Somos um grupo de 15 adultos e seis crianças. Atravessamos por vinte minutos a mata fechada que protege a comunidade. Mário, que primeiro nos recebe e nos guia pela floresta, nos reúne em uma clareira e explica que vamos entrar em fila e saudar a aldeia um a um, dizendo com ambas as mãos erguidas a palavra agujevete, uma saudação guarani. Somos recebidos por todos os homens, mulheres e crianças da aldeia. Eles estão reunidos em sua maior construção, feita de toras de madeira cobertas com lona. Entramos. Silêncio. Cada um de nós fala, e a cada um de nós toda a aldeia ouve e responde. Um por um.
Sentamos. André Benitez, a liderança da aldeia, agradece e nos pede que expliquemos o que é o centro budista. A aldeia quer entender. José Ricardo, o Juca, explica: “Não sabemos bem como nos conectamos com essa tradição tão distante, que veio do Tibete, mas foi o que aconteceu. Nossa prática é a bondade. Onde moramos, nós fazemos meditação, estudamos, rezamos. Desde que soubemos de vocês, rezamos por vocês todos os dias, pela manhã e à noite”.
André fala em guarani, traduzindo para a aldeia que ouve atenta. No meio da fala dele, na língua que se sente dele, do seu povo e da terra, com seus sons guturais e estalados, tão tristemente novos aos nossos ouvidos, reconhecia-se palavras não traduzidas: CEBB, benefício, meditação. A palavra “opy”, que define templo ou casa de reza, foi usada várias vezes.
A retomada Mbyá-Guarani
André Benitez recebeu o CEBB no último 7 de abril em sua aldeia Mbyá-Guarani, em Maquiné, região da Serra do Mar, no Rio Grande do Sul, onde 15 famílias indígenas estão fazendo seu Movimento de Retomada.
“Estamos retomando não apenas a nossa terra, mas a nossa cultura, nosso jeito de viver. Estamos retomando o que é nosso”. Em um resgate do modo de vida de seus ancestrais, a aldeia não tem energia elétrica nem água encanada, e é assim que querem seguir.
O encontro entre esta aldeia Mbyá-Guarani e o CEBB aconteceu em um momento de tensão política para eles. Após serem denunciados por invasão de terras estaduais, o Ministério Público do Rio Grande do Sul lhes deu o prazo de 15 a 30 dias para que deixassem a área. Esta pertence formalmente à extinta FEPAGRO (Fundação de Pesquisas Agropecuárias), e está localizada em um vale coberto por mata atlântica. Apenas este clima — diferente do da aldeia do Campo Molhado, onde grande parte deles vivia anteriormente — permite que sementes que há gerações fazem parte da cultura e tradição dos Mbyá-Guarani sejam cultivadas.
Helisa Canfield, doutoranda do Programa de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora da área, afirma que aquela terra também tem o sentido de manter viva a tradição que caracteriza o povo Mbyá-Guarani (e os guarani de forma geral): o trânsito entre diferentes territórios. A área configura um corredor entre a região do litoral e a serra gaúcha, e há muito tempo é identificada por esses povos como uma zona de trânsito entre diferentes aldeias.
“Dentro da cosmovisão guarani, o verbo que rege é o caminhar. O guarani é um povo que caminha. Eles não têm essa visão de propriedade que nós temos, e a relação com o território se dá a partir de outra lógica”, explica Helisa.
Na aldeia, explicando seu Movimento de Retomada, André falou para nós de seu sentimento em relação ao branco, de seu encarceramento cultural.“Os juruá (homem branco) impuseram as suas leis. Nós queremos seguir nossas leis. Temos que cumprir regra do branco e essa é uma dor que carregamos”.
Ampliando redes
Embora sejam conhecidos por seu silêncio e introspecção, após a decisão do Ministério Público, os líderes da aldeia entraram em campanha, estabelecendo diálogo com outras aldeias indígenas e organizações sociais para que sua voz pudesse ser ouvida e sua causa deixasse de ser invisível.
Foi assim que André Benitez esteve pela primeira vez no CEBB Caminho do Meio, no dia 3 de abril deste ano, em um visita articulada pelo doutorando do Programa de Antropologia da UFRGS e militante da área, João Maurício. Ao lado do cacique Jaime, da aldeia Cantagalo (Viamão), e da cacique Júlia, também Mbyá-Guarani, André pôde contar para o Lama Padma Samten e praticantes do CEBB a situação judicial em que se encontravam, falar de sua luta e daquele momento.
Para Vanessa Rosa, graduanda em Antropologia e que há mais de 15 anos está em contato com os Mbyá-Guarani, “com a dissolução das fundações e o caos que vivemos em nível político, os guarani, uma sociedade sem estado, viram o esperado momento de sua autonomia chegar, começando por esta Retomada.”
A FEPAGRO, que ocupava antes a área da Retomada em Maquiné, apesar de ser uma das mais antigas fundações de pesquisa agropecuária da América Latina e com expansão em todo o estado, foi extinta (com outras fundações estaduais) graças ao chamado pacote de reestruturação da máquina pública estadual.
