O caminho budista – Parte 1

Ensinamentos da palestra de abertura do ano


Por
Revisão: Guilherme Erhardt
Edição: Elise Bozzetto
Transcrição: Cláudia Laux, Elise Bozzetto, Guta Teixeira, Mariana Luz e Mariana Martins Molinari

No dia 1º de janeiro de 2023, durante a programação da 23ª edição do 108 Horas de Paz, aconteceu a tradicional palestra de abertura do ano do nosso querido mestre Lama Padma Samten. Parte do ensinamento está transcrita neste texto.


Eu não queria perder a oportunidade de começar o ano falando sobre o Darma. Quando as pessoas se aproximam do centro de Darma, especialmente como o nosso, com uma disciplina, digamos, estrita, como vocês têm visto, muitas vezes não entendem. Eu queria falar um pouco sobre como essa desorganização tem uma organização. Essa é a questão a ser olhada com muita profundidade. 

Então eu acho que não é muito fácil mesmo a gente entender isso, pois no Budismo, é como se a gente andasse por trechos. Cada trecho tem como que uma verdade completa que parece que é a verdade última. E não é.  Esse é o problema.

Então a gente vai andando, depois aquilo muda. Não é muito fácil mas, por outro lado, acho interessante que a gente consiga olhar os vários trechos do caminho que resultam um no outro porque eventualmente, se a gente não entende isso, a gente fica uma vida inteira fixado naquela verdade. E não consegue ultrapassar: fica preso naquilo. 

No budismo a gente vai indo para aquela verdade, e nos maravilhamos. E aí se consegue ver adiante, e passar para outra. Daí pensamos: essa é mesma. Mas essa gera outra, que gera outra. Buda levou 3 éons para cumprir uma etapa, pessoal. Ele vai explicar no Sutra do Diamante sobre os méritos que ele obteve por um tempo muito longo servindo a muitos budas e mestres, porém ele estava com uma visão de um certo tipo. “Esse ensinamento do Prajnaparamita, Vajracchedika, se a pessoa entender um verso disso, ela ultrapassará todo o período anterior que eu vivi, em que servi, e em que fiz muitos méritos, muitas ações positivas e benignas”. Aí a pessoa salta [longe]. Não tem nem comparação possível entre essa outra etapa e a minha etapa anterior”. 

O Buda não cita outros seres. Ele cita a ele mesmo. Esse é um ponto super importante, que precisaríamos entender: o fato de haver trechos. Agora, se ele não cumprisse aquela etapa anterior, também não conseguiria cumprir as etapas subsequentes. Quando queremos olhar de forma concisa, compacta, o melhor é entendermos os ensinamentos que são apresentados de forma muito compacta, por Garab Dorje para Manjushrimitra. Ele vai descrever Visão, Meditação e Ação. Descreverá assim. Então o caminho inteiro é Visão, Meditação e Ação.  Aí ficou compacto demais, não? Já não entendemos a profundidade que isso possa ter. Pode-se até ficar decepcionado: “Então o ensinamento é isso? Visão, Meditação e Ação? Ah, está certo”.

Esse aspecto de Visão está ligado ao reconhecimento da natureza primordial, e quando estamos dentro da perspectiva comum da realidade, dizemos que se trata de nossa própria natureza. “Por que chamaríamos de nossa própria natureza?” Porque estamos separados, nos sentindo como identidades separadas do mundo, dos outros seres. O melhor que podemos ver é quando percebemos que está inseparável de nossa própria natureza. Ou seja, isso está em nós. Não é algo separado. 

O sentido de “isso está em nós” vai avançando depois. Vamos reconhecer esse aspecto interno como um aspecto muito amplo, infinitamente amplo. E não como algo que pertença a alguma identidade. Mas como estamos avançando por dentro de mundos estreitos, vemos o que pode ser visto. Essa é a razão pela qual precisamos girar a Roda do Darma. 

Esse giro é como se pegássemos os mesmos ensinamentos e passássemos de novo e de novo. Na medida em que ouvimos os ensinamentos e avançamos um tanto, nós mudamos. E, ao mudar, vemos os mesmos ensinamentos de um modo muito mais profundo. Essa profundidade da visão permite que repassemos novamente e vejamos tudo de forma mais e mais profunda. Tal aspecto de aprofundar é interessante porque ele tem um fim e ao mesmo tempo não o tem. Essas coisas budistas são um pouco estranhas.

