Crédito: Elise Bozzetto

Praticar em meio às eleições

“O Buda constrói Terra Pura para todos os seres. Quando você for fazer campanha, faça para benefício de todos os seres”


Por
Transcrição: Rosana Folz

No dia 02 de outubro acontece no Brasil o que é apontada como a eleição mais polarizada desde a redemocratização. Constantemente durante seus ensinamentos, Lama Samten recebe perguntas a respeito de como manter-se alinhado aos ensinamentos do Buda em meio a esse cenário. A Bodisatva transcreveu e publica aqui uma das respostas que nosso professor ofereceu durante o Retiro O Caminho de Méritos e Sabedoria, que aconteceu nos dias 03 e 04 de setembro, organizado pelo CEBB Centro-Oeste. No texto, o Lama fala sobre quebra de moralidade, visão de separação e como praticar com a visão mais ampla. 


 

Todos nós somos os mesmos seres humanos. Se quisermos cortar os outros, vamos ter problema e quebra de moralidade. Toda a ação competitiva tem esse viés. De onde a compaixão poderia surgir? Se você tem uma visão compassiva, você pode até fazer campanha para um candidato(a), mas não na perspectiva de “nós” que estamos certos e “eles” que estão errados. Você pode promover aquilo que você acha que é favorável para todos. Mas se você estiver na perspectiva de hostilização, isso é um problema. Isso vale para qualquer lado. 

Se eu julgar as pessoas que pensam diferente de mim e afirmar que elas têm quebra de moralidade e eu não, isso já é uma posição de separação. Não estou considerando que todos somos seres humanos e nem considerando a Primeira Nobre Verdade como aquela que estamos aprisionados nos três animais — javali, galo e cobra. Não estou vendo mais nada disso. Estou apenas dizendo: “há uma posição particular de um javali, galo e cobra que é o que é certo. O que não for igual a isso é quebra de moralidade”. Essa é uma visão parecida com as visões da Inquisição, onde você vai “salvar” o outro, que pensa diferente, queimando ele, porque se ele queima estará mais perto do céu. Você força o outro sob tortura a confessar e depois você mata ele. Um extremo vai a isso.

Quando há uma fixação a uma posição particular, ela é considerada algo elevado e a posição oposta é demonizada. Precisamos ultrapassar isso. Isso não nos retira a liberdade de fazer o nosso movimento, mas o nosso movimento não é vinculado a hostilizar ninguém. Aqui estamos produzindo benefícios para todos os seres. O Buda constrói Terra Pura para todos os seres. Quando você for fazer campanha, faça campanha para benefício de todos os seres.

Mesmo que estejamos em um ambiente polarizado, onde as pessoas estão se hostilizando umas às outras, esse ambiente não tem futuro nenhum. As pessoas dentro de suas próprias famílias estão divididas por um pensamento sectário, não conseguem falar e expor as suas visões uns para os outros dentro da própria família, porque aquilo vai dar briga. Isso significa quebra de moralidade e podemos facilmente incorrer nisso. Esquecemos que todos nós somos os mesmos seres humanos. Hoje estamos presos a visões de um tipo e amanhã estaremos presos a outras visões. No passado, também já estivemos presos a outras. 

No budismo estamos promovendo Terra Pura. O Buda tem uma visão de como as coisas devem ser. Se as pessoas são budistas, elas olham a visão do Buda e tomam as suas decisões a partir daí. Mas o samsara é o samsara. Se estivermos presos aos três animais, vai surgir orgulho, inveja, desejo/apego, ignorância, rancor/raiva, agressão… Vai surgir tudo isso. E isso surge dentro do nosso corpo, adoece o nosso corpo, a nossa mente e as nossas emoções e causam um monte de problemas. Se as pessoas estão polarizadas e têm raiva, não precisamos excluí-las também. Continuamos pensando como fazer para as coisas melhorarem e observamos que as pessoas polarizadas e com raiva vão fazendo coisas horríveis.

Matar não é apenas dar um tiro. Matar é excluir. Proteger vidas não é apenas dar comida, mas é incluir, é dar nascimento dentro do mundo onde habitamos. Aí o outro existe dentro daquele mundo. O sectarismo é um processo de matar, é um processo de morte onde nós excluímos o outro. Dentro do mundo como concebemos, aquele ser não pode existir.

Mas todos os seres têm natureza búdica. Isso não é uma coisa vista só pelos budistas. Nas tradições dos povos da terra, as onças não são inimigas, não há inimigos. Todos os animais, as cobras, todos eles são seres mágicos, extraordinários. Quando os europeus chegaram no Peru, os nativos acolheram eles, como os animais da natureza são também acolhidos. Por que eles são acolhidos? Eles não são inimigos? Não, eles são como nós. Quando os europeus chegaram na América do Norte, eles passaram a ter muitos problemas. Os nativos deram muitas comidas para eles, ensinaram como plantar, ensinaram como funcionar naquelas regiões. Até hoje isso é lembrado. Isso não impediu que os europeus, que se transformaram nos brancos da América do Norte, não tivessem trucidado os nativos. Mas os nativos não abandonaram essa visão.

Até hoje nós estamos nessa etapa. Ainda não nos reconhecemos totalmente como iguais…

Nesse tempo agora, o que fazemos? Acho que deveríamos nos movimentar o mais próximo possível dos ensinamentos do Buda. Essa é a melhor forma. E temos uma responsabilidade que diz respeito à construção do mundo que vai decorrer logo em seguida. Que façamos o melhor que pudermos de acordo com as visões do Buda, que naturalmente vão produzir mais benefícios e menos problemas. Essa é a minha sugestão.

