Créditos: Carol Franchi

Palestra de abertura do ano, por Lama Padma Samten – Parte 1

Lama relembra os ensinamentos do Buda, na 24ª edição do evento 108 Horas de Paz


Por
Revisão: Dirlene Ribeiro Martins
Edição: Dirlene Ribeiro Martins
Transcrição: Rosana Folz

Hoje, eu queria começar lembrando os ensinamentos do Buda. Como o nosso tempo é curto, vou resumir esses ensinamentos, vou falar sobre o Buda, o Darma e a Sanga em um flash

Vou começar com exemplos. Nós estamos aqui no templo, e isso parece completamente natural para nós. Todo mundo diria: “Aqui é o templo do Caminho do Meio”. Mas precisaríamos entender que isso é uma construção da nossa mente, ou seja, nós construímos isso, só que não vemos que estamos construindo. 

De modo geral, poderíamos descrever o que chamamos de mente como a sexta consciência, a mente operativa, aquela que está relacionando uma coisa com outra. Por exemplo, quando vamos jogar xadrez, nós jogamos com a sexta consciência, ou seja, nós pensamos sobre as jogadas e jogamos. Mas temos duas outras consciências por trás que não vemos. Quando vamos jogar em um tabuleiro, tem uma consciência interna que opera, que sustenta as regras do jogo e como cada uma daquelas peças deve ser entendida. A operação mental de fazer o jogo é o aspecto mais simples, mas ele já está condicionado pelas outras consciências, que não aparecem – elas operam, mas não aparecem. Nós vemos o templo, mas não vemos as consciências que são a base para que possamos reconhecer o templo como tal. 

Aqui tem um hexágono (o Lama mostra o desenho na Sadana), mas, se trocarmos os referenciais, podemos ver um cubo e outro cubo. Se olharmos de cima, vemos um cubo; se olharmos de baixo, vemos outro cubo; ou podemos ver o hexágono. Nós estamos vendo o templo com os olhos e pensamos: “Eu vejo com os olhos, eu estou vendo, isso é assim”. Mas isso é tão ‘assim’ quanto o cubo que possa aparecer aqui (na Sadana). A consciência que opera com os olhos e as consciências operativas ficam sob o poder das consciências mais sutis, que correspondem à construção do ambiente. 

Créditos: Carol Franchi

Nós temos um ambiente mental, e para nós é completamente natural entrarmos aqui e estarmos neste encontro de 108 horas. É completamente natural estar todo mundo sentado aqui. Esta aparente normalidade vai se extinguir dentro de pouco tempo. Daqui a pouco, todo mundo se levanta e vai embora. Podemos pensar: por que ontem estávamos sentados aqui, por que agora de manhã está todo mundo sentado aqui e daqui a pouco todo mundo vai embora? Não é que não possamos, com a nossa consciência operativa, nos levantar e ir embora. É fácil. Mas a nossa visão de mundo, que são a oitava e a sétima consciências, opera de tal modo que estamos sentados aqui como se isso tudo fosse normal. Eu acho que, nestes últimos dias, todo mundo ficou muito mais tempo sentado no chão do que usualmente. Mesmo com alguma dor nas pernas, nas costas e em outras regiões, ficou todo mundo sentadinho, achando que tinha que ficar sentado. 

Mas pode ser que outras pessoas tenham entrado aqui e dito: “Aqui é o templo, é o retiro de 108 horas, mas eu estou aproveitando para escapar”. Pode ser que vários dos jovens que entraram aqui em alguns momentos também tenham pensado: “Ih, hoje de manhã tem aquela palestra do Lama. Estou saindo…”. Isso significa a sétima consciência, ou seja, como nós nos colocamos. Por méritos e por carmas, mesmo sem perceber, quem está aqui se constrói com essa forma de olhar, por isso nossa energia está aqui e nós estamos aqui. É como se fosse um tabuleiro, nós vemos o tabuleiro: a torre não existe, mas ela está ali; o peão não existe, mas está ali; a rainha, o bispo, etc., estão todos dentro do jogo, e o jogo decorre.