Isso tem um fim porque não há nada mais profundo do que uma certa visão que vamos desenvolver. E isso não tem um fim porque o Samsara se expande. Estamos então constantemente criando outras realidades, e estas também precisam ser examinadas desde a visão última.

O sentido de “isso está em nós” vai avançando depois. Vamos reconhecer esse aspecto interno como um aspecto muito amplo, infinitamente amplo. E não como algo que pertença a alguma identidade. Mas como estamos avançando por dentro de mundos estreitos, vemos o que pode ser visto. Essa é a razão pela qual precisamos girar a Roda do Darma.

No Zen, especialmente, se diz que ainda que a iluminação seja completa, ela aumenta sempre. O que é um pouco estranho, não? Por exemplo, os mestres do passado nunca tinham ouvido sobre a ciência, tecnologia, nem sobre a filosofia ocidental, ou a psicologia, etc. Então eles precisariam ver isso: entender, iluminar todos esses aspectos que a mente do samsara foi criando posteriormente. As visões cósmicas, cosmológicas, de surgimento do mundo, etc precisariam ser visitadas pelo olhar dos próprios Budas. 

O Buda não falou sobre o Big Bang, por exemplo. Nem sobre as leis de Newton, ou sobre a gravitação universal, sobre a psicologia freudiana, e nem sobre a filosofia grega, nem todos os filósofos subsequentes. Ele não falou sobre o paradigma econômico, nem sobre a crise ambiental, porque ele não presenciou isso. A questão não se colocava. É nesse sentido que a iluminação aumenta sempre. Por outro lado, no Zen também se diz que os alunos colocam os pés sobre os ombros de seus mestres e vão adiante deles. É nesse mesmo sentido. Ou seja, o mundo que eles visitam é o mundo que seus mestres não viram pela constante expansão do samsara. O mundo das aparências está em constante expansão, porém o aspecto iluminado não muda.

 

A lucidez da mente e o reino do desejo

O aspecto lúcido da mente que é capaz de abrir todas as realidades e descortinar, entender e remover o sofrimento inerente às múltiplas aparências, não muda. Esse método é o mesmo do Buda, e de todos os Budas que vieram antes do Buda Sakyamuni. O mesmo de Garab Dorje, de Manjushrimitra. de Vajrasattva, de Samantabhadra, de Kuntuzangpo.  Ele é o mesmo, idêntico, porque não tem palavras, nem formulação. Ele tem uma lucidez atemporal, não surgida, incessantemente presente e operando incessantemente conosco. 

Quando isso é falado, é falado mas pode ser explicado e apresentado de forma completamente clara. Existem todos os ensinamentos que explicam cada palavra, cada significado do que estou mostrando aqui. Se eu for entrar nisso, perderemos o trecho curto, perderemos o mapa. Então hoje vou falar do mapa. Não falarei dos detalhes. Nesse ponto, nos encontramos dentro de alguma coisa cósmica, muito ampla. Como hoje é o primeiro do ano, vou falar como é mesmo. Depois é fácil enganar durante o ano… 

A tradição budista é como se não tivesse comparação. É incomparável. Ela não é uma formulação. Trata-se da dissolução das formulações. Quando estas surgem, incluindo ciência, múltiplas tradições, todas as tradições dos povos antigos e todas as religiões surgidas de todos lados, bem como todas as visões filosóficas, baseiam-se em um conjunto de pressupostos que surgem de modo intuitivo para seus fundadores. Já a visão budista é uma visão que vem da experiência do Buda nesses três éons e de sua última vida: de entrar em todos os estados parciais e condicionados dos seres. Ele entrou em tudo. No Tapussa Sutta vocês verão a descrição disso. 

Trata-se de um ensinamento do Buda. Ele fala para um leigo. Poderia falar para os monges, mas não. Vem um leigo e começa a dizer: “Eu sou feliz. Estou bem no que faço aqui”. Aí o Buda vai explicar esse contexto muito amplo. Mostra como se vive no reino do desejo. Nós não temos ideia do que seja esse mundo em que estamos imersos, o mundo dos desejos. Para nós, tudo que fazemos é completamente natural. 

