Créditos: Joana Ludwig

O Voto de Tara

“Portanto, possa eu, em um corpo feminino, trabalhar para o bem-estar dos seres até que o samsara seja esvaziado.”


Por
Revisão: Henrique, Lemes, André Luís Daguerre e Cristiane Schardosim Martins
Tradução: Carol Franchi

Esse é mais um capítulo do Livro The Hidden Lamp: Stories from Twenty-Five Centuries of Awakened Women, ainda sem tradução para o português, uma compilação maravilhosa de ensinamentos e instruções transmitidas por praticantes e mestras budistas, ao longo de vinte e cinco séculos, através de suas experiências de vida e realizações. Cada história é comentada por professoras do Darma contemporâneas, que nos ajudam a interpretar os ensinamentos e a praticá-los nos dias de hoje. 

Nesse capítulo, a mulher que se tornaria a deusa Tara, faz o voto de nascer em um corpo feminino até a iluminação.


TIBETE, POSSÍVEL SÉCULO XVI …………………………………………….

Uma vez, há muito tempo, a mulher que se tornaria a deusa Tara foi uma princesa chamada Lua da Sabedoria. Ela era sábia, compassiva e devota do Darma. Um monge se aproximou dela e disse: “Por causa de suas ações virtuosas, você nasceu em um corpo humano, mas infelizmente é um corpo feminino. Se deseja atingir a completa iluminação, ore para renascer em um corpo masculino.”

Ela respondeu: “Nesta vida não existe tal distinção entre ‘masculino’ e “feminino”, portanto, qualquer apego às ideias de ‘masculino’ e ‘feminino’ é uma delusão. É tolice pensar dessa forma.”

Então, ela fez o voto que seguiria com ela até a iluminação:

Há muitos que desejam atingir a iluminação no corpo masculino, e há poucos que desejam trabalhar pelo bem-estar dos seres sencientes em um corpo feminino. Portanto, possa eu, em um corpo feminino, trabalhar para o bem-estar dos seres até que o samsara seja esvaziado.

REFLEXÃO DE RITA M. GROSS

Esta história se passa no contexto do Budismo Vajrayana, que é bastante diferente do contexto Chan/Zen da maioria dos koans. Não é menos conciso do que um koan Zen, mas entendê-lo requer um pouco de contextualização. Os budistas Vajrayana no Tibete acreditam literalmente em renascimento e muitos esperam renascer por inúmeras vidas. Eles aspiram sempre renascer como um bodisatva, alguém que trabalha pela liberação de todos os seres, ao invés de trabalhar para benefício próprio. Muitos deles entendem que esse seja o voto do bodisatva, porque a completa iluminação do estado búdico é muito difícil de ser alcançada, e esse voto requer muitos renascimentos futuros até que seja atingido.

Budistas Vajrayana no Tibete também acreditam, assim como muitos budistas asiáticos, que é impossível atingir a completa iluminação como mulher e que nascer em um corpo feminino é desafortunado. Isso nos diz muito sobre o que as mulheres tiveram que passar! A maioria dos budistas, reconhecendo a realidade da dominação masculina, que consideravam inevitável, viram que a vida das mulheres era muito mais difícil do que a vida dos homens. Portanto, por admitir que o papel do gênero feminino nas sociedades patriarcais é bastante desagradável, os budistas tradicionais estão a meio caminho de uma compreensão feminista do Budismo, mesmo sem saber.

Atualmente, Tara é uma das mais amadas deidades Vajrayana, aparecendo em muitas formas e sendo visualizada universalmente em meditações pelos tibetanos. Nessa história, Lua da Sabedoria, que se tornou a bodisatva Tara em uma vida posterior, deu ao monge uma lição do Darma que ele deveria ter aprendido há muito tempo nos seus estudos sobre vacuidade. Os seres podem ser masculinos ou femininos, mas, na realidade, essas são apenas palavras, apenas rótulos, apenas conceitos que não possuem realidade subjacente, inerente e essencial. Você pode fazer muito com esses rótulos, se quiser, mas isso é muito tolo — algo somente fraco, estúpido, apenas pessoas mundanas fariam isso, não é algo que quem está estudando e praticando o budismo por anos faria. Esse tipo de história é muito comum nas escrituras do Mahayana: homens que se pensam melhores do que as mulheres mas que, ironicamente, quando vão a um debate do Darma com uma mulher, acabam “perdendo” para elas, até mesmo para garotas. Mas, mesmo assim, não entendemos a mensagem, não importando quantas vezes vemos essas histórias nos ensinamentos.

Tara foi mais longe. Ela apontou que até agora, poucos seres haviam cumprido seu voto de bodisatva na forma feminina, se é que houveram. Não só foi dito às mulheres que sua atual forma física era inadequada, como elas também não tinham um modelo com quem se identificar para poder seguir. Budas parecem sempre aparecer na forma masculina. Quase todos os professores reverenciados foram homens. Foi e ainda é difícil para alguém aparecer em um corpo feminino, ainda que seja para se tornar um monástico. Percebendo a mágoa e o desânimo que tais crenças sobre as mulheres trazem para praticantes masculinos e femininos, Lua da Sabedoria (Tara) resolveu aparecer sempre na forma feminina “até que o samsara seja esvaziado”.

Na maioria dos sistemas de crença budista, o samsara, a existência cíclica na qual repetimos os mesmos padrões insatisfatórios indefinidamente, dura por um longo tempo, tão longo que é impossível imaginar sua duração. Mas Lua de Sabedoria, ou Tara, aparecerá incessantemente na forma feminina até que confusão, ignorância e sofrimento sejam superados, pois, na verdade, o samsara nada mais é do que nossa própria confusão. E ele vai durar enquanto estivermos confusos — enquanto nos apegarmos à nossa prisão auto-imposta de papéis de gênero, acreditando que devemos agir conforme as convenções e estereótipos sobre gênero.

Esta história é a minha favorita e sempre costumo contá-la quando dou palestras sobre budismo e gênero. Como outras mulheres praticantes contemporâneas do Budismo Vajrayana, entendo meu trabalho como uma budista feminista sendo parte da minha atividade de bodisatva. Se existe algo como renascimento, faço o voto de retornar na forma feminina porque, a menos que as mulheres trabalhem duro para acabar com o patriarcado, isso irá continuar.

Onde está Tara hoje? Ela aparece em cada uma de nós. Cabe a nós pararmos de sermos pegas por expectativas convencionais sobre nós mesmas e sobre os outros. Cabe a nós, especialmente as mulheres, nos tornarmos as professoras femininas e desempenharmos o papel que nunca tivemos, para que as futuras gerações de praticantes, tanto mulheres quanto homens, nunca sintam a angústia que sentimos quando fomos confrontadas pelo patriarcado budista. É assim que Tara pode sempre, até que o samsara seja esvaziado, aparecer como mulher, trabalhando para beneficiar todos os seres sencientes.

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1 Comentário

  1. Angela disse:

    As identidades são “roupagens” para transcender formas , ultrapassar a densidade . Forma é vazio , vazio é forma … a genuinidade do caminho do meio.,, Dharma !

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