Foto: Bence Boros (Unsplash)

Meditação: uma relação de intimidade consigo mesmo

Trungpa Rinpoche apresenta o caráter aterrado, prático e ao mesmo tempo profundamente belo da prática de meditação da atenção plena


Por
Revisão: Dirlene Ribeiro Martins
Tradução: Caroline Souza

A meditação é, comumente, uma das principais ferramentas de que dispomos para desenvolver e praticar a atenção plena. É uma forma de nos observarmos cientificamente para que possamos ver nossa situação psicológica com precisão. A prática de meditação não é uma abordagem exótica ou fora do nosso alcance. Ela é imediata e pessoal, e envolve uma relação íntima com nós mesmos. Trata-se de nos conhecermos pelo exame do nosso processo psicológico real, sem termos vergonha disso. Somos, muitas vezes, tão críticos de nós mesmos que nos tornamos nossos próprios inimigos. A meditação é uma forma de dar fim a essa disputa na medida em que fazemos amizade com nós mesmos. E aí talvez descubramos que não somos tão ruins quanto achávamos ou nos haviam dito. Antes de olharmos para outros aspectos da atenção plena, eu gostaria de dar-lhes uma ideia dos benefícios da meditação no que diz respeito à nossa relação com nós mesmos e nossa vida diária.

Se nos rotularmos como casos irremediáveis ou nos enxergarmos como vilões, será impossível usar a nossa própria experiência como ponto de partida. Se adotarmos a atitude de que há algo de errado em nós, precisaremos estar constantemente procurando, lá fora, por algo melhor do que somos. Essa busca pode continuar indefinidamente, sem chegar a um fim.

Contrastando com essa atitude, a meditação se trata de entrarmos em contato com a nossa situação real, o estado cru e áspero da nossa mente e ser. Não importa o que esteja lá: devemos olhar. É como construir uma amizade de longa data com alguém. Como parte do processo de se tornarem amigos, você passa a conhecer coisas de que não gosta na outra pessoa e se depara com aspectos do relacionamento que são muito desconfortáveis. Reconhecer os problemas e fazer as pazes com eles, frequentemente, é o alicerce para uma longa amizade. Tendo incluído esses elementos já no início, eles não vão chocá-lo mais tarde. Como você já conhece todos os aspectos negativos, não precisa se esconder desse lado do relacionamento. E aí você pode cultivar o outro lado, o lado positivo, também. Essa é, igualmente, uma ótima maneira de começar a fazer amizade com você mesmo. De outro modo, você pode vir a se sentir surpreso e traído mais tarde, quando descobrir as coisas que vinha escondendo de si.

Chögyam Trungpa Rinpoche. Foto por Liza Matthews.

O que quer que exista em nós é uma situação natural. É outra dimensão da beleza natural. As pessoas às vezes despendem grandes esforços para apreciar a natureza: escalam montanhas, vão à África fazer safári para ver girafas e leões ou embarcam num cruzeiro até a Antártida. É muito mais simples e mais imediato apreciar a beleza natural em nós mesmos. Essa beleza é, de longe, mais linda do que qualquer fauna e flora exóticas; ela é de longe mais fantástica, dolorosa, colorida e encantadora.

Meditação é adentrar a situação orgânica e natural daquilo que somos. Ela demanda trabalho manual, esforço individual. Não há como alugarmos um helicóptero para nos levar ao coração da questão sem nenhuma inconveniência. Temos de caminhar com os nossos próprios pés. Temos de caminhar até o interior selvagem dessa beleza natural íntima. Esse é o primeiro passo no desenvolvimento da atenção plena: adentrar diretamente a nossa situação psicológica natural sem tentar arranjar um veículo sofisticado que nos leve até lá. Não podemos ir de SUV ou de helicóptero. Para começar, temos de caminhar e descobriremos que vale a pena.

A prática de meditação nos apresenta técnicas simples e diretas para o desenvolvimento da atenção plena que são válidas para a nossa situação psicológica real. Nós trabalhamos com os recursos de que já dispomos. A nossa situação presente, o que nós somos, é o ponto de partida. Começamos com técnicas simples tais como sentar, andar e respirar. Essas são coisas naturais. Todos temos de respirar, todos temos de sentar, e a maioria de nós é capaz de andar. Essas coisas naturais são o ponto de partida para desenvolver a atenção plena por meio da prática de meditação.

Temos de começar pequenos, de um modo comum, simples. Nesse sentido, meditar é como colher vegetais no seu pátio em vez de comprá-los no supermercado. Nós simplesmente vamos até a horta, colhemos vegetais frescos e os preparamos. Essa é uma analogia para a qualidade direta, pessoal e imediata da meditação. Envolve simplificar nossa psicologia básica e nossos problemas básicos. Simplificar, nesse caso, significa não ter expectativas em relação ao que você vai ganhar meditando. Você apenas começa.

Talvez seja melhor pensar no desenvolvimento da atenção plena pela meditação como um modo de vida, e não como algo pontual. Para se beneficiar da meditação, você precisa de mais do que um gostinho. Você precisa treinar ao longo de um período de tempo. Senão surgirá um monte de confusão desnecessária. Portanto, é importante manter a prática e seguir as instruções que você receber.

