Créditos: Carol Franchi

Palestra de abertura do ano, por Lama Padma Samten – Parte 2

Reflexões sobre a importância de manter a energia dos budas para enfrentar os desafios do mundo contemporâneo


Por
Revisão: Dirlene Ribeiro Martins
Edição: Dirlene Ribeiro Martins
Transcrição: Rosana Folz

A essência do ensinamento do Buda é superar a ignorância, revelar a nossa natureza búdica, aquilo que nós já temos. Como sabemos que temos? Porque essencialmente nós somos capazes de criar realidades. Como as formigas, imaginando que têm frutas na mesa, criam uma realidade que não vai dar certo, mas elas são capazes de criar realidade. O mundo, hoje, é povoado de realidades de todos os tipos. Poderíamos dizer que agora estamos acometidos quase que por uma diarreia de imagens, as realidades fakes vêm e não conseguimos mais distingui-las direito. As pessoas descobriram que nós temos uma avidez por outras realidades. Assim, elas estão oferecendo isso de modo abundante, e nós saltamos de um tipo de percepção de mundo para outro tipo de percepção de mundo.  

Como podemos nos manter lúcidos em meio a isso? Buda e Darma. Nós estamos reconhecendo o aspecto luminoso dessas construções. Nós não estamos buscando uma visão de realidade condicionada que seja derradeira. Nós estamos tomando refúgio na natureza livre da mente que está além de todas essas visões. Esse é o nosso caminho, é por isso que meditamos e praticamos. 

Quando o Buda se manifesta em meio ao mundo, isso é Nirmanakaia. Em meio ao mundo aparente, relacional, ilusório, confuso, dos seres, ele manifesta um corpo que é capaz de falar a língua da delusão. Ele não tem nenhum tipo de engano quanto a isso. Por exemplo, aqui eu estou emitindo sons e nós temos compreensões. Nós nem ouvimos os sons. As nossas compreensões são um tipo de delusão, nós construímos essas compreensões. Poderíamos rezar para estar no lugar certo, de tal maneira que os sons façam sentido para nós. E o Buda manifestou isso, é simbolizado pela flor de lótus. Em meio ao lago com as oito qualidades – ou seja, com as oito consciências –, do lodo brota o lótus, que é Nirmanakaia, que não é uma aparência comum. Ele é uma aparência extraordinária que manifesta os ensinamentos. Quando nós estamos recitando o mantra:

DJE TSUM PAG MA DROL MA TCHED TCHEN NO

a melhor mente para isso é justamente reconhecer o aspecto extraordinário em que o lodo do samsara de repente se levanta e diz:

DJE TSUM PAG MA DROL MA TCHED TCHEN NO

Das condições limitadas e do sofrimento do samsara brota um som lúcido e não outros sons condicionados. 

O corpo do Buda é uma manifestação lúcida que brota em meio às condições de sofrimento, às condições delusórias. Isso é um movimento extraordinário. E justamente disso brota a Sanga. Da mente livre do Buda brota o Darma. Da mente livre do Buda e do Darma brota a manifestação física do Buda em meio ao mundo. Dessa manifestação física surgem os cinco primeiros discípulos do Buda. O Buda explica as Quatro Nobres Verdades e a Sanga passa a existir. A Sanga não é o conjunto de pessoas condicionadas; a Sanga é o conjunto de seres mágicos que operam a partir do Buda e do Darma. O que nos une aqui não é o fato de termos afinidades pessoais uns com os outros; o que nos une aqui é o Buda e o Darma, e aí nós nos reconhecemos como Sanga. A Sanga é contínua. Ainda que as situações surjam e cessem, a Sanga segue, o Buda segue, o Darma segue. É um milagre! 

Nós temos visões modernas, visões antigas, e temos a visão que poderíamos dizer que é eterna, que é a visão do Buda, do Darma e da Sanga. A aparência pode ir mudando, mas ela brota dessa grande profundidade e se mantém viva. A melhor coisa que podemos fazer é celebrar o Buda, o Darma e a Sanga no primeiro dia do ano e começar com essa visão.

