Ven. Karma Lekshe Tsomo pede o fim do status inferior atribuído às monjas e mulheres budistas em geral
Nosso carinho e agradecimento à Lion’s Roar por ter nos autorizado a traduzir e publicar este texto de crucial importância para o nosso tempo.
É difícil entender a desigualdade entre os gêneros numa tradição que supostamente apregoa a iluminação para todos. Quando questionado por seu fiel atendente Ananda, o Buda garantiu que as mulheres têm o mesmo potencial de realizar os frutos do caminho, incluindo a liberação, a realização última. Essa afirmação definitiva deveria ser suficiente para abrir o caminho à igualdade das mulheres, mas as realidades sociais raramente correspondem aos ideais teóricos.
Ainda que inúmeras mulheres tenham supostamente atingido o objetivo último da liberação — tornando-se arhats — o status das mulheres constantemente tem sido subalterno em sociedades budistas. Ter nascido homem automaticamente eleva o garoto a um status superior, enquanto ter nascido mulher universalmente relega a garota a um status de segunda classe. Riqueza, nascimento aristocrático ou um casamento oportuno podem amenizar as circunstâncias, mas o padrão geral do status social ainda é muito forte. Embora as sociedades budistas tenham sido, geralmente, mais igualitárias entre os gêneros que muitas outras, uma severa discriminação de gênero persiste até hoje.
Em nenhum lugar a subordinação das mulheres é mais evidente que na sanga budista, a comunidade monástica. Após certa hesitação, possivelmente baseando-se em sua preocupação com a segurança das mulheres, o Buda deu a elas a oportunidade de ter um estilo de vida renunciante. De acordo com a história, entretanto, isso não ocorreu nos mesmos termos dos monges. Ensina-se que a mãe adotiva do Buda, Mahapajapati, que se tornou a primeira bhikkhuni, ou seja, monja plenamente ordenada, foi obrigada a observar oito duras regras que continuam, até hoje, tornando as monjas dependentes dos monges.
Ainda que a linguagem dos textos demonstre que essas passagens foram incluídas bem mais tarde, o status subalterno das monjas, assim como a previsão de que a admissão delas diminuiria o tempo de vida dos ensinamentos do Buda, contribuíram para uma percepção de inferioridade das mulheres. Os ensinamentos ultrapassaram muito essa previsão (que foi ajustada ao longo do tempo!), mas o equívoco persiste.
A situação atual das monjas varia de acordo com a tradição. Nas tradições Theravada do sul e do sudeste asiático, a linhagem de ordenação completa das mulheres terminou por volta do século XI, e muitos praticantes acreditam que ela não pode ser recuperada. As mulheres que renunciam à vida em família seguem oito, nove ou dez preceitos, incluindo o celibato, e mesmo assim não são consideradas parte da sanga monástica. Até bem pouco tempo atrás, elas recebiam muito menos educação e apoio que os monges.
Nas tradições Mahayana do leste asiático, a linhagem bhikkhuni de ordenação completa foi levada do Sri Lanka para a China no século V e cresce hoje na China, Coreia, Taiwan, Vietnã e na diáspora chinesa. Nessas tradições, as monjas recebem muito suporte da comunidade leiga e têm praticamente as mesmas oportunidades de educação que os monges.
A linhagem bhikkhuni nunca foi estabelecida na tradição Vajrayana da Ásia Central, mas as mulheres podem ser ordenadas noviças pelos monges e são consideradas parte da sanga monástica. Nas três últimas décadas, as monjas se esforçaram muito para melhorar suas condições de vida e oportunidades de estudo. Muitas delas esperam que o Dalai Lama encontre uma forma de criar uma linhagem de ordenação completa para mulheres na tradição tibetana.
As ideias sobre como reparar o desequilíbrio entre gêneros, tanto na comunidade monástica quanto na leiga, podem variar muito, dependendo da situação. Para as mulheres budistas das regiões mais remotas da Ásia, uma melhor nutrição, educação e cuidados com a saúde são as prioridades máximas, enquanto nas áreas urbanas a preocupação é com a paridade de gêneros no mercado de trabalho, na família e na prática. Em todos os lugares, as mulheres são oprimidas pelo assédio sexual e pela representação desigual.
