Foto de: Website Gomde Ucrânia

Nosso solo é a virtude

Entrevista com o grande mestre Chökyi Nyima Rinpoche em Bodhgaya, na Índia, onde o Buda se iluminou


Por
Revisão: Dirlene Ribeiro Martins
Tradução: Caroline Souza
Entrevista por: Caroline Souza

Há 2600 anos, em Bodhgaya, na Índia, um príncipe abandonou seu palácio e sentou-se por sete semanas. No final desse período, ele atingiu o que nenhum outro ser humano jamais havia atingido: a suprema realização, a sabedoria primordial para além de existência e não existência. Suas primeiras palavras ao levantar-se foram: “O que eu descobri é profundo e pacífico, é livre de complexidades, é luminoso e não composto”.

Alguns dias atrás, sentados nesse mesmo lugar – ao lado da árvore Bodhi e do enorme monumento que foi erguido – recebemos as bênçãos dos ensinamentos de Buda de um dos grandes mestres da atualidade, Chökyi Nyima Rinpoche. Cercados por dezenas de monges em ininterruptas prostrações, por peregrinos de diversas partes do globo circuambulando o templo Mahabodhi, por mestres e praticantes de todas as tradições budistas, tomamos o supremo refúgio no Buda, no Darma e na Sanga e recebemos os votos de Bodisatva – os votos de conduzir todos os seres à liberação.

De 21 a 25 de outubro de 2019, Chökyi Nyima Rinpoche ofereceu ensinamentos a um grupo formado por alunos de universidades dos Estados Unidos e praticantes de diferentes países. Filho da grande praticante Kunsang Dechen e de um dos maiores mestres tibetanos do século passado, Tulku Urgyen Rinpoche, Chökyi Nyima foi reconhecido aos 18 meses de idade como a encarnação de Gar Drubchen, uma emanação de Nagarjuna. Logo em seguida, foi entronizado no monastério do seu predecessor e, nos anos posteriores, estudou sob a orientação de professores como o 16º Gyalwang Karmapa, Dilgo Khyentse Rinpoche e o seu próprio pai, Tulku Urgyen Rinpoche. Mestre das tradições Kagyu e Nyingma, ele atualmente reside em Kathmandu, onde dirige o monastério Shedrub Ling e o Instituto Rangjung Yeshe, e viaja pelo mundo oferecendo ensinamentos.

Seu nome significa “Sol do Darma”. De fato, na sua presença somos testemunhas de sua abundante generosidade, de um mestre que faz mais oferendas do que recebe. Seu calor é imediato: de longe escutamos sua risada enquanto sobe as escadas do templo, e ficamos todos enternecidos, de coração aceso.

Caroline Souza, da equipe da Bodisatva, teve a felicidade de participar desse ciclo de ensinamentos em Bodhgaya e, pela primeira vez desde o surgimento da nossa revista, realizamos uma entrevista exclusiva com Chökyi Nyima Rinpoche. Leia o texto na íntegra logo abaixo!


Bodisatva: Para a maioria dos ocidentais, a iluminação é algo muito abstrato e difícil de conceber, pois não faz parte da nossa cultura. Além disso, o niilismo e o materialismo são duas visões bastante enraizadas na cultura ocidental. Como podemos tornar a iluminação algo mais próximo e real, para que possamos genuinamente aspirar a ela?

Chökyi Nyima Rinpoche: Iluminação é uma palavra muito bonita. É verdade: nosso principal objetivo é atingir a iluminação. Mas iluminação é fruição. A fruição se baseia na semente. A semente se baseia na fundação. Assim, o primeiro passo para todas as pessoas que adentram o budismo é manter a atenção e realmente aplicar os ensinamentos do Buda de forma correta, genuína e perfeita. O primeiro passo é shila; panca-shila. O primeiro passo é abandonar as dez ações não virtuosas. Sem isso, não há solo! Como podemos esperar alcançar a fruição? É ridículo. Precisamos ser bem realistas. Isto é o mais importante. Mais do que qualquer outra coisa: shamata, vipassana, prática de deidade, mantra, natureza da mente, isso ou aquilo… sem essa fundação de shila, tudo isso é pura piada. Isto é o número um.

Número dois: realmente precisamos nos manter atentos e respeitar o Buda, o Darma e a Sanga. Precisamos respeitar até mesmo o nome do Buda. “Bar buda”: que coisa feia! Budas não bebem nada, nem mesmo uma gota! Como assim, “Bar buda”?

Segundo: o Buda está vivo, os ensinamentos estão vivos. Então, precisamos estudar com cuidado. Devemos respeitar os textos do Darma. Devemos respeitar aqueles que realmente praticam de forma genuína: monges, monjas – e mesmo praticantes leigos, quando se trata de praticantes genuínos. Precisamos respeitá-los. Sobretudo os monges ordenados, eles são a nossa fonte de sabedoria. Nos monastérios, os monges estudam muito, praticam muito. Eles mantêm a ética. É como a água: há uma fonte. Se a água é boa, a fonte é limpa. Se a água é poluída, a fonte é contaminada. Mesmo no caso de estátuas do Buda, precisamos respeitá-las integralmente. Não devíamos colocá-las em todo lugar, usando-as como decoração. Que outra religião faz isso?