Ainda que sejamos budistas praticantes, quase iluminados, nós temos aspirações comuns, nós vemos nossas limitações. Queremos que os filhos passem no vestibular, queremos que o salário fique mais próximo das despesas, queremos trocar de carro. Se perguntarmos: “Do que estou precisando?” É difícil responder: “Eu quero a iluminação”. Eu diria que o Papai Noel é o mais próximo a Mara. No final do ano escrevemos uma cartinha para o Papai Noel: “Eu preciso disso, daquilo, etc.”.  Não escrevemos para o Buda. Para o Buda vamos pedir a iluminação. 

As limitações chegam também quando as pessoas adoecem, quando têm algum tipo de problema. Então começamos a pedir que os problemas se resolvam, que as coisas se arrumem. Essas questões são sempre condicionadas, sempre limitadas. Obtermos aquilo também não resolverá, pois outros problemas ocorrem. 

Para nós é muito importante entender essas limitações, entender o que significa tomarmos refúgio e ultrapassarmos as fixações da mente, as prisões nesses vários mundos. Podemos olhar isso de modo crítico, como se estivéssemos criticando a nós mesmos, mas o melhor é entender que nós temos uma natureza luminosa que constrói as próprias prisões, que constrói todas essas situações. Nós não nos libertamos quebrando as prisões; nós nos libertamos sorrindo para elas e reconhecendo como surgem. Quando somos capazes de sorrir para elas e reconhecer como surgem, nós tomamos refúgio na natureza incessantemente presente, livre, que constrói tudo isso. Assim, nós somos também capazes de entrar nos diversos mundos e ajudar os seres que estão naquelas circunstâncias. 

Nós relembramos isso, pelo menos, no primeiro dia do ano, mas deveríamos manter isso claro todos os dias. Essa é a nossa prática.

Tomamos refúgio no Buda, no Darma e na Sanga. Existe a Sanga ordenada. Junto com o Buda surgiu essa Sanga maravilhosa que progressivamente foi se tornando mais complexa e que passou a levar os ensinamentos para muitos diferentes lugares, para muitas diferentes culturas. Nós ainda estamos vivendo esse milagre, isso é algo incessantemente presente, que tem as suas contradições, as suas maravilhas. 

O budismo indiano chega ao Tibete na língua indiana. Por um longo tempo, os mestres, os praticantes do Tibete, foram considerados incapazes, insuficientes. Entre os grandes praticantes do Tibete que revelaram as qualidades dos tibetanos está Rongzom¹ [Chökyi Zangpo]. Tivemos a felicidade de ouvir os ensinamentos do Khenpo Sodargye sobre Rongzom, que foi contemporâneo de Atisha. Quando Atisha chegou ao Tibete, Rongzom tinha treze anos de idade, era muito jovem, mas tinha uma memória prodigiosa, ele aprendia as línguas com muita rapidez. Quando o encontrou, Atisha disse que não tinha o que dizer para ele, porque ele tinha uma memória, uma acuidade, extraordinária. Atisha é um dos mestres indianos que reintroduziu (o budismo), porque isso é posterior ao rei Lang Darma. Podemos dizer que Rongzom foi um dos precursores dos mestres tibetanos, no sentido de eles se autorizarem a falar o Darma em língua tibetana e produzir os ensinamentos a partir de suas experiências, juntamente com a contemplação dos ensinamentos antigos do próprio Buda e de outros mestres. É importante entender isso. Hoje nós olhamos para o budismo tibetano como um budismo completamente consolidado, maravilhoso, extraordinário, do mesmo modo que os tibetanos olhavam para o budismo indiano. 

Por outro lado, vamos lembrar a passagem da tradição indiana para a China, especialmente a partir de Bodhidharma. O Bodhidharma está em nosso panteão. O budismo indiano, quando chega à China, precisa se ajustar às formas chinesas. A China é quase um continente, é um conjunto de muitas culturas diferentes. Houve um tempo em que se dizia que o budismo do norte e o budismo do sul na China eram bastante diferentes. Mas norte e sul é pouco para avaliar as profundas diferenças. 

O mestre Dogen vem do Japão, faz retiros, recebe os ensinamentos e as transmissões, não mais do budismo indiano, mas do budismo chinês, que então vai gerar o budismo Zen, na linhagem Soto. Outras transmissões do budismo chinês dentro do Japão também geram outras linhagens. Mas a linhagem Soto está viva hoje. Nós temos aqui no altar Moriyama Roshi, que representa a linhagem Soto, temos o próprio Buda, budismo indiano, e temos Chagdud Rinpoche e Sua Santidade o Dalai Lama, que representam o budismo tibetano. 

É um tempo mágico, completamente maravilhoso, em que nós podemos ouvir os ensinamentos das várias dimensões. Todos esses ensinamentos são manifestações Nirmanakaia. Ou seja, eles são o lótus que se levanta do lodo e paira acima das oito consciências, permitindo-nos ver a realidade das coisas como elas são.

Em sua palestra, o Monge Koho estava lembrando que, no Zen, sempre relembramos esse aspecto, de que o Darma pode ficar oculto por milhares e milhões de ciclos universais. Agora, nós temos esse aspecto extraordinário, em que o Darma se abre e nós podemos entendê-lo, podemos aceitar, guardar, memorizar, praticar. É um tempo, em um certo sentido, de degenerescência, mas, por outro lado, se quisermos olhar de uma forma mais acolhedora, poderíamos dizer que é um tempo muito mágico, talvez como nenhum outro, em que as múltiplas influências e culturas budistas estão presencialmente conosco e, também, através de uma categoria que ninguém tinha imaginado antes, que é a categoria online. Não sabemos nem como explicar, porque está em um lugar que não existe e aparece para as pessoas à medida que elas aspiram, acessam e terminam encontrando. 

Então, nós temos esse mundo mágico, que talvez pudéssemos associar ao reino dos deuses, como se houvesse uma aliança dos deuses e do Buda para fazer essas coisas acontecerem.

Eu acho também muito comovente que possamos construir um templo, fazer uma reunião como a que estamos fazendo agora e como temos feito constantemente, sem precisar pedir licença para ninguém. Eu vivi a minha juventude dentro de um regime militar aqui no Brasil. Eu lembro que, quando três ou quatro estavam sentados conversando, sempre tinha alguém olhando, fazendo relatório e mandando para algum lugar. Aqui, na América Latina, surgiu uma palavra para isso, que era ‘persecuta’. Persecuta é uma sensação de estar sendo vigiado constantemente. Não é um estado paranoico, é um estado verdadeiro. Nas universidades, nos vários lugares, as pessoas estavam sempre sendo observadas. Se fôssemos fazer uma reunião, tínhamos certeza de que ia ter alguém olhando e fazendo relatórios, então tínhamos que pensar o que íamos dizer. Estávamos dentro de um sistema repressivo. Aqui estamos vivendo esta felicidade, porque estamos sendo vigiados só pelos nossos celulares (risos). Quando falamos, nem nos preocupamos, porque já sabemos que alguém vai ouvir. Então dizemos boas coisas para as pessoas ouvirem (risos). Mas nós temos uma sensação de liberdade, de que podemos nos reunir e fazer as coisas acontecerem.

Eu acho que, quando contemplamos mais longamente essas questões de como as realidades são construídas, podemos amadurecer em um ponto superimportante, que é o tema das terras puras. Nós podemos construir boas coisas, nós temos uma natureza luminosa. Podemos fazer esse lótus crescer, se transformar em um barco e acolher as pessoas de um jeito melhor. Isso não é apenas um empreendimento de uma mente condicionada. 

Quando olhamos desse modo, surge uma alegria, surge uma energia em nós. Essa energia vem lá da natureza búdica – vamos deixar isso claro –, ela não vem de uma coisa relacional. A energia das coisas relacionais é menor e flutuante, o que inclui as relações de namoro. As experiências de namoro às vezes alegram, daqui a pouco entristecem, frustram… e aquilo vai flutuando. É exatamente como o Buda descreve, ou seja, tudo aquilo que empreendemos e fazemos pode se tornar causa de sofrimento em algum momento. No primeiro dia do ano, não deveríamos falar sobre isso. Poderíamos dizer que tudo em que estamos envolvidos pode ser causa de felicidade. Mas aquilo é um trem: depois do vagão da felicidade, tem o vagão do sofrimento (risos).

O melhor que podemos fazer é sorrir para isso. Nós temos felicidade, sabemos que isso vai dar um pouquinho de problema e nós vamos flutuando. Quando nos aproximamos da visão de terra pura – ou seja, tomamos refúgio no Buda, passamos a entender parcialmente o Darma e começamos a manifestar esse aspecto compassivo de ajudar os seres nos vários ambientes –, a nossa energia se levanta e estabiliza. 