O budismo guarda a opção da ação irada. Se você quiser fazer a ação irada, sempre lembre que a ação irada não é contra o outro. É a favor dele. Se você abandonar a compaixão, a ação irada se transforma numa ação raivosa comum. Se você não tiver outra coisa para fazer, faz, porque enfim… a coisa  vai seguir como ela aparecer para você. Naturalmente, depois que as ações são feitas, você vai observando o efeito delas. Isso é aprender com a própria estrutura do carma. Não conseguimos evitar as coisas como elas vêm, mas podemos no mínimo aprender com a causalidade. Se não aprendermos com a causalidade, está bem também. Nós temos a natureza búdica que sobrevive às múltiplas coisas. Mas com certeza, as visões sectárias, de exclusão, de não compaixão, são visões com problemas, elas vão causar muitas dificuldades.

Se você tiver essa capacidade de penetrar nos âmbitos aflitivos e exercer a ação irada mantendo a visão compassiva em benefício de todos os seres, isso é uma super habilidade. Isso só ocorre porque a pessoa tem a possibilidade da ação de poder, ou seja, ela não se perturba. Se a pessoa estiver perturbada, ela está perturbada. Se a pessoa estiver com raiva, ela tem raiva. Se a pessoa se manifesta perturbada, com raiva, excluindo, o que vai acontecer? Vai acontecer as consequências cármicas usuais. Se a pessoa olha os ensinamentos do Buda e não entende ou não aceita, está tudo bem. Não tem nenhum problema. Não é que a pessoa seja uma boa pessoa ou uma má pessoa por conta disso. A pessoa tem a natureza búdica sempre. Ela pode aproveitar do lugar onde ela anda. É assim que o Buda ensina. O Buda nos toma no lugar onde nós estamos. Ele não fica esperando as pessoas boas. 

 

ELEIÇÕES

 

Estamos em período de eleições. Então vamos parar o Darma? Vamos tratar das eleições, porque afinal de contas quando as coisas estiverem arrumadas, se estiverem arrumadas, voltamos para o Darma? No processo do mundo, às vezes praticamos desse modo. Quando as coisas estão bem, eu vou na academia e medito um pouco. Quando as coisas estão mal, vou tratar das coisas do mundo. Essa não é a perspectiva do Darma. A perspectiva é outra. Tratamos do Darma, e as coisas do mundo vêm a partir do Darma. Não vamos tomar as coisas do mundo como uma base, não vamos fazer isso. Não funciona. Por exemplo, vocês acham que o budismo está atrapalhando o funcionamento do mundo? O budismo não está atrapalhando. As eleições estão funcionando como sempre, os golpes acontecem como sempre. Vai tudo andando do mesmo jeito. Mas no meio disso, encontramos uma base estável que é o que o Buda está trazendo. Agora, se vamos parar a base estável para entrar nas lutas como elas vão aparecendo, estamos perdendo o nosso tempo. Nisso você pode ter total certeza. 

Não deveríamos buscar converter uma coisa na outra. Não vamos converter o ensinamento do Buda em uma política que vai definir voto na eleição. Isso não é contra ninguém, mas são classes de funcionamento. Na época do Buda, o Buda dizia (isso está entre os votos monásticos): não observar batalhas. E o Buda lidou com todos os poderosos da época. Ele encontrava pessoas injustas e ele aconselhava pessoas injustas. Ele era amigo de vários reis. Ele encontrava reis que iam atacar outros reis, e ele era amigo de todos eles. Ele aconselhava e mostrava como um e outro estavam funcionando e acalmava aquilo. Mas nem sempre ele conseguia acalmar. Ele viu os reis se atacando. 

Esse processo dos poderosos assumindo poder e obtendo resultados aqui e ali é a história da humanidade. No meio da história da humanidade, as pessoas vão tomando partido. Mas é simplesmente a sucessão natural das histórias dos poderes que vão andando. E há poderes melhores e há poderes piores, evidentemente. Mas o budismo está fazendo uma outra coisa. Estamos ultrapassando olhos, ouvidos, nariz, língua e tato, e mente. Estamos ultrapassando as bolhas e olhando aquilo que está além. Vendo aquilo que é a base que nos permite olhar para o samsara e dizer que o samsara são construções luminosas, variadas. Estamos nesse tempo agora cheios de exemplos de regiões de poder e conflito que são conflitos artificiais como os múltiplos campeonatos de coisas. Tudo artificial. 

Aquilo nos permite perfeitamente ver como todas essas realidades vão sendo montadas e como isso vai ocorrendo. Ainda que possamos entender que Terra Pura é melhor, nós entendemos que Terras Puras também são construídas. Os referenciais budistas vão ser sempre os referenciais de Terra Pura, mas não temos garantia nenhuma que as pessoas que vamos escolher vão promover os resultados de Terra Pura. Não temos nenhuma garantia. Não faz sentido tomarmos refúgio dentro das estruturas do samsara ou mesmo dentro de pessoas dentro do samsara. Não tem como. Não vamos transformar as pessoas em salvadores. Isso é um  problema complicado.

Apoiadores

4 Comentários

  1. Ecledir Ana Steffