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Misturando fogo e água: Entrevista com Tulku Urgyen Rinpoche

Tulku Urgyen Rinpoche conversa sobre o Dzogchen com Erik Pema Kunsang


Por
Revisão: Caroline Souza
Tradução: Daniela Chaves e Filippe Ximenes
Entrevista por: Erik Pema Kunsang

Erik Pema Kunsang: Rinpoche, você poderia nos contar sobre sua vida, professores e os retiros que realizou?

Tulku Urgyen: Nasci no leste do Tibete, em Kham, na área chamada Nangchen. O ensinamento do Darma da linhagem da minha família se chama Barom Kagyu. Minha avó era filha de Chokgyur Lingpa, o grande terton, então a linhagem da minha família também pratica os ensinamentos Nyingma. Como eu pertenço tanto à linhagem Kagyu quanto à Nyingma, meu monastério em Boudhanath chama-se Ka-Nying Shedrub Ling, “o local Kagyu e Nyingma para o ensinamento e a prática”.

Desde bem pequeno até os 21 anos, morei com meu pai, que era professor do Vajrayana e praticante tântrico leigo. O nome dele era Tsangsar Chimey Dorje. Meu pai foi meu primeiro professor e dele recebi a transmissão do Kangyur, o conjunto de ensinamentos do Buda, e também do Chokling Tersar, os novos tesouros de Chokgyur Lingpa. Depois, estudei com o irmão mais velho do meu pai, Tulku Samten Gyatso, de quem também recebi, entre outras coisas, a transmissão completa do Chokling Tersar.

Mais tarde, estudei com um mestre incrível chamado Kyungtrul Kargyam e dele recebi todo o Dam-ngak Dzo, além do Chowang Gyatsa, as Cem Iniciações da Prática do Cortar. Ele também me passou a transmissão de leitura dos Cem Mil Tantras Nyingma e do Jangter Gongpa Sangtal, o Tesouro do Norte da Mente de Sabedoria Desimpedida. Especificamente, recebi dele um comentário detalhado e um esclarecimento sobre o importante tesouro de Chokgyur Lingpa conhecido como Lamrim Yeshe Nyingpo, o Caminho Gradual da Essência da Sabedoria.

Desde os oito anos de idade, recebi ensinamentos sobre a natureza da mente de meu próprio pai, e mais tarde tive a sorte de receber instruções detalhadas, na forma de orientação através da experiência pessoal, de Samten Gyatso sobre os ensinamentos do Dzogchen, a Grande Perfeição. Do meu outro tio, Tersey Rinpoche, que era um discípulo próximo do grande siddha Shakya Shri, também tive a sorte de receber ensinamentos sobre Dzogchen.

Além disso, recebi novamente ensinamentos detalhados sobre o Lamrim Yeshe Nyingpo de Jokyab Rinpoche, discípulo de Dru Jamyang Drakpa. Recebi o conjunto  de ensinamentos conhecido como Rinchen Terdzo, o Precioso Tesouro de Termas, de Jamgon Kongtrul, filho do 15º Karmapa. Quanto ao outro dos Cinco Tesouros, recebi o Gyachen Kadzo de meu terceiro tio, Sang-ngak Rinpoche; o Kagyu Ngakdzo do próprio 16º Karmapa; e o Tesouro Sheja Kunkyab de Tana Pemba Rinpoche. Além disso, recebi as iniciações-raiz de Jigmey Lingpa do nosso senhor de refúgio, Dilgo Khyentse Rinpoche, várias vezes.

No Tibete Oriental, passei três anos em retiro apenas recitando os Mani [risos]. Mais tarde, em Tsurphu, sede dos Karmapas, também fiquei três anos em retiro e, novamente, em Sikkim, pude passar quase três anos em prática intensiva. Ultimamente, tenho estado aqui no Nagi Gompa há alguns anos. Essa é a história da minha vida.

 

A que linhagens o Rinpoche pertence?

Tulku Urgyen: A linhagem da minha família é detentora dos ensinamentos Barom Kagyu, que se originaram de um discípulo de Gampopa chamado Barom Dharma Wangchuk. Seu discípulo era Tishi Repa, cujo discípulo se chamava Repa Karpo. Seu discípulo, por sua vez, foi Tsangsar Lumey Dorje. O discípulo dele, Jangchub Shonnu, de Tsangsar, está na minha linhagem ancestral paterna. A linhagem de seu filho e do filho dele, até o meu pai, é chamada Tsangsar Lhai Dung-gyu, a Linhagem Sanguínea Divina de Tsangsar. Minha linhagem de encarnação se chama Chowang Tulku. Com este mesmo nome, sou apenas o segundo. Diz-se que em minha vida passada fui uma encarnação do Guru Chowang. Ele, por sua vez, foi considerado uma emanação de um dos vinte e cinco discípulos de Padmasambava, Nubchen Sangye Yeshe.  Mas quem é que pode saber essas coisas com certeza? [Risos] Minha vida anterior, Chowang Tulku, era um iogue secreto. Ninguém sabia como era sua prática, mas quando ele faleceu, seu corpo encolheu-se até o tamanho de um côvado sem se decompor.

 

O que significa Dzogchen?

Tulku Urgyen: Dzog, perfeição, inclusão ou completitude, significa, como diz esta citação de um tantra: “Incluído em um tudo está incluído na mente. Incluído em dois tudo no samsara e no nirvana está incluído nisto.” Dzog significa que todos os ensinamentos, todos os fenômenos, estão completamente contidos no veículo do Dzogchen; todos os veículos inferiores estão incluídos no Dzogchen. Chen, grande, significa que não há método ou meio superior a este veículo.

 

Qual é a descrição básica da prática de acordo com o caminho do Dzogchen?

Tulku Urgyen: Todos os ensinamentos do Buda estão contidos em nove veículos graduais, dos quais o Dzogchen, a Grande Perfeição, é como o maior ornamento dourado sobre uma torre no telhado, ou a bandeira da vitória no cume de um grande edifício. Todos os oito veículos inferiores estão contidos no nono, chamado Dzogchen em tibetano, ou Mahasandhi em sânscrito, e Grande Perfeição em português. Mas o Dzogchen não está contido no mais baixo, o veículo shravaka. Então, quando dizemos incluído ou completo, significa que todos os yanas inferiores estão incluídos ou completamente contidos na Grande Perfeição – estão dentro do Dzogchen. Geralmente, dizemos que o Dzogchen, às vezes chamado de Ati Yoga, é uma tradição do Darma, mas na verdade ele é o estado básico da nossa mente.

Quando se trata de combinar os dois pontos a seguir na experiência real, podemos usar a afirmação do 3º Karmapa, Rangjung Dorje: “Ele não é existente porque nem os budas o viram.” Isso significa que o estado básico da mente não é algo que existe de maneira concreta; nem os budas dos três tempos jamais o perceberam. “Não é não existente, pois é a base do samsara e do nirvana. Isso não é uma contradição, é o caminho do meio da unidade.” Contradição é como ter fogo e água no mesmo prato. É impossível. Mas esse não é o caso aqui. A natureza básica não é nem existente nem não existente – ambos são uma unidade indivisível. “Que eu possa perceber a natureza da mente livre de extremos.” Normalmente, quando dizemos que “é”, isto é contraditório a “não é”. E quando dizemos não existente, isso contradiz existente. No entanto, esse caminho do meio da unidade é desprovido de tal contradição. Atingir o estado unificado de Vajradhara refere-se a isso, na verdade.

Essa unidade de ser vazio e cognoscente é o estado de mente de todos os seres sencientes. Não há nada de especial nisso. Um praticante deve abarcar isso com um núcleo de cognição. Esse é o caminho da prática. Mais uma vez, a unidade de ser vazio e cognoscente com um núcleo de cognição. A característica especial do Dzogchen é a seguinte: a essência pura primordial é Trekcho, cortar. Essa visão, na verdade, está presente em todos os nove veículos, mas a qualidade especial do Dzogchen é chamada de a natureza espontaneamente presente, Togal, travessia direta. A unidade desses dois, cortar e atravessar diretamente, Trekcho e Togal, é o ensinamento especial ou único do Dzogchen. É assim que o Dzogchen é, basicamente. É isso.