A tradição budista é como se não tivesse comparação. É incomparável. Ela não é uma formulação. Trata-se da dissolução das formulações. Quando estas surgem, incluindo ciência, múltiplas tradições, todas as tradições dos povos antigos e todas as religiões surgidas de todos lados, bem como todas as visões filosóficas, baseiam-se em um conjunto de pressupostos que surgem de modo intuitivo para seus fundadores. Já a visão budista é uma visão que vem da experiência do Buda nesses três éons e de sua última vida.

Mover-se porque gosta disso, não se mover porque não gosta daquilo. Sair daqui porque não aguentamos mais e agora queremos nem sei bem o que. Não sei se conhecem esse diálogo do interno e do externo…Então, precisamos de recursos para poder fazer isso, precisamos daquilo… Estamos sempre  indo de um lugar para o outro. Esse é o mundo do desejo. 

O Buda o clarificou em seus vários estratos. Há seres no mundo do desejo fixados na raiva. Eles têm a mesma mente, identicamente, que todos os seres. Mas estão sendo movidos por raiva, por exclusão. Aquele mundo não é interessante. É um mundo de sofrimento, de medos. Por isso essas pessoas se armam e agridem: por medo. As pessoas que estão no meio do mundo da raiva diremos que estão no mundo dos infernos. Trata-se de um mundo artificial; ele não é verdadeiro. Nem aquelas pessoas são aquilo. Eles pensam assim, mas não o são. Sua natureza é livre. Não viveram sempre daquele modo. Em um certo momento migraram para isso. E, inevitavelmente, por mais raiva que tenham, terão a frustração de, em um certo momento, não ter mais raiva. Terão uma sensação de morte por não sentirem mais raiva: “Onde estão minhas raivas?”. Eles mudarão. 

Nós também. Podemos ter uma dimensão amorosa, mas se não a cuidarmos, em um momento ela resvalará em direção à raiva. Não sei se já perceberam alguma coisa assim. Todos nós temos essa fragilidade. O Buda descreve isso que pertence inteiramente  ao mundo do desejo. Estamos aspirando coisas: as pessoas se reúnem para obtê-las.

Há os seres que se reúnem, não por raiva, mas por uma sensação de carência. Constituem uma vastidão. Há uma vastidão de seres que nem se movem. Tentam ficar assim parados: esse é seu ideal. 

Temos agora no Caminho do Meio quatro cachorrinhos, pois acolhemos sua mamãe. Ela veio, fez prostração à entrada do templo. Pensei: “Isso é um praticante de outras vidas”. Eu me enganei. Não era uma praticante. Foi acolhida, uma cachorra super doce. 

Agora lá estão os quatro, chegam a dormir com a barriga para cima. Gordões. Estão super bem. Mas isso pertence ao que é chamado reino dos animais: seu ideal é dormir com as patinhas viradas para cima, com a barriga bem cheia. Então, há seres cujo ideal é esse. 

Há também os seres, propriamente humanos, que têm uma dimensão de amor e compaixão: nós. Que se movem constantemente para proteger uns aos outros, e se articulam, e fazem boas coisas juntos, e pensam em boas coisas adiante. Constroem  mundos que vão perpetuando a situação dos filhos e de suas boas ideias, dos bons métodos que vão descobrindo. Esse é um reino humano, onde o Buda surge com o corpo dentro desse mundo, especificamente. Por isso estamos nós aqui.

Mas o Buda descreve a diferença entre esse mundo humano, o mundo dos infernos, dos seres que estão com raiva, e dos seres humanos, que não se movem pela raiva. Esse não é o ponto central nem a força deles. Os seres humanos se movem por compaixão e por amor. Aquilo é completamente natural, pessoal. Quando nasce o bebê, nasce a mãe. Aquilo é maravilhoso. Então surge isso, e a mãe sabe o que fazer. Isso é maravilhoso. Trata-se do reino de compaixão e amor. 

Chagdud Rinpoche disse: “Não é possível nascer no reino humano sem compaixão e amor. Nós adquirimos esse corpo porque temos essa dimensão de amor e compaixão pelos seres”. Todos foram acolhidos um dia. É muito maravilhoso. E esse olhar de compaixão e amor também se amplia. Cuidamos de outros seres que não são nossos filhos: nós cuidamos uns aos outros. Esse ponto é muito interessante, porque tão pronto alguém adoece, surgem várias pessoas, com emanações compassivas ao lado, que vão nos ajudando. 