Visões afins
No recente encontro Budismo e Povos da Terra: Cosmovisões e Possibilidades, realizado em março no CEBB Caminho do Meio, Ailton Krenak, uma das maiores lideranças indígenas do país, deu a real dimensão da resistência e capacidade de resiliência dos povos indígenas, especialmente os guarani.
“Para o povo guarani, o Brasil é só um dos países onde essa grande nação perambula, onde faz suas caminhadas, atravessando nossos vizinhos aqui do Sul — Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia — que é nossa casa comum também. Nossos parentes que vivem no Peru, na bacia amazônica, lá pra cima na Colômbia, Equador, todos têm esse sentimento de que é nossa casa comum.”
“Esse sentimento dessa casa comum — essa casa que nós podemos respirar, viver, criar nossos filhos, buscar nosso alimento — é uma visão tão inspiradora e reconfortante, porque ela tira da gente toda essa ansiedade que o mundo fica pressionando em nosso espírito, em nosso pensamento, e presenteia pra nós um sentimento maravilhoso de inspirar a graça de estar vivendo”, falou Krenak para as cerca de cem pessoas que o ouviam no templo do CEBB Caminho do Meio.
Sentado ao lado de Krenak, neste encontro que reuniu também outras lideranças, o Lama Padma Samten falou da atual situação dos povos indígenas no Brasil como uma violência “incompreensível” e que já dura 500 anos.
“Nós que compomos a população brasileira atualmente temos a responsabilidade de no mínimo olhar com os olhos muito claros o que acontece em meio à nossa vida aparentemente natural, normal. A gente está vivendo uma violência já muito antiga e, ao mesmo tempo, percebemos uma capacidade de resiliência, uma capacidade de manter um conhecimento e uma forma de vida extraordinários. São conhecimentos não apenas no nível material, no nível da natureza, mas na inseparatividade entre todas as dimensões, que inclui também a dimensão espiritual”.
As bolhas de realidade
Dentro da perspectiva budista, tanto quanto a prática do silêncio, a compreensão da coemergência é fundamental para o caminho espiritual. Ela nos permite revelar posições de mente que geram sofrimento para nós e para os outros e estabelecer, paulatinamente, uma visão mais lúcida sobre a realidade. O Lama Samten tem usado a expressão “bolhas de realidade” para elucidar esse processo, que não é apenas individual, mas coletivo, intersubjetivo.
“Nós normalizamos uma determinada forma de vida, uma cultura estreita baseada no capital e na propriedade como se fosse ‘a forma humana de viver’. Mas é apenas uma bolha de realidade, um tipo de forma de vida”.
“Quando desenvolvemos esse olhar de reconhecer a bolha, isso nos permite entender que diferentes grupos humanos vivem em diferentes bolhas. Eu vi no filme Martírio, de Vincent Carelli, as pessoas acusando os guarani, atacando-os pelo modo de vida deles. Os fazendeiros são mostrados matando os guarani e dizendo: “Onde tem índio tem atraso, os americanos cresceram e progrediram porque eles mataram todos os índios” — essa é a visão da bolha econômica. A gente pode pensar que eles estão enganados, mas não. Isso é um outro tipo de bolha. A gente tem que interligar essas bolhas, e fazer com que elas conversem.”
Aspiração
Durante a visita aos Mbyá-Guarani em Maquiné, Tiago, um jovem que está se preparando para ser um Karaí (líder espiritual da aldeia), fala com voz forte, evidenciando o choque de bolhas de realidade, de formas de vida, que vive seu povo:
“O que é que a gente tem que fazer na escola pública? A gente não quer que a cultura do juruá vá para frente. Para nós, que não somos juruá, queremos a nossa própria cultura. A aldeia é a escola”.
Tiago, aprendiz de Karaí: “não queremos escola”. Foto: Daniel Rezinovsky
Ao final do encontro, com a aldeia inteira ao redor, André revela sua visão em relação ao encontro CEBB – Mbyá-Guarani:
“A gente pode ter rezas diferentes. Vocês têm as suas, nós temos as nossas. Mas no plano espiritual está tudo conectado. Está tudo amarrado”.
Ele que sempre pede desculpas por seu português, entrelaça as mãos para complementar o sentido da sua fala. “Para nós”, diz o Lama, “é um momento muito delicado e profundo. Um momento de nós podermos dialogar e ajudar, através do diálogo, através da nossa ação, que esses ensinamentos possam ser preservados, e esses povos, nações e famílias possam ser protegidos de algum modo”.
*O CEBB faz parte de um grupo de apoio aos Mbyá-Guarani, junto com pesquisadores e militantes da área.
[…] Bodisatva que acompanha a retomada das terras dos Mbya-Guarani transcreveu a maravilhosa palestra “Os quatro princípios da cultura Guarani”, oferecida por […]
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