No entanto, tem essa construção de base. Quando contemplamos essa construção de base, podemos ver que ela pode estar em vários reinos. Pode estar no reino humano, pode estar no reino dos animais, no reino dos seres famintos, nos infernos, ela está em algum lugar. A ação dos seres dos infernos, por exemplo, é natural. Podemos pensar: “Onde está o reino dos infernos?” Basta olhar a intensidade das pessoas aspirando destruir umas às outras. Hoje, por exemplo, as pessoas estão morrendo às dezenas ou centenas em Gaza: crianças, mães, civis. Pelas estatísticas da ONU, mais de 95% dos que estão morrendo são civis. Surge uma naturalidade no matar, como se aquilo fosse completamente natural. As pessoas vão comemorar, porque mataram mais gente, destruíram mais prédios. Isso é a panela dos infernos. As pessoas olham para o mundo de certo modo e chegam à conclusão de que precisam fazer aquele tipo de ação. Isso está muito internalizado, opera de modo natural, as ações são completamente naturais. 

Do mesmo modo, os seres que estão em um ambiente de grande dependência, de grande carência, também se sentem completamente naturais nas suas ações. Os animais se sentem completamente naturais em suas ações. Nós, seres humanos, também: levamos as crianças para o colégio, trazemos do colégio, vamos ao supermercado, abastecemos o carro, andamos de um lado para o outro, olhamos a conta bancária e vamos seguindo como é possível. 

Surgem os seres que têm visões geopolíticas e se chocam; seres que têm mentes individuais e mentes coletivas. Grandes organizações também funcionam de maneira completamente natural. Podem pensar: “Não quero matar, não quero causar problema, não quero criar nenhum tipo de obstáculo, mas, na minha condição de existência, eu preciso obter tais resultados”. Aquele jogo está estabelecido e eles jogam o jogo. 

Assim o Buda vai descrever todos os mundos – o mundo do desejo, o mundo da forma e o mundo da não-forma – com nuances daquilo que vemos, daquilo que são os nossos referenciais e de como nossas mentes vão operando. 

Nós, praticantes, temos inevitavelmente conexão com o reino da forma, porque todos nós temos uma tendência natural de nos ausentarmos daquilo que é o mundo e mergulhar no mundo interno. Nossa tendência é buscar estados mentais específicos. Para o mundo dos meditantes é uma frustração se distanciar do mundo comum, como o próprio Buda descreve, e tentar estabilizar estados mentais, sendo que não há estados mentais que efetivamente se estabilizem. Esses estados mentais também são construídos; têm um início, um meio e um fim. Então, nós estamos nesse ambiente, com várias consciências operando e aparentemente sem solução. Mas felizmente o Buda veio e clarificou isso. 

Aqui, nós estamos reconhecendo o templo. Se as pessoas entrarem aqui com outras mentes, verão outras coisas. Se outros entrarem de outro modo, verão outras coisas ainda. Nós mesmos, em diferentes momentos, podemos ver coisas diferentes. Quando nossas atividades terminarem hoje, repentinamente brilhará os olhos de alguns praticantes, que dirão: “Uau, temos que limpar tudo, colocar tudo em ordem”. E por que não brota agora? Porque ainda estamos vivendo um certo tipo de referencial. Quando trocamos nossa mente de base, o jogo muda e nossas ações vão mudar. 

Quando a pessoa aluga um apartamento, ela vive um tempo ali, ela tem uma mente que fica feliz, que se organiza. Mas tem também a mente do último dia, de quando a pessoa abandona aquilo por alguma razão e vai embora. Eventualmente, ela se sente feliz porque está indo embora. Quando compra um carro, a pessoa fica feliz; quando vende o carro, também fica feliz. Como isso pode acontecer? Às vezes, as relações são assim. As pessoas se alegram quando se encontram e se alegram quando, enfim, se despedem. Isso, felizmente, pode acontecer: de se alegrarem mesmo quando se despedem. 

