O pontinho luminoso

A experiência de uma praticante do Darma


Por
Revisão: Kelly Pazello

Mas como é sentir dor e continuar praticando? Neste relato, aberto e tocante, Guta, como é carinhosamente chamada pela Sanga do CEBB (Centro de Estudos Budistas Bodisatva), compartilha o seu processo na visão do Darma.


A atenção está na profundidade do espaço interno que é percebido, reconhecido, experenciado, visto como silêncio, vastidão, liberdade. Há apenas a consciência de estar presente, com uma sensação de bem-estar muito grande.

Essa sensação me acompanha, quando levanto da cadeira, até que aconteça algo como ver a mensagem da cuidadora dos meus pais, que deveria chegar às 7 horas da manhã, dizendo que não vai poder vir. A notícia me pressiona a encontrar urgentemente uma substituta. Até porque a cuidadora da noite precisa sair no seu horário, senão vai perder o ônibus e estragar todo o seu planejamento para o dia, o famoso efeito dominó. 

Em instantes, escorrego para dentro da bolha dos cuidados com a família, brota a identidade de gestora e passo a operar a partir de olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente para tentar resolver a situação. E, é claro, com o ressurgimento da sensação de corpo, retorna a dor na espinha ilíaca póstero-superior, que eu chamo de pontinho, como algo que naturalmente faz parte de mim, é sólido e permanente.

Ainda bem que, em determinado momento, eu lembro que tudo, inclusive essa situação doméstica difícil e a dor no pontinho, é não dual com a minha mente, vazio e luminoso. É, portanto, fruto da liberdade da mente. E eu posso seguir ou não seguir.  Sendo que, se resolver seguir, posso fazê-lo de forma relaxada. Não preciso me mover pelo sentimento de urgência, que é tão aflitivo. Que alívio! Sorrio, embora continue sentindo dor.

Na próxima oportunidade de sentar para meditar, inicio renovando a minha motivação, que é ter visão ampla e meios hábeis para beneficiar os seres. Em seguida, observo como os cinco elementos se movem no meu corpo: sinto a estabilidade, o relaxamento, o calor, a respiração e a mente viva e atenta. Depois abro o foco e percebo tudo o que acontece ao meu redor, mas não sigo. O que às vezes é bem complicado, porque pode incluir: o movimento das pessoas  pela casa, a TV ligada na sala, os sons do bairro Independência, na região central  de Porto Alegre, que entram pela janela do meu quarto, no 19º andar. E, é claro, a dor no pontinho.

A seguir, faço Metabavana para os meus pais, para as minhas irmãs, para todas as pessoas conectadas comigo.  Depois vou incluindo outras, lembrando também daquelas com cujas visões de mundo não tenho afinidade. Começo por aquela cuidadora que fez um acordo para sair, porque precisava do dinheiro e agora está movendo uma reclamatória trabalhista, alegando que foi demitida. Amplio meu olhar para abranger todos os seres. Que sejam felizes, se afastem do sofrimento, encontrem as verdadeiras causas da felicidade, se afastem das verdadeiras causas do sofrimento…

Dali, parto para a contemplação da dor no pontinho. A mente olhando para si mesma vê que a dor às vezes está presente e outras vezes não está, a intensidade também muda. Sim, ela é não dual com a minha mente, é vazia do que eu vejo nela e é uma construção luminosa. Como meu querido professor, Lama Padma Samten, costuma dizer sorrindo: “isso é, isso não é, isso é”. Também sorrio e permaneço ali, em silêncio. De repente, mergulho em um espaço mais profundo, no qual há apenas a consciência de estar presente, desfrutando de uma sensação de liberdade e bem-estar muito grande.

Até sentir que preciso levantar da cadeira para realizar as atividades do dia. Inicialmente, o silêncio e a paz seguem comigo, até encontrar aparências que para mim são desafiadoras, como a dor no pontinho, que limita meu movimento. Mas, em algum momento, a consciência de que ela é vazia e luminosa, portanto impermanente, faz com que não me perturbe como antes.

E, então, brota um haikai:

dor surge e cessa
pontinho vazio e luminoso
natureza inabalável

 


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