 

O Dzogchen é muito direto e não parece ter uma qualidade linear em termos da maneira como alguém deve abordá-lo. Nos outros yanas, às vezes a pessoa faz primeiro o conjunto de preliminares, depois a prática do yidam e a prática do tsa-lung. Parece que o Dzogchen é muito imediato, a essência já está presente, disponível. Existe algum tipo de caminho linear na forma como alguém deve abordar esses ensinamentos ou é sempre direto?

Tulku Urgyen: Na tradição Dzogchen, temos o sistema gradual, que engloba as preliminares, prática principal e assim por diante. Mas a característica especial do Dzogchen é introduzir ou apontar diretamente o estado nu da cognição, o despertar autoexistente. Isto é para os alunos que são aptos, ou seja, aqueles que têm faculdades mentais afiadas. Em vez de ficar dando muitas voltas, alguém os introduz diretamente à essência de sua mente, à cognição autoexistente.

Diz-se que o Dzogchen tem uma grande vantagem, mas também um grande perigo. Por quê? Porque todos os ensinamentos são última e finalmente resolvidos dentro do sistema do Dzogchen. Isso pode ser dividido em duas partes: resolver os ensinamentos através da compreensão intelectual e da experiência.

Resolver através da experiência é a grande vantagem ou benefício no sentido de que, tendo sido apontada e diretamente reconhecida a cognição nua, você simplesmente toma isso como a parte principal da prática. Esse é o grande benefício, porque é um caminho muito direto e rápido para a iluminação.

Por outro lado, o grande perigo é você simplesmente deixar a cognição nua como um conhecimento intelectual, no sentido de que “no Dzogchen não há nada sobre o que meditar. Não há nada para ver. Não há nada a ser realizado como uma ação.” Isso se torna um conceito niilista e é completamente prejudicial ao progresso, porque o ponto final do ensinamento é a ausência de conceito, é estar para além do pensamento intelectual. No entanto, o que aconteceu é que você criou uma ideia intelectual do Dzogchen e se apegou a ela com muita força. Isso é um erro enorme, mas pode acontecer. Portanto, é muito importante trazer a instrução para a experiência pessoal através da orientação oral de um professor. Caso contrário, simplesmente ter a ideia de que “eu estou meditando em Dzogchen” é ter entendido tudo errado.

O despertar autoexistente está presente no fluxo mental de todos os seres sencientes desde o tempo primordial. Essa presença não deve ficar no nível da teoria, mas ser reconhecida através da experiência. Primeiro reconheça-a, depois treine e desenvolva estabilidade nela. Desse modo, o Dzogchen gera um grande benefício. Na verdade, não há benefício maior. “Um perigo enorme” significa que, quando essa presença permanece como palavras de mero entendimento intelectual, você não ganha experiência, apenas dispõe de um conceito a respeito do assunto, e não possui a qualidade não conceitual. A mente conceitual é meramente teoria, ao passo que permanecer na continuidade da cognição pura, acostumando-se a isso, é chamado de experiência.

É o mesmo princípio em Madhyamika, Mahamudra ou Dzogchen. O Bodhisattvacharya Avatara menciona: “Quando o intelecto não sustenta nem o conceito de concretude nem de inconcretude, esse é o estado de não conceitualização”. Enquanto você não estiver livre de conceitos, a visão permanecerá como mero entendimento intelectual e a visão do Dzogchen será mera teoria. Então, você pode pensar que “o Dzogchen é primordialmente vazio, é livre de base. Não há nada no que meditar, não há necessidade de fazer nada. Se eu meditar de manhã, sou um buda de manhã. Quando reconheço à noite, sou um buda à noite. Aquele que é destinado não precisa nem meditar.” Na verdade, o Dzogchen é o caminho para purificar o véu mais sutil de conhecimento dualista, o véu cognitivo. É realmente incrível. Mas se você apenas o imaginar, se for apenas teoria, se você pensar: “não preciso fazer nada, nem meditar, nem praticar”, você entendeu tudo completamente errado. Muitas pessoas cometeram esse erro no passado.

