não é usada para indicar uma situação particularmente anormal e horrível. Na verdade, ela é usada para descrever a condição normal dentro da qual um ser humano vive. O problema é que não estamos conscientes da situação em que realmente nos encontramos e, de fato, temos medo de descobri-la, pois crescemos dentro dessa gaiola desde que éramos criancinhas.

Vamos refletir sobre o modo como uma criança entra nesses limites. Durante os primeiros meses de vida, quando a criança ainda não sabe argumentar ou falar, seu pai e mãe, felizes, seguram-na nos braços e sussurram doces palavras. Mas quando a criança começa a andar e quer tocar em algo, eles dizem: “não toque nisso! Não vá lá!” Então, conforme a criança cresce, ela é obrigada a limitar mais e mais o seu modo de se expressar, seu modo de sentar-se à mesa, seu modo de comer e assim por diante, até que se torna uma criança exemplar. Aí, então, os pais ficam orgulhosos da criança, mas a verdade é que eles fizeram a pobrezinha ingressar completamente no seu modo de pensar. A criança, também, está aprendendo a viver numa gaiola. E assim, com cinco ou seis anos de idade, ela começa a ir para a escola, com todas as regras e expectativas que resultam disso. Ela vai ter algumas dificuldades para superar, mas vai gradualmente se acostumar a essa gaiola adicional. Nos dias atuais, leva-se muitos anos para completar a gaiola que é indispensável para que sejamos habilitados a viver em sociedade. E existem muitos fatores adicionais de condicionamento, como ideias políticas, crenças religiosas, os laços de amizade, de trabalho e assim por diante. Quando a gaiola está suficientemente desenvolvida, estamos prontos para viver nela e nos sentimos protegidos. Essa é a condição de todos os indivíduos e precisamos descobri-la observando a nós mesmos.

Quando estamos conscientes dos nossos limites, existe a possibilidade de superá-los. Um pássaro que vive em uma gaiola dá à luz seus filhos dentro da gaiola. Quando os filhotes nascem, eles têm asas. Mesmo que não possam voar na gaiola, o fato de que nascem com asas mostra que sua natureza real é estar em contato com o espaço aberto do céu. Mas se, de repente, um pássaro que sempre viveu em uma gaiola escapar, ele pode encontrar muitos perigos, pois não sabe o que esperar lá fora. Ele pode ser devorado por um gavião ou capturado por um gato. Portanto, é necessário que o pássaro treine um pouco, voando por um período em um espaço limitado, até que, quando se sentir preparado, possa definitivamente alçar voo.

É a mesma coisa conosco: ainda que seja difícil, para nós, superar todos os nossos limites em um instante, é importante sabermos que o nosso estado real está lá, além de todos os fatores condicionantes, e que realmente temos a possibilidade de redescobri-lo.

Podemos aprender a voar além dos limites da nossa condição dualista, até que estejamos prontos para deixá-la completamente para trás. Podemos começar nos tornando conscientes do nosso corpo, voz e mente. Entender a nossa verdadeira natureza significa entender a condição relativa e saber como reintegrar-se com a sua natureza essencial, para que nos tornemos mais uma vez como um espelho que pode refletir qualquer objeto, manifestando sua claridade.

 

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2 Comentários

  1. Ataíde Luiz Marques disse:

    Achei esse texto extremamente esclarecedor pra quem tem interesse em praticar e a compreender o budismo.
    Gratidão

  2. Pedro Guimaraes disse:

    Que os méritos desse precioso ensinamento se espalhe.

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