Diante das várias dificuldades que a gente tem, aparecem seres compassivos que nos cuidam. E eles têm alegria por fazer isso. Esse aspecto da alegria de cuidar é muito profundo porque vai se transformar num caminho espiritual do reino humano. Agora, acima do reino humano ficam os seres que estão se preparando para vender coisas para nós em 2024. Os seres que estão articulando a campanha eleitoral de 2026, quando haverá nova campanha para presidente.

Eles já estão se articulando. E têm muito poder, muitos recursos. Estão vasculhando o que estamos pensando para depois escrever isso na propaganda eleitoral e capturar nossa mente e nos arrastar daqui para lá e de lá para cá. Trata-se aqui dos semideuses. Eles “se acham” e contam com uma certa razão para isso porque têm muitos recursos. Por exemplo, eles votam as leis que vamos seguir. Dispõem de um âmbito super poderoso: têm recursos, têm domínio do Estado, domínio da lei. 

Quando se diz que há um paradigma econômico ameaçando a humanidade como um todo, destruindo a vida, [trata-se] dos semideuses. Eles geram o paradigma econômico, são geridos por isso, operam nesse âmbito. E eles afundam dentro desse âmbito. Vocês verão grandes empresas, seres muito poderosos, Estados… Os Estados afundam, as grandes empresas também. 

Estamos um pouco sob o domínio ideológico das grandes empresas, dos grandes conglomerados, das inteligências desse tipo que manobram através do paradigma econômico. Porém, eles mesmos não têm soluções. Não sabem como resolver as grandes questões. Eles têm um sentido de auto-existência, e lutam para se manter, e existir. Eles também estão em crise profunda nesse momento. Vocês verão que as grandes empresas não estão entendendo bem em que devem investir e em que direção ir. Se estamos indo para uma economia verde, se vamos gerar tecnologias de um tipo ou de outro, ou se as tecnologias antigas seguem mais um pouco. Então há semideuses que acham que se deve explorar, até o fim, até tudo começar a sucumbir. Outros pensam que devem saltar na frente e já construir as realidades que virão depois. Eles têm capacidade para fazer isso.

E há grandes empresas que apostam nos dois lados: irão até o fim do petróleo, e ao mesmo tempo estão gerando os carros elétricos (os quais também não sabem se vão funcionar, porque pode ser que o futuro não ocorra através de automóveis, ou desse processo todo que estamos gerando). Provavelmente vamos ter mudanças muito grandes que ainda não se imagina. As mudanças que estão no âmbito dos semideuses estão excluindo as visões que brotam dos povos tradicionais, que são aqueles que sabem como é que a cultura humana consegue se manter.

E a cultura humana não se baseia na individualidade. Ela está baseada na tribo, na capacidade coletiva de funcionamento. O que, aliás, é o método que o próprio Buda usou.Então vocês verão: a sangha é um comportamento coletivo. É assim: um por todos, todos por um, ninguém larga a mão. É mais ou menos isso.

Mas o funcionamento usual dos semideuses, que implantou uma cultura sobre os seres humanos, para poder explorar melhor, o domínio todo funcionar melhor, é um comportamento de  individualizar o ser humano. Individualizar os obstáculos que os seres humanos enfrentam. Se a pessoa, por exemplo, começa a passar mal, torna-se um problema da pessoa. As crianças medicadas nas escolas, pessoal, é um escândalo. Mas elas são tratadas uma a uma. Não são tratadas como uma coletividade que está adoecendo. É gritante, é óbvio. Já os jovens estão rompendo, literalmente, com seus neurônios. É um tipo de visão social. E eles atravessarão isso, não tenho a menor dúvida. Como outras escolas, outros tipos de escolas já foram atravessados. Eles vão vencer isso. Só que os adultos não estão entendendo.

Ilustração: Pinheiro Vermelho

As mudanças que estão no âmbito dos semideuses estão excluindo as visões que brotam dos povos tradicionais, que são aqueles que sabem como é que a cultura humana consegue se manter. E a cultura humana não se baseia na individualidade. Ela está baseada na tribo, na capacidade coletiva de funcionamento. O que, aliás, é o método que o próprio Buda usou.