Entre perder-se em uma versão intelectualizada de Dzogchen ou praticar de acordo com Madhyamika ou Mahamudra, a segunda opção é muito mais benéfica. No Madhyamika ou Mahamudra você se move passo a passo, alternando teoria e experiência dentro da estrutura de teoria, experiência e realização. Prosseguindo gradualmente dessa maneira, fica cada vez mais claro para você o que tem de ser resolvido e, finalmente, você alcança o trono dharmakaya da não meditação. Nesse sistema graduado, existem alguns pontos de referência ao longo dos vários caminhos e níveis. Mas no Dzogchen, o mestre apontará, desde o início, o estado não conceitual, instruindo o aluno a permanecer livre de conceitos. Às vezes acontece que alguns alunos pensam: “estou livre de conceitos, nunca me distraio!”, enquanto andam por aí com o olhar totalmente vagueante. Isto é o que chamamos de se perder no entendimento intelectual.

Mais tarde, quando temos que morrer, a mera teoria não ajuda em nada. Tilopa disse a Naropa: “A teoria é como um remendo. Vai se desgastar e cair.” Depois de morrer, passamos por várias experiências agradáveis e desagradáveis, intenso pânico, medo e terror. A compreensão intelectual não destrói esses medos; ela não consegue diminuir a confusão. Então, generalizações do tipo: “minha essência é desprovida de confusão” são inúteis. São apenas um pensamento, outro conceito, o que é ineficaz no momento da morte, quando se trata de lidar com a confusão.

O que ajudará, então?

Tulku Urgyen: Você precisa reconhecer a visão que é a sua essência. Se você não reconheceu completamente a visão correta, mas apenas a construiu a partir de conceitos, esse entendimento intelectual será inútil. É como saber que há uma refeição deliciosa para comer. Sem colocá-la na boca, não há como conhecer o seu sabor. Da mesma forma, você precisa estar totalmente livre do menor lampejo de dúvida sobre o estado da cognição pura. Sobre ter estabilidade na cognição nua, Jigmey Lingpa falou: “neste momento, não são necessários 100 panditas e suas milhares de explicações”. Você saberá o que é preciso. Mesmo quando questionado por esses estudiosos, você não ficará em dúvida. Portanto, o ponto principal é gerar estabilidade na cognição nua através da experiência.

Essa cognição nua não é introduzida através de um entendimento intelectual, como uma ideia. Quando um mestre qualificado encontra um aluno digno, é como ferro batendo contra uma pederneira e criando fogo imediatamente. Quando duas pessoas assim se encontram, é possível ficar livre de dúvidas. Quando, não importa o quanto tente, você não tem dúvidas, essa é a prova de que reconheceu a essência da mente. Mas se for possível começar a duvidar, pensando: “pergunto-me como é, o que devo fazer?”, essa é a prova de que você tem um mero entendimento intelectual. Essa diferença entre teoria e experiência é o ponto-chave básico para dizer que o Dzogchen apresenta um grande benefício e um grande perigo.

Quando um praticante é apresentado à cognição nua, ele ou ela será capaz de atingir a iluminação naquele mesmo corpo e vida. Isso ocorre porque, no momento do reconhecimento da essência da cognição nua, o véu cognitivo está ausente. Isso é chamado de “tocar a fruição”. A esse respeito, existem três caminhos: tomar o solo como caminho, tomar o caminho como caminho e tomar a fruição como caminho. Receber a instrução direta significa tomar a fruição como caminho. É por isso que ela é tão preciosa. Não deixe que ela se perca em mera teoria.