A prática que será apresentada neste livro não é necessariamente mais esclarecedora ou promissora do que outras técnicas. Entretanto, se você seguir essa abordagem e aplicar esforço e paciência, então, independentemente do seu histórico ou crenças, você terá uma chance de entender melhor a si mesmo. Devo alertá-lo de que este entendimento pode ser extremamente tedioso. Além disso, pode incluir enxergar algumas coisas que você não quer ver. Ainda assim, não podemos nos rejeitar antes de sabermos quem ou o que nós somos. E por isso eu o incentivo a ser corajoso. Por favor, não amarele. Não vai adiantar nada rejeitar a si mesmo – ou se parabenizar. Tente simplesmente trabalhar com a técnica tal como ela é apresentada nos próximos capítulos.

A meditação é algo extremamente aterrado, irritantemente aterrado. Pode também ser demandante. Se você mantiver a prática, vai começar a entender algumas coisas sobre você e os outros e adquirir clareza. Se praticar regularmente e seguir essa disciplina, suas experiências não serão necessariamente dramáticas, mas você terá uma sensação de autodescoberta. Por meio da prática aterrada de meditação, você enxerga as cores da sua existência. A terra começa a falar com você – em vez de o paraíso lhe mandar mensagens, por assim dizer.

Eu, pessoalmente, aprendi algo com esta prática. Não é um depoimento, mas gostaria de compartilhar com vocês como eu me beneficiei pessoalmente com a prática da meditação. No capítulo 3, oferecerei instruções sobre a técnica da meditação tal como eu a aprendi.

A meditação, como me foi ensinada, tem várias etapas. A primeira é o desenvolvimento da atenção plena básica, que você pode praticar em grupo ou individualmente. No início, essa prática ajuda a desenvolver a atenção plena ensinando você a prestar atenção à respiração, sua respiração comum. Quando está correndo, você pode ficar sem ar. Então, quando para e senta, a primeira coisa que você faz é tentar acalmar a respiração. Nesse momento, você presta atenção à respiração. Ou, se quer relaxar, você senta em uma cadeira e diz: “ahh”. Assim, respirar é parte do que nós naturalmente associamos tanto ao esforço quanto ao relaxamento.

A técnica de meditação da atenção plena é associada ao desenvolvimento da paz. De fato, podemos chamá-la de meditação do viver pacífico. Paz, aqui, não quer dizer um estado sem guerra. Não tem nada a ver com política. Aqui estamos falando de paz como não-ação. Digamos que estamos passando por uma situação intensa na vida, no relacionamento com um amigo, com nossos pais, ou nos negócios. Quando damos um passo para trás e nos afastamos dessa intensidade, podemos também sentar e dizer: “ahh”. Paz é esse tipo de “deixar-se cair”. Mas, por favor, não entendam mal o que estou dizendo. Na prática da meditação não se consegue esse tipo de paz sem disciplina e esforço.

A atenção plena é uma aplicação específica e quase excêntrica de esforço. É como construir uma escada. Fazer uma escada requer uma mensuração precisa das tábuas de madeira, para que os degraus sejam corretamente montados. Todos os ângulos precisam ser cuidadosamente medidos e cortados, e os pregos certos têm de ser usados e precisamente inseridos. A escada precisa suportar o peso das pessoas. Podemos perguntar: uma escada para onde? Neste ponto, o destino não importa. Apenas fazer a escada já está bom, sem promessa e sem culpa. Vamos simplificar a situação. Vamos construir essa escada muito direta e simplesmente. Essa é a essência da atenção plena.

A meditação pode ser um processo bastante demandante, mas é uma situação muito alegre porque estamos convictos de que vamos nos ajudar com base no nosso próprio esforço e habilidades. Desse modo, a celebração é o coração da prática de meditação.

No início da prática de meditação, talvez você se veja fazendo várias perguntas. Você pode questionar: “isso vai funcionar?”, “estou empregando a técnica de forma correta?”, “estou cometendo erros?”. À medida que continuamos praticando, nós relaxamos e seguimos o fluxo mais plenamente. Muitas dessas preocupações começam a parecer menos relevantes. A prática fala por si mesma.

Com o passar do tempo, entretanto, podemos descobrir um nível completamente novo de questionamentos. Podemos nos ver criando elaboradas preocupações intelectuais, psicológicas, emocionais ou sociológicas para nós mesmos enquanto meditamos. Pegamo-nos olhando, indagando, nos reclinando, analisando e tentando nos assegurar. Olharemos para muitas dessas reações e como elas podem ser trabalhadas. Contudo, você também pode ser encorajado a suspender essas perguntas, sobretudo quando estiver começando a aprender a prática. Quando você interrompe essas preocupações, sua prática pode ser uma afirmação simples que é direta e intencional.

O ponto básico da atenção plena é essa intencionalidade. Você está, de fato, fazendo alguma coisa. Você está entrando no processo, sem precisar se assegurar de que aquilo que está fazendo está ok. Podemos discutir os aspectos filosóficos e metafísicos mais tarde. Por enquanto, vamos simplesmente começar a fazer amizade com nós mesmos.


Este texto é uma tradução do primeiro capítulo da obra Mindfulness in Action, de Chögyam Trungpa Rinpoche, publicada em inglês pela Shambhala Publications.

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3 Comentários

  1. LENITA TEIXEIRA ALVES disse:

    Muito beneficiada com esta leitura.

  2. Kátia Drummond disse:

    Dadivosamente maravilhoso! Amor e gratidão.
    Kátia (Salvador, Bahia)

  3. Kátia Drummond disse:

    Maravilhoso! Amor e gratidão.
    Kátia (Salvador, Bahia)

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