Os adultos pensam que esse ou outro está doente, e se medicarmos todos eles, tudo vai melhorando porque, enfim, o próprio PIB aumenta. E aí nós achamos que as coisas estão andando. Mas não é assim, pessoal. Como é que esses jovens estão passando por isso? Porque eles não são domáveis. Estão resistindo sem entender porque o fazem. Eles não estão resistindo, apenas estão inconformados. Não se ajustam.

Não é possível se ajustar. Eles vão fazendo outras coisas. Esse âmbito de dificuldade de se ajustar não ocorre apenas nas escolas. Ocorre também no âmbito do trabalho. Os jovens também não estão dispostos a fazer qualquer coisa pelo salário que receberão no final do mês. 

E as dificuldades são tão amplas que, mesmo que haja jovens que queiram entrar no mundo do trabalho comum, isso lhes é difícil, porque a estrutura, tal como ela está montada, quase que os impede. Uma vez que moram muito longe, têm que viajar muito até o local de trabalho. O salário que ganham não compensa isso tudo: o fato de deixar os filhos em casa para ir trabalhar em algum lugar. É alguma coisa desesperadora. Não é possível, não tem como. Aí vemos uma quantidade muito grande de pessoas entrando em crise de vários modos.

Estamos nesse tempo esquisito. As próprias grandes organizações têm problemas. Vão se devorando umas às outras. Não sabem bem em que direção estão indo. Esse é o mundo dos semideuses. Eventualmente, no mundo dos humanos nós oscilamos. Vamos para os semideuses, que são o Estado forte, ou vamos para os semideuses enquanto organizações variadas que assumem as funções de Estado e fazem outras coisas. Mas, essencialmente, são os semideuses olhando as realidades de um certo modo. 

Então, o Buda descreve o reino dos deuses. Trata-se mais ou menos de um upgrade dos semideuses. É quando, não importa bem a situação que esteja sendo vivida pelos semideuses, eles estão com vantagens. Os deuses apenas usufruem das vantagens que brotam das várias condições. Esse reino dos deuses está subdividido. Aqui na Roda da Vida ele é apresentado como um único. Mas o Buda o descreve subdividido em vários reinos. Eles começam com os seres dominam as quatro direções e vão se ampliando até o reino dos deuses de felicidade, simbolizados, essencialmente, por Mara. Tudo aquilo que olhamos e pelo que nos sentimos atraídos, e sentimos que é o que queremos, nos é oferecido por Mara. E assim nos mantém presos. Esse é o aspecto de Mara. 

 

Os enganos que nos prendem

Temos marcas mentais: Mara nos prende em mundos específicos. É o topo, o último reino dentro do mundo dos deuses do desejo. Mara opera a partir do desejo. Ou seja: eu olho e acho que tal coisa é muito bonita. Ou aquela também. Aí Mara as oferece, e eu fico manobrado por dentro das coisas que parecem interessantes e favoráveis. 

Aí tem uma parte, para mim um pouco dolorida de ter que entender isso assim, que é o fato que Tushita é um degrau abaixo desse mundo. Eu preferiria Tushita fora! 

Mas Tushita é o reino dos Bodisatvas. Eles também querem a felicidade, querem libertar os seres do sofrimento. Estão se movimentando por um nível de desejo/apego, ainda que seja elevado. Está submetido a Mara. 

Os Bodisatvas podem ter sofrimentos. Podem ter frustrações, porque desejam socorrer esses e aqueles seres, e não o conseguem. Como aconteceu e acontece com o Chenrezig (quando a gente bota no passado isso é estranho, porque na realidade essas verdades não têm tempo. Eu poderia dizer: como “acontece” com o Chenrezig): vocês sintam a aspiração de compaixão e amor no coração e o esforço constante; e muitas e muitas ações são praticadas. Num certo momento vocês olham e pensam “bom, o mundo deve ter melhorado”. E aí vocês olham para trás e veem quem foi eleito…Então o pessoal pensa: “bom, desgraça, isso não tem solução”. Aí nós vamos para os infernos.

Então, de qualquer um dos reinos dos deuses, fixados em desejos e apegos, nós podemos ter frustrações. Se fizermos muitos esforços para beneficiar os seres, teremos um certo nível de apego àquilo que foi feito. Temos uma certa expectativa de que aquilo faça diferença. E quando constatamos que o samsara continua a ser o samsara, aquilo pode nos frustrar. 