Diz-se que a experiência é o adorno da cognição nua, presente em todos os seres. Quem tem mente tem essa cognição, pois ela é a essência da mente. A relação entre a mente pensante e a cognição é a seguinte: a mente pensante é como a sombra da mão de alguém, enquanto a cognição é a própria mão. Dessa maneira, não existe um único ser senciente que não tenha cognição básica. Podemos ouvir sobre essa cognição e pensar: “eu entendo, a cognição é assim e assado”. Essa construção mental é totalmente inútil. Desde o início, a ausência de fabricação mental é crucial. Como se diz: “dentro do dharmadhatu nu da não fabricação”. Introduzir a cognição básica significa apontar a ausência de fabricação mental. Caso contrário, torna-se uma introdução ao mero pensamento discursivo. [Risos]

 

Qual é a diferença entre a prática do Dzogchen e a do Anuttara Yoga Tantra no sistema das Novas Escolas, Sarma? Foi ensinado que todos os oito veículos inferiores estão contidos no Dzogchen, então como é que a diferença surge?

Tulku Urgyen: As Novas Escolas têm quatro tantras: Kriya Tantra, Charya Tantra, Yoga Tantra e Anuttara Yoga Tantra. O quarto é dividido em Anuttara Tantra Pai, Mãe e Não Dual. Isso corresponde exatamente à estrutura da Escola Antiga, Nyingma, no sentido de que o tantra pai de Anuttara é Mahayoga, o tantra mãe é Anu Yoga e o tantra não dual é Ati Yoga, Dzogchen. No entanto, não há ensinamentos explícitos sobre Togal em Anuttara. Essa é a principal diferença. Também é ensinado que não há diferença alguma entre Mahamudra da Essência e Dzogchen no significado, apenas na terminologia. Com relação à inclusão dos veículos inferiores nos mais altos, “todos os fenômenos do samsara e do nirvana estão incluídos na expansão da cognição nua”. Esse é o significado de inclusão.

 

Existem muitos tipos de práticas conceituais no Anuttara Yoga, como visualização e manipulação dos nadis e pranas. Como eles se encaixam no sistema do Dzogchen?

Tulku Urgyen: Essas práticas pertencem, na verdade, aos sistemas do Mahayoga e Anu Yoga. Entretanto, no Ati Yoga, que deve ser sem esforço, livre de fixação, essas práticas são aplicadas como um meio de aprimoramento.

 

Onde se originou a tradição de transmitir a instrução direta (à natureza da mente)?

Tulku Urgyen: A primeira origem nós chamamos de transmissão de mente dos conquistadores. Depois dela, houve a transmissão de sinais dos vidyadharas e hoje temos a transmissão oral de grandes mestres. A transmissão de mente dos conquistadores é um aspecto manifesto de Samantabhadra, que aparece em forma corpórea, e os budas das cinco famílias reconhecem darmata ao meramente ver essa forma corpórea. Isso é a transmissão de mente que se dá pela simples manifestação como deidade, sem necessidade de qualquer conversa. Essa transmissão de mente parece ter gradualmente se degenerado. Depois disso, por meio da transmissão de sinais de vidyadharas, mestres como Prahevajra, Shri Singha e Padmasambava reconheceram o estado desperto autoexistente através de um simples gesto, como um dedo apontando para o céu. Finalmente, Padmasambava, os oito vidyadharas indianos, bem como o rei tibetano Trisong Deutsen, Vairotsana, Yeshe Tsogyal e outros deram ensinamentos por meio de palavras. Esta transmissão oral, que vem da Índia e não é uma invenção tibetana, foi originalmente transmitida por um sussurro em um tubo de cobre, como no caso de Vairotsana, em cujo ouvido Shri Singha sussurrou a frase: “a esfera única do dharmakaya, o estado desperto autoexistente, a realidade inconcebível, está presente na mente de todos os seres sencientes.” Transmissão oral significa, literalmente, transmitido no ouvido.

No caso da linhagem Kagyu, Tilopa declarou: “Não tenho mestres humanos. Meu mestre é o próprio Vajradhara.” Vajradhara deu os ensinamentos a Tilopa e Tilopa os transmitiu oralmente a Naropa, que depois os passou a Marpa. Ele os deu a Milarepa que, novamente, passou-os a Gampopa, de quem foram transmitidos oralmente por meio das quatro grandes e oito menores linhagens.