Muitos budistas sentem que é hora de lançar um novo olhar sobre a forma como os textos e ensinamentos budistas abordam o gênero. Com a declaração do Buda de que as mulheres têm o mesmo potencial para a liberação, as coisas já começaram bem. Após a sua morte, no entanto, os padrões de dominação masculina voltaram a ser a norma nas sociedades budistas. A questão complicou aproximadamente cinco séculos depois da morte do Buda, com o surgimento dos textos da Perfeição da Sabedoria (Prajnaparamita). Esses textos substituem a liberação da existência cíclica pelo perfeito despertar de um buda como o objetivo do caminho — um salto quântico no compromisso, que exige que o aspirante (bodisatva) acumule méritos e sabedoria por três incontáveis éons.
Dentre as 32 “marcas especiais” de um buda, a mais surpreendente para muitos budistas modernos é um pênis coberto com uma bainha “como o de um cavalo”. Essa marca tem levado a crer que um buda totalmente desperto é necessariamente um homem. A exata vantagem de um apêndice como este não está clara, sobretudo ao lado de outras marcas fantásticas, como uma espiral entre as sobrancelhas que se estende por legiões.
Seriam os budas representados com genitais masculinas por serem os homens presumivelmente superiores às mulheres? Será que essa marca demonstra que os budas são seres sexuais que sublimaram o desejo sexual? Seriam os homens mais aptos que as mulheres a alcançar o estado totalmente desperto por terem de se esforçar mais para superar o desejo sexual? Ou seria a presunção da masculinidade simplesmente mais uma manobra do patriarcado para manter sua superioridade?
Além de rever os textos e ensinamentos budistas, é hora de reexaminar as instituições, que são em sua grande maioria lideradas por homens, e reconsiderar as realidades sociais budistas. Em vez de acreditar cegamente na crença de que todos são iguais no Budismo, ou ingenuamente acreditar que o gênero é irrelevante para o despertar, os budistas precisam reavaliar a forma pela qual as mulheres são tratadas.
Ainda hoje na tradição tibetana, por exemplo, um menino de três anos de idade pode receber o título de “Lama” (que significa “guru”), enquanto uma monja de 70 anos altamente instruída recebe, tipicamente, o título de “Ani” (que significa “tia”). As doações — mesmo feitas por mulheres e ainda que de sociedades ocidentais supostamente esclarecidas — normalmente são encaminhadas, sobretudo, aos professores homens e aos monastérios masculinos. As atitudes discriminatórias se tornaram inconscientemente internalizadas pelas pessoas de tal forma que prejudicam tanto as outras quanto elas próprias.
Os budistas, hoje, precisam acordar para esse fato e transformar suas tendências habituais, igualmente abraçando todos os seres com compaixão. Nas tradições budistas, a principal preocupação das mulheres, especialmente as monjas, é despertar — seja no sentido de alcançar a liberação da existência cíclica ou no sentido do despertar perfeito de um buda. O fato de as mulheres estarem se esforçando para obter total representação nas tradições budistas e expressando abertamente suas aspirações reflete sua preocupação compassiva com o bem-estar de todos os seres sencientes.
* Texto originalmente publicado na edição de novembro de 2019 da revista Lion’s Roar. Para ler o original em inglês, acesse: https://www.lionsroar.com/women-are-not-second-class-buddhists/
SOBRE A VEN. KARMA LEKSHE TSOMO
Ven. Karma Lekshe Tsomo é uma monja budista e professora de estudos budistas na Universidade de San Diego. Ela é uma das fundadoras da Associação Internacional Sakyadhita de Mulheres Budistas e é diretora da Fundação Jamyang, que apoia programas educacionais para mulheres e garotas budistas. Ven. Karma Lekshe Tsomo esteve no Brasil e ofereceu ensinamentos no CEBB em 2016 e 2018.
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