Essa é a frustração correspondente aos seres que têm o desejo e a aspiração de beneficiar os outros seres e trazer a liberação do sofrimento, que as coisa melhorem. Estamos imersos dentro disso. Está certo que Tushita pode ser purificado. Tushita, na verdade, é um caminho: saímos dali, vamos purificando Tushita, e a motivação vai deixando de ter o apego correspondente, o sofrimento também vai desaparecendo, e vamos saindo da Roda da Vida. Saindo do mundo do desejo, e ainda assim estaremos manifestando a motivação elevada.

Então, de qualquer um dos reinos dos deuses, fixados em desejos e apegos, nós podemos ter frustrações. Se fizermos muitos esforços para beneficiar os seres, teremos um certo nível de apego àquilo que foi feito. Temos uma certa expectativa de que aquilo faça diferença. E quando constatamos que o samsara continua a ser o samsara, aquilo pode nos frustrar

O que fez o Buda? Em três éons ele andou por todos esses mundos. Nós não andamos o suficiente. Não sei se vocês, por exemplo, têm uma certa aspiração pelo reino dos deuses… Digamos que vocês recebem um convite: as pessoas descobrem suas grandes qualidades e uma empresa dinamarquesa os convida a uma formação e um salário maravilhoso, ficando em casa e trabalhando duas horas por dia… Aí vocês dizem: “Que maravilha, me descobriram. Eu sou esse ser, realmente”. Estamos prontinhos: ou seja, Mara passa por ali e dizemos: “Mara, olhe para mim”. Depois vem o Darma e a gente segue. Mara primeiro, essa é a prioridade. Temos tal fragilidade. Todos nós temos esse aspecto. Num certo sentido, vamos andar por três éons, como o Buda andou. Ou não. O fato de o Buda ter vindo pode abreviar isso. 

 

Seguindo o caminho, a despeito das dificuldades

Algumas vezes eu vi Sua Santidade o Dalai Lama dizendo: “Vocês não se preocupem, vão praticando com calma, porque não é uma coisa de uma vida. É algo de muitas vidas”. Eu nunca gostei disso. Nunca gostei de ouvir isso. Eu gosto mais dos ensinamentos tipo Satipatthana Sutra, onde o Buda diz: “Sete anos, não; sete meses. Não. Sete semanas. Não. Sete dias. Sete horas. Agora”.

Isso é interessante porque esse nível de realização é como se andássemos, e o caminho se dá na periferia de um grande círculo. No perímetro. Mas o movimento que temos de fazer é para o centro do círculo. Mesmo que eu ande muito veloz pela periferia do círculo, pelo perímetro, não me aproximo do centro. Podemos passar três éons, sem fazer esse percurso. 

Mas isso é o mundo do desejo. Espantosamente, pessoal, o Buda reconhece o mundo da forma. É assim: Vocês estão no mundo do desejo por um longo tempo, e a um certo momento, veem: “Isso é Mara, eu não preciso disso. Que horrível, perdi muito tempo. Agora vou simplesmente sentar, porque a felicidade é natural, ela é interna. Não preciso de algo externo”. Então, nós sentamos. “Adeus, mundo cruel. E eu perseguia as coisas para ser feliz?”. “Eu sento e a felicidade surge”. O Buda descreve, no Tapussa Sutta, que ele encontrou um mestre que lhe deu esse ensinamento. E ele sentou e atingiu a felicidade. Assim, rápido, ele chegou nisso. Aí ele se dá conta de que isso é uma condição artificial, construída. O Buda não interpretou aquilo bem. Ele diz: “Isso não é ainda o final do caminho porque é uma construção”. Então ele repousa, não mais sobre a felicidade, mas sobre a paz. “Rá, felicidade para que, pessoal? Isso é desgaste”. “Eu sento na paz, infinita”. Essa é uma parte super boa. Mara vai dizendo: “Sim, isso”. 