No caso da linhagem Nyingma, Padmasambava, Vimalamitra e Vairotsana transmitiram os ensinamentos, principalmente, como uma transmissão oral aos vinte e cinco discípulos. Aqui, o Dzogchen foi transmitido como o apontar do jogo da cognição nua; não a mera cognição, mas a sua expressão, que é darmata. A partir desse ponto, os vinte e cinco discípulos passaram o ensinamento para oitenta siddhas tibetanos e outros através de linhagens orais e de tesouros, de modo que essa transmissão se mantém ininterrupta até o nosso próprio guru-raiz. Se a linhagem tivesse sido quebrada, não haveria o apontar nem o reconhecimento da cognição nua.

 

 

Por que as instruções diretas à natureza da mente são consideradas tão importantes?

Tulku Urgyen: Isso é autoevidente. A cognição nua não é o caminho verdadeiro para alcançar a iluminação? Não há nada mais importante do que reconhecê-la e se tornar um buda. Se você colocar todas as riquezas do mundo num lado e a instrução direta à cognição nua no outro, essa cognição é mais valiosa para a iluminação.

 

Ter recebido as instruções diretas à natureza da mente e a ter reconhecido é suficiente? Ou como deveríamos treinar?

Tulku Urgyen: Uma vez que tenha recebido as instruções que apontam a natureza da mente você pode reconhecê-la ou não. Mas o estudante que realmente a reconhece já tem o suficiente para sua vida inteira nessa única instrução. O mesmo serve para o estado do bardo. Ainda assim, pode-se aplicar os caminhos do Mahayoga e Anu Yoga para aprimoramento e para superar obstáculos. Uma vez que tenha reconhecido a sua essência, é como o fogo que vai queimar ainda mais intensamente ao receber mais lenha; o fogo nunca diminuirá ao adicionar lenha. Assim, haverá benefício na aplicação dos caminhos do Mahayoga e do Anu Yoga; até mesmo a prática Hinayana é benéfica. 

De acordo com sua habilidade, você pode aplicar aquilo a que se sente inclinado, como se colhesse o mel de muitas flores diferentes. Ou simplesmente cultivar o reconhecimento da cognição nua; isto por si só será suficiente para atingir a iluminação neste corpo e vida. Todas as diferentes práticas de Mahayoga e Anu Yoga, como no sistema do Primeiro Jamgon Kongtrul, têm o objetivo de levar ao atingimento da estabilidade na cognição nua. Além disso, enquanto estiver beneficiando os seres o praticante pode se tornar mais estável na cognição nua. Como já mencionei, as chamas aumentam ao adicionar mais lenha. Tendo reconhecido a sua essência, sustente sua continuidade. Não há nenhum benefício em simplesmente parar em “eu reconheci”.

Você precisa manter a continuidade da cognição nua até que toda confusão e pensamento conceitual cessem. Esta é a medida. Quando não houver mais pensamentos, isso é o suficiente. Não mais é necessária a meditação ou a sustentação da continuidade.

 

Rinpoche, ainda que você tenha um grande monastério em Boudhanath, Kathmandu, eu percebo que você passa a maior parte do tempo no Eremitério Nagi Gompa.

Tulku Urgyen: É dito: “nesta era de degenerescência, carregue o fardo do Darma. Se você não puder, simplesmente se preocupe que os ensinamentos vão morrer”. Eu construí um monastério para reunir os monges apenas como um reflexo do Darma, com a esperança de que eles pratiquem. Se, individualmente, eles de fato praticarão, isso é problema deles. Se eles somente vestirem o manto, cortarem o cabelo e se reunirem em grupo, mesmo que sejam apenas quatro monges, um benfeitor vai se beneficiar por acumular méritos e purificar os véus através do respeito, fé e doações, não importando quão insignificante seja a contribuição ou a fé. Independentemente de os monges se comportarem ou não. Foi por essa razão que fiz o esforço de construir um monastério. Além disso, esta é a era em que o budismo está lentamente morrendo, como o sol se pondo atrás das montanhas no oeste. Combinando isto com o comando do Gyalwang Karmapa, nós construímos esse monastério insignificante.