Esse ponto nos leva a pensar: “Como as realidades são construídas?” Nós vemos que existe uma potencialidade incessante que constrói as realidades. Além das realidades construídas, das múltiplas mentes, do tabuleiro do jogo, existe uma natureza livre. Por exemplo, tomamos a erva (chimarrão) amarga. A erva amarga é parecida com o templo: é uma construção, o amargo é uma construção. Não nos damos conta disso, pensamos que isso é efetivamente amargo. As realidades são todas desse modo, o que há de constante é a natureza que constrói. 

Esse é um ponto superimportante. No Tapussa Sutta, o Buda descreve esses múltiplos mundos e diz que agora ele é liberto, ele está extinto, ele não retorna mais para estados mentais particulares. Isso significa que ele ultrapassou a ignorância. A ignorância é quando nós tomamos o tabuleiro como verdadeiro. Surgimos como uma identidade que parece verdadeira e jogamos um jogo como se fosse verdadeiro. Ignorância é o fato de nós estarmos mergulhados ali. Isso é avidya. Essa é a doença geral do samsara inteiro, é a doença que nos permite dar nome ao mundo luminoso e chamá-lo de samsara também. A própria noção de samsara depende de um olho que esteja dominado pela ignorância. Os Budas veem o samsara como uma experiência dos outros seres, não como uma experiência própria, porque a natureza deles é livre, eles não estão presos. Eles veem o samsara como uma realidade ilusória que os seres experimentam. Então, o Buda se declara liberto, porque ele não entra mais em estados particulares de mente. 

Diferentes linguagens eventualmente vão nomear essa natureza como Tatagatagarba, ou natureza primordial. Mas o Buda evita dar um nome. Ele exerce a liberdade sem dar um nome, porque, quando damos um nome, podemos criticar o fato de que é um nome, como se fosse uma existência do mundo: sou um observador contemplando uma existência. Sempre que nos colocamos como um observador contemplando uma existência, há uma dualidade, é um estado particular de mente. Há essas sutilezas.        

O Buda se reconhece como essa natureza incessantemente lúcida e luminosa que constrói inevitavelmente todas as coisas. Nos ensinamentos da natural grande perfeição, vamos começar a contemplar as qualidades dessa natureza. Vamos olhando e nos aprofundando nas qualidades dessa natureza, reconhecemos isso operando diretamente, sempre dentro dessa noção de que não há propriamente uma existência da forma como a dualidade reconhece. 

Desse modo, há um esforço para ultrapassar a própria ignorância. Este é um ponto delicado também, porque, quando dizemos que “eu faço práticas para superar isso e aquilo”, este ‘eu’ que faz prática seria o quê? Ele também é um conjunto de condicionamentos de vários níveis. Isso dá sentido ao que o Buda fala quando atinge a liberação: “Eu estou extinto”. A extinção é a superação dessas identidades. Nós nos reconhecemos como praticantes e vamos seguindo o caminho, mas essa identidade não atinge a iluminação, a identidade vai ser extinta. Ela é um veículo que nos permite andar, mas ela vai mudando, vai se sutilizando e vai desaparecer. 

Nós somos super-sérios quando se trata de nossas identidades; nós lutamos por definir identidades que sejam efetivamente melhores, verdadeiras, etc. E ainda temos Yama, que fica nos julgando porque não fizemos direito, porque deveríamos ter feito melhor. Como Trungpa Rinpoche dizia, mesmo a aspiração por obter a liberação pode ser uma perspectiva ilusória, uma identidade ilusória que surge como praticante.  