Portanto, nós, budistas, precisamos dedicar muito tempo a essa fundação, a esse solo. Devemos pensar em termos de passos: um, dois, três, em vez de querer ir direto ao Mahamudra, Dzogchen, Iluminação. Estamos falando de algo tão elevado sem ter qualquer fundação! Penso que nosso dever, de fato, é estudarmos bem, praticarmos bem, praticarmos virtude, e construir a partir do solo. Não se pode construir uma casa no espaço aberto. É impossível. Por melhor que seja a tecnologia, não podemos construir uma casa no céu. A terra é fundamental. Além disso, os ensinamentos falam claramente: shila é a primeira coisa! Eles não dizem que é samadhi, mas shila! E depois samadhi, e depois prajna.

Bodisatva: Nos ensinamentos, o Rinpoche mencionou que, enquanto seres sencientes, somos todos prisioneiros. Entretanto, para muitas pessoas que desfrutam de uma vida confortável, com um bom emprego e liberdades relativas, é difícil sentir-se dessa forma. O que você poderia dizer para nos ajudar a entender por que nós somos prisioneiros. Como podemos tornar isso algo vivo?

Chökyi Nyima Rinpoche: Medo. Não há ninguém que não tenha medo. Por mais rica ou famosa que seja a pessoa, essas coisas são temporárias. Se você está gravemente doente, dinheiro não pode comprar saúde. Algumas doenças têm cura, outras não. Pessoas ricas não são capazes de se curar pelo poder do dinheiro ou da fama. É apenas um “hahaha” temporário. E aí tudo acaba. Ilusão. Delusão. Todos os seres sencientes morrem. Esperança é sofrimento. Medo é sofrimento. Tentação é sofrimento. Aqui, estamos falando de um tipo muito sutil de sofrimento. Não se trata das coisas em si, confortáveis ou não. Isso não é importante. É a mente!

Mas somente aqueles que aceitam isso, que pensam muito sobre isso, podem vir a entender. Entretanto, ninguém quer olhar para isso. Quem quer falar sobre a morte? A morte está chegando. Não podemos negar. Todos temos a mesma jornada. Até mesmo o tempo é limitado. Qual ser humano que chega aos duzentos anos? Nossa vida é limitada. Se dizemos em uma revista que nós vamos morrer, as pessoas ficam chocadas, indagam por que escrever uma coisa dessas! Elas querem ouvir somente coisas boas. Mas, honestamente, somos todos zeladores, não é mesmo? Zeladores deste nosso corpo. Somos escravos do nosso corpo, riqueza, casa, banheiro, tudo. Somos zeladores. Somos escravos. Somos guardas. Por um tempo limitado.

Bodisatva: Atualmente, técnicas de meditação têm se espalhado por todos os lugares como uma ferramenta para aumentar a produtividade, a autoestima, o sucesso profissional. Mindfulness está sendo ensinada nas empresas, e mesmo no Exército. Mas, na maioria desses casos, há apenas a técnica sem a visão. O que o Rinpoche pensa dessa tendência?

Chökyi Nyima Rinpoche: Uma religião, ou o Darma, tem uma estrutura, uma completude; é como um pacote. Se o pacote é bem cuidado, a completude é mantida. Mas se tiramos uma parte, duas partes, o que acontece? Causará danos ou benefícios? Depende de como o fazemos.

Mindfulness – atenção plena – é algo muito importante nos ensinamentos budistas. Mas qual é a função de mindfulness neste contexto? Tem a ver com o primeiro passo do caminho: se você está atento, está evitando as dez ações não virtuosas. Se você está atento – mindful –, está  exercendo as dez ações virtuosas. Mindfulness torna a mente calma. Mindfulness traz realização. É este o seu papel.

Mas todos nós temos mindfulness. Fazemos uso da atenção plena a todo momento. Não precisamos do termo mindfulness. Sem atenção, nada funciona. Não podemos nem tomar uma xícara de chá.

Se quero beber uma xícara de chá, não posso trazê-la para a minha orelha ou para a testa. Preciso trazê-la à minha boca. Isto não é algo que aprendemos. É natural. Porque eu sei que há chá ou água na xícara, que não está quente, não está frio… Para onde preciso trazer a xícara? Aqui? Errado. Aqui? Errado, também. (Rinpoche ergue sua xícara e a traz para a orelha, depois para a testa.)