O Nagi Gompa, inicialmente, foi construído pelo meditante Kharsha Rinpoche como um eremitério para seu séquito de monges e monjas. Depois que ele faleceu, o lugar foi oferecido ao Karmapa, que me designou como cuidador. Portanto, eu, este velho aqui, sou apenas um cuidador [risos]. Essa é a única razão pela qual eu vivo aqui. Não sou nem um pouco como Milarepa, vivendo em retiros em montanhas e cavernas depois de renunciar ao samsara. Mas eu tenho um bom lugar para dormir e um lugar quentinho ao sol [risos]. Assim que eu vivo. 

 

Qual é o objetivo e os benefícios de se fazer retiros?

Tulku Urgyen: Com muitas distrações não é possível praticar o Darma adequadamente. “Distrações” significa muitos negócios, barulhos e afazeres. Em lugares isolados existe menos distração. Essa é a razão para um retiro. Além do mais, se você conseguir manter alguma disciplina, permanecendo em isolamento sem nenhum visitante e sem sair, não haverá outra distração além daquela criada pela sua mente. Distrações externas terão sido eliminadas. Esse é o propósito do isolamento. Quando as distrações são abandonadas você pode se esforçar na prática. Pelo esforço você pode destruir a confusão. Quando a confusão cessa, a iluminação é revelada. Essa é a razão [risos]. 

 

Finalmente mas não menos importante o Rinpoche tem algum conselho especial para os leitores?

Tulku Urgyen: Primeiramente, eles deveriam receber a instrução direta à natureza da mente e reconhecer sua essência. Tendo reconhecido, eles deveriam evitar perder sua continuidade, e então combiná-la com atividades diárias. Existem, basicamente, quatro tipos de ações diárias: andar, sentar, comer e deitar. Nós não apenas sentamos ou apenas andamos, sempre alternamos entre os dois. Além disso, nós comemos, cagamos e dormimos. Então, parece que são cinco tipos [risos]. Mas a todo tempo, em todas as situações, tente não perder a continuidade da prática. Tente associar prática e vida diária. À medida que você for desenvolvendo a familiarização, as atividades diárias irão apenas gerar o progresso da cognição nua e elas próprias se tornarão ornamento desta cognição nua sem distração, para além de obscurecimento e clareza.

Quando puder associar prática com atividades, as atividades serão de benefício e desprovidas de qualquer malefício. Isso acontece quando você já reconheceu sua essência corretamente. Sem o reconhecimento correto, você será levado pelas atividades diárias e não terá nenhuma estabilidade. A ausência de estabilidade é como cabelos ao vento, movendo-se de acordo com as correntes. Uma agulha permanece estável no vento, não importa quão pequena ela seja. Uma vez que você tenha reconhecido sua essência, não mais será carregado pelas atividades diárias. A mente dualística é completamente instável, como um mecha de cabelo prestes a se mover à menor brisa. Ela se torna uma presa dos objetos dos cinco sentidos externos. A cognição nua, por outro lado, quando adequadamente reconhecida, nunca é subjugada pelos objetos dos sentidos. É como uma agulha imovível pelo vento.


A entrevista com Tulku Urgyen Rinpoche foi gravada no 16º dia de dezembro, em 1985, no Nagi Gompa, nos arredores de Kathmandu. Quando o Rinpoche foi questionado se poderia conceder uma entrevista ao Vajradhatu Sun (Boulder, Colorado, EUA), sua resposta foi: “Para que serve a minúscula luz de um vaga-lume quando o sol já se levantou no céu?”, referindo-se à presença do Chogyam Trungpa Rinpoche no Ocidente.


Entrevista e tradução do tibetano para o inglês por Erik Pema Kunsang. Entrevista originalmente publicada no site da Levekunst.

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1 Comentário

  1. Armando Silva disse:

    Grandes homens sempre tiveram outros maiores para aprender.

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