Certa vez estive em um CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), e eles estavam muito abalados, estavam desgastados, cansados, porque os CAPS socorrem as pessoas que estão muito perturbadas. Às vezes, eles literalmente sofrem violência física, e não têm como evitar, estão em um lugar onde vão lidar com pessoas perturbadas. Os funcionários que trabalham dentro dos CAPS sabem que vão apanhar regularmente. Não se trata de uma tortura programada, mas é uma situação em que o corpo deles vai sofrer e eles vão estar sob ameaça. Às vezes, são ameaças repentinas. Então, eles me convidaram para ir lá e colocar um pouco de energia naquilo. Eu comecei sugerindo: “Olhem, o problema é que vocês recebem salários”. Eles não entenderam. O ponto é o seguinte: quando estamos em um lugar desses, como, por exemplo, em uma escola, é melhor não trabalhar por salário. Não quer dizer não receber, é não considerar que o salário é o pagamento por sua ação. Nós estamos ali por compaixão. Nós estamos ali para ajudar os seres. Se nós efetivamente fazemos isso, a nossa energia se sustenta. Se a pessoa está ali pensando se está valendo a pena ou não, se está ganhando o suficiente para passar por isso, ela vai embora. 

Isso é parecido com a situação de pais e mães também. As mães, de repente, pensam: “O que eu fiz de errado? Eu quero a minha vida de volta” – ou alguma coisa assim. Se pais e mães operam com compaixão, com encantamento, se constroem uma terra pura, eles ficam superfelizes e andam. Mas se olharem de outro modo, esperando alguma compensação em um outro nível, aquilo não vai funcionar. 

Agora, olhem para os pais e mães aqui, olhem a cara deles. Eles estão em treinamento. Tem um ser pequeninho que os colocou em treinamento, dia e noite, literalmente, mas brota essa alegria que vem da compaixão e do amor. A compaixão e o amor vêm dessa região búdica. Se conseguimos nos conectar com isso, construímos as terras puras e conseguimos andar.

O Darma é sustentado pela energia dos budas. Se olharmos as pinturas, as construções, elas não são feitas com dinheiro. O dinheiro até pode estragar tudo. Isso pode parecer meio paradoxal, já que estamos justamente lançando uma campanha para a construção do templo. É que, de fato, nós só construímos um templo se surgir compaixão no coração das pessoas, a sensação de que elas podem avançar no caminho, que podem beneficiar outras pessoas, daí o templo está construído.  Então, o templo é construído por essa dimensão sutil. No caso das imagens, por exemplo, ninguém vai subir em uma plataforma e pintar longamente, por semanas, com todos os detalhes, com toda a atenção, se não estiver mobilizado pela energia dos budas. Poderíamos dizer que não é a pessoa que pinta, é a energia dos budas que faz os tankas surgirem, as imagens, os templos, que faz todas as coisas serem construídas. É tudo mágico. Se abandonarmos isso, nós estamos perdidos, não temos capacidade. Dizer que não temos capacidade é um bom começo, porque não somos nós mesmos. Quem vai construir isso é a energia que provém do Buda e dos mestres, seja onde for. 

Como vamos gerar terra pura? Começamos com a nossa própria prática. A nossa mente muda de posição, a energia muda, as práticas começam a se ampliar, a sanga se amplia e tudo cresce. Se nós passarmos a usar qualquer referencial do samsara, tudo afunda. 

Alguns países têm muitos templos budistas fechados, em ruínas. Eu já vi uma coleção de fotos, é muito comovente! Em alguns lugares se vê a cozinha, panelas, pratos, aquilo tudo coberto de pó, de aranhas, abandonado, como se as pessoas tivessem repentinamente saído. 

Então, a energia sobe e a energia baixa. Nós precisamos manter a energia dos budas. Esse é o ponto da nossa prática. 

A minha aspiração para este ano, uma vez que tomamos refúgio no Buda, no Darma e na Sanga, é também olhar os múltiplos eventos e as múltiplas atividades indo nessa direção: vamos acordando essa dimensão interna, vamos respondendo aos contatos do mundo, vamos produzindo boas coisas e vamos nos movimentando.  

¹ A transmissão do texto que Khenpo Sodargye ofereceu, a partir de um texto do próprio Rongzom, é Entering the Way of the Great Vehicle: Dzogchen as the Culmination of the Mahayana, Shambala, 2016.
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