Nesse ponto, o Buda descobre que a paz também é construída. Ele vai entrando em vários estados, subdivididos, nos quais descobre que são estados podem vir através de simplesmente parar num estado particular. Ele se dá conta que são estados artificiais. Todas as experiências de visão a longa distância, de audição, visão de futuro, de passado, visão de todos os carmas, tudo isso aparece. Mas, são estados particulares. Nada disso tem uma substancialidade real. Ele vai atravessando esses vários estados. Ele passa por quatro grupos de estados do mundo da forma, e passa por quatro estados do mundo da não-forma, incluindo o espaço infinito. “Agora, espaço infinito ainda é uma construção. Eu quero a consciência infinita”. “Isso também é uma construção”. “Então eu quero nada”. “Isso também é uma construção”. “Eu quero nem o nada, nem o não nada”. “Isso também é uma construção”. “Então quero o Niroda. Cessação”. “Isso também é uma construção”. 

Quando Buda vê isso, ele se dá conta de que há uma lucidez que diz: “O espaço infinito é artificial”. Há uma lucidez que diz: “A consciência infinita é artificial”. Há uma lucidez que diz: ” O vazio, o nada, é artificial”. Há uma consciência que diz: “Nem o nada nem o não nada são artificiais”. Há uma consciência que reconhece: “Niroda, a cessação, é uma construção”. 

Então, Buda diz: “Tendo entrado em todos esses estados e saído, eu sou o Liberto, porque não me prendo mais em estado nenhum. Nem no reino do desejo, nem no reino da forma, nem no reino da não forma. Estou livre. Sou liberto”. Ao dizer isso, ele está se referindo à  lucidez da mente, que nós vamos chamar de “a natureza primordial”, a consciência natural, a lucidez natural. Nós vamos chamar isso de Rigpa. Ultrapassamos marigpa.

Marigpa, quando estudamos os 12 elos da originação dependente, é justamente onde nós começamos a construir mundos e a ficar operando por dentro deles. Não sobra nenhum tipo de construção ou estado parcial da mente que seja algo que o Buda vá se conectar. Essa é a razão pela qual ele também dirá, quando o Shariputra pergunta o que ele ouviu do Buda Dipankara. Então ele diz que não ouviu coisa alguma. Quando pergunta ao Buda o que ele aprendeu com o Buda Dipankara, ele diz que não aprendeu nada. Isso é um pouco frustrante. Ele pergunta: “O que você viu quando atingiu a iluminação?” Ele também não viu nada. Isso significa que ele não se ancorou em alguma coisa construída. Não é nenhum estado do mundo do desejo, nenhum estado do mundo da forma, nenhum estado do mundo da não forma. É a liberação. É assim.

Quando Buda vê isso, ele se dá conta de que há uma lucidez que diz: “O espaço infinito é artificial”. Há uma lucidez que diz: “A consciência infinita é artificial”. Há uma lucidez que diz: ” O vazio, o nada, é artificial”. Há uma consciência que diz: “Nem o nada nem o não nada são artificiais”. Há uma consciência que reconhece: “Niroda, a cessação, é uma construção”. Então, Buda diz: “Tendo entrado em todos esses estados e saído, eu sou o Liberto, porque não me prendo mais em estado nenhum. Nem no reino do desejo, nem no reino da forma, nem no reino da não forma. Estou livre. Sou liberto”. Ao dizer isso, ele está se referindo à  lucidez da mente, que nós vamos chamar de “a natureza primordial”, a consciência natural, a lucidez natural. Nós vamos chamar isso de rigpa.

Aí veio o deus dos céticos e botou uma coroa no Buda: “Você é o cético dos céticos”. Esse é um aspecto interessante. Sua Santidade o Dalai Lama vai dizer: “os cientistas são crentes, os budistas são céticos”. O que significa isso? Os cientistas operam a partir de visões que estão estruturadas por paradigmas construídos. Mas, no Budismo, todos os estados parciais, particulares, todas as construções vão ser abertas: nada vai ficar sem ser aberto. Esse é o ponto, quando Buda se diz liberto, ele está liberto da vinculação a estados particulares. Para nós, isso é ainda um pouco obscuro. Mas, é importante que entendamos esse roteiro, porque esse roteiro vai até o fim do caminho. Com isso, nós compreendemos o aspecto da roda da vida e dos três mundos, que são os lugares onde nós oscilamos. 

 

Crédito da imagem: José Paiva

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2 Comentários

  1. ana paula disse:

    Quanta generosidade em transcreverem o ensinamento! Que possa beneficiar muitos seres!

  2. Adriana Leopoldino disse:

    Maravilhoso

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