Precisaríamos entender que, de fato, todas essas construções indicam uma natureza luminosa incessantemente presente, uma natureza lúcida incessantemente presente. E nesta natureza nós tomamos refúgio. Nós tomamos refúgio no Buda. Tomar refúgio no Buda significa que nós aspiramos ultrapassar a ignorância, a fixação aos vários ambientes. 

Uma mente que está presa pode ser reconhecida pela originação dependente. Se paramos para meditar, se ficamos um pouco em silêncio, contemplando a própria mente, vemos que surgem imagens, e destas imagens nós produzimos outras imagens. Por exemplo, nós paramos um pouquinho e pensamos: “Uau, vai dar um trabalhão arrumar tudo. Então eu tenho que escapar rápido para não ficar preso na arrumação” (risos). Ou o contrário, pessoas de bom coração vão pensar: “Eu fico aqui”. Mas em seguida podem perceber: “Eu fico aqui, mas posso me atrasar para isso ou aquilo”. Esse encadeamento é ilusório. Estamos construindo imagens na dependência de outras imagens. A realidade que estamos vendo é luminosa, ela não tem uma substancialidade. Mas, quando tomamos algo por base para criar outras coisas, é como se esta construção luminosa ganhasse um aspecto terra. Ela passa a existir e, assim, nós seguimos nossos cursos. Esse é o processo pelo qual as múltiplas realidades se entrelaçam. 

Os seres em todas as direções têm realidades desse tipo. Vou incluir aqui as aranhas, as formigas, etc. Podemos fazer uma experiência. Colocamos alguma coisa atraente – como frutas – para as formigas em cima da mesa; daqui a pouco tem um carreiro de formigas subindo e descendo. Então, nós tiramos as frutas dali e vemos que o carreiro continua subindo e descendo. Ou seja, nós entendemos que as formigas também são passíveis da ignorância. Elas se movem como se as frutas maduras estivessem em cima da mesa. A mente delas não se move pela realidade, move-se pela originação dependente. Elas têm pensamentos e vão seguindo. Vai levar um bom tempo até se darem conta de que aquilo não é mais assim. Quando olhamos as nossas próprias ações em meio ao mundo, nós percebemos isso também. Nós, seres humanos, ainda estamos nos movendo como se tivessem coisas desejáveis sobre alguma mesa em algum lugar. Nós não nos demos bem conta de que talvez esse mundo que estamos imaginando não seja mais uma possibilidade. 

Isso é o desenhar da visão distópica dos tempos atuais: começamos a desconfiar que em cima da mesa não tem mais aquilo que estava me movendo para ir até lá. Eu diria que esse aspecto está por trás da crise das drogas, dos suicídios, da violência, porque as pessoas perderam a imagem de que seria possível alguma coisa favorável em algum momento. Isso acomete a juventude de hoje. É muito comovente. Mas isso é um efeito colateral do tipo de visão de como deveríamos nos mover em meio à realidade. Nós temos as frustrações correspondentes.

Essa visão que reconhece o aspecto comum de modo profundo é a mente que o Buda usou para trazer benefício aos seres. O Buda vai explicar as Quatro Nobres Verdades, o Nobre Caminho de Oito Passos, olhando para essas realidades. Então surge o Darma. A partir dessa mente livre, lúcida, o Buda descreveu o seu caminho através do mundo do desejo, do mundo da forma e do mundo da não-forma, os múltiplos estágios, os mestres que ele encontrou e que lhe deram ensinamentos. Ele praticou, atingiu a iluminação e viu a limitação daqueles ensinamentos. Quando descreve isso, o Buda está falando do Darma. Esse Darma vem de onde? Vem da mente lúcida, não vem de um livro que o Buda encontrou e no qual estudou aquilo tudo. Vem diretamente da clareza natural da mente lúcida do próprio Buda. O Darma é supercrucial, é a bênção do Buda. O Buda nos traz os ensinamentos e nos ajuda a ultrapassar a ignorância.

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