O dia em que conheci a Janete

Um olhar atento para o aprendizado com todos os seres


Por
Revisão: Cristiane Schardosim Martins
Edição: Carol Franchi

Fazer retiro pode ser desafiador. Estar quieto, consigo mesma e fora da rotina, traz à tona diferentes sentimentos, emoções, marcas mentais e, infalivelmente, é preciso olhar para elas. Nesse relato, a praticante Lela conta como foi encontrar Janete, uma aranha que se hospedou ao lado da porta, durante seu período de reclusão.


Quando vi a Janete pela primeira vez, eu tive medo. Fiz a primeira meditação do dia de olho nela. E assim como eu, ela não se moveu. Acho que estava me observando também, enquanto lidava com os próprios receios. A Janete escolheu esse canto como morada ao longo de dez dias, durante o retiro que realizei em janeiro: continuou todo o tempo próxima à porta, tendo como vizinha a palavra “saída”. Isso me fazia lembrar um comentário do querido Lama Samten, a quem tenho imensa gratidão. O Lama diz que quando iniciou o estudo do budismo pode seguir porque viu a porta de saída. Eu mirava a Janete e me lembrava do Lama e, por consequência, me lembrava de todas as professoras e professores que me auxiliam no caminho para dentro.

Meu coração foi, então, se enchendo de confiança em relação à minha nova amiga e à minha permanência solitária em uma pequena casa na mata. É claro que o medo estava comigo, bem ao lado da coragem: meditamos, comemos, fizemos yoga, dormimos juntas.

Certa noite, eu acordei de repente às 3h. Comecei a sentir meu corpo gelado, e uma sensação de pavor me inundou por completo. Eu estava absolutamente só naquele lugar, não havia vizinhos nem telefone, apenas um sinal precário de internet que seria minha salvação em algum caso de urgência. Uma imagem se desenhou na mente: eu, sozinha, tomada por uma luz amarela e localizada no centro de um círculo escuro como a madrugada. Esse círculo me parecia ser o perímetro ao redor da casinha, região que eu havia conhecido superficialmente. À medida que essa paisagem ganhava contornos mais nítidos, o temor se ampliava, na mesma proporção em que a solidão apontava seus espinhos.

Deitada sobre a cama, barriga para cima, braços e pernas estendidos, eu me lembrei da manhã anterior, quando havia estado na mesma posição sobre a grama do quintal, contemplando rabiscos no céu. Passei a notar o vento de antes no centro do peito, e a respiração se acalmou um pouco. Ao brincar, em minha imaginação, com galhos de árvores, naturalmente me conectei com as raízes fortes e firmes escondidas no solo úmido da floresta em meu entorno. Foi quando a luz amarela, há pouco acesa pelo medo, deixou de me isolar e me destacar no território da mente para se espalhar de vez, revelando a teia que eu sempre integrei. Nesse momento, eu me vi como parte de um gigantesco bordado de vida: braços e pernas e fios de cabelo tramados por entre raízes, musgos, minhocas, fungos, folhas, gotas de orvalho, aranhas. De um jeito inesperado e corporificado, a certeza da interdependência me acalentou e vigiou o sono que, enfim, voltou a me envolver.

Choveu muito ao longo da minha estadia naquele lugar. Eu podia ver as nuvens passarem com pressa, como se estivessem atrasadas para preparar a tempestade. Por vezes, a paisagem se esbranquiçava completamente, e a névoa parecia me esfriar as vísceras.
Ainda assim, eu a admirava pela janela de vidro, mirando de frente o desejo de sol e abraço. Eu estava disponível para o que surgia dentro e fora de mim. Porém, numa longa tarde, quando um raio chegou escandaloso para cortar a energia da casa e me avisar que eu teria uma noite mais sombria do que as outras, perdi por infindáveis instantes o chão e a amizade com o corpo. Comecei a fazer coisas, muitas coisas: tomei banho, preparei a comida, organizei lanternas e velas. Ocupadíssima. Até que a névoa do quintal me convocou novamente, e eu me sentei na cama, de frente para o anoitecer, em uma longa meditação que me fez sentir o gosto da realidade crua. Sim, por uma fagulha de tempo, a ausência e a presença da energia elétrica tiveram para mim o mesmo sabor.

Minha amiga Janete não me abandou nem um segundo sequer, mas na manhã em que eu estava arrumando as malas para o retorno, não a encontrei mais. Antes de ir embora, fiz uma foto na janela da casinha como lembrete: desejo manter a mente e o coração abertos para o que me assusta na vida do lado de fora.

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1 Comentário

  1. Cintia Alves disse:

    Maravilhoso esse relato da minha amiga querida. Lela, eu já havia escutado essa história, mas ler com minucia foi ainda mais lindo.

    Siga sempre com a Janete tecendo amor !

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