Por que estamos falando tanto sobre mindfulness? Sem mindfulness, não podemos nem aprender. Nem escrever. Mas as pessoas acham que isto é algo novo, algo muito excitante. Mas você está certa, há muito desta discussão atualmente: o Exército aprendendo meditação, mindfulness. A pergunta é: para quê? A resposta é que, se eles estão aprendendo meditação para acalmar a mente, isso é muito bom. Se o objetivo é tornar a mente o mais tranquila e compassiva possível, ótimo. Porém, eles estão aprendendo meditação e mindfulness para atirar bem, para acertar o alvo, para caçar?

Tulku Urgyen Rinpoche e Chökyi Nyima Rinpoche. Nagi Gompa. Por volta de 1989 | Foto de: www.shedrub.org

Bodisatva: Em uma cultura cujas religiões predominantes falam de um deus todo-poderoso, para quem rezamos por proteção como se ele fosse uma mãe ou um pai, às vezes as pessoas têm dificuldade em entender o sentido genuíno do refúgio no Buda, no Darma e na Sanga. O Rinpoche poderia falar sobre o que esse refúgio realmente significa?

Chökyi Nyima Rinpoche: Antes de tomar refúgio, você precisa estudar o que o refúgio significa no budismo, assim como estuda o que o batismo significa no cristianismo. Então, do que se trata isso? É preciso que seja explicado, é preciso que aprendamos.

No budismo, no nível das palavras, dizemos: “Tomo refúgio no Buda, no Darma e na Sanga”. Mas o que é isto? Quem irá proteger? O Darma – não é o Buda, não é a Sanga. E como o Darma pode proteger? Apenas pelo estudo? Não. Apenas pela devoção? Não. Aplique!

É muito claro, muito lógico. Não é apenas balbuciar certas palavras, e alguém vai me proteger. É muito visível. Você deve aplicá-lo. É como um remédio: se você tem dor de cabeça, toma um remédio, fica curado. Mas se você não toma o remédio, não alcança a cura. Não é mesmo?

Portanto, você se cura. Cura-se como? Tomando refúgio.

Bodisatva: Por todo o mundo, e especialmente no Brasil, estamos nos defrontando com inúmeras catástrofes ambientais. Enormes incêndios na Amazônia, vazamentos de óleo no oceano, que contaminaram muitas praias do Nordeste brasileiro, além de vários outros acidentes e tragédias que acontecem quase semanalmente. Como o Darma pode nos ajudar a lidar com esses desafios ambientais? O que o budismo pode nos oferecer neste momento pelo qual estamos passando?

Chökyi Nyima Rinpoche: Problemas ambientais não são coisas simples. Este é um problema global, muito sério, muito perigoso. Todo ano, todo mês, todo dia, todo instante, em todos os lugares. Falando de forma geral, a Terra está poluída, a água está poluída, o ar está poluído, em quase todo o globo. Podemos dizer que este país está mal, que há muita poluição aqui. Mas ela se move. A poluição se movimenta. Como? No Japão, alguns anos atrás, a explosão das bombas nucleares acarretou muitos danos. E foram encontrados fragmentos dessa catástrofe na Califórnia! Como é possível? Do outro lado do planeta! O mesmo acontece com a poluição.

E há muitos perigos colaterais. Trata-se de uma ameaça global. Além da questão ambiental, quantas bombas temos neste mundo atualmente? Nucleares, atômicas… Quantas destas nós conhecemos? Quantas nem chegam ao nosso conhecimento? Onde elas estão? Como estão sendo mantidas? Por quem? Quanta tristeza tudo isso! Não há palavras para o tamanho dessa tristeza! Se acontecer um acidente no Japão, talvez os danos ressoem na Índia, Paquistão, Rússia… Isto é algo extremamente perigoso. Há dois perigos: um deles é o tiro proposital, a explosão. Ninguém quer ter seu corpo explodido por uma bomba.

Esta questão dos óleos que você mencionou – não estou por dentro desse acontecimento: foi um acidente, foi proposital? E também os incêndios na Amazônia: ouço alguns dizerem que foi acidente, outros dizem que foi proposital. Se foi proposital, as pessoas que fizeram isso atingem um resultado, têm algum benefício. Prejudicam alguns, beneficiam outros…

Bodisatva: Muito obrigada, Rinpoche!


Para saber mais e apoiar o Rangjung Yeshe Institute, uma instituição de estudos avançados em filosofia e prática budistas aberta a estudantes do mundo inteiro, acesse: ryi.org/get-involved/giving

Para saber mais e apoiar a rede de monastérios e centros de Darma orientados por Chökyi Nyima Rinpoche, acesse: shedrub.org/contribute/

Além das contribuições financeiras, você pode apoiar os diferentes centros de Darma oferecendo suas habilidades e tempo em programas de voluntariado.


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1 Comentário

  1. Leonardo Lima disse:

    Muito obrigado por publicar essa entrevista.
    Foi muito importante ser lembrado da importância dessa base, desse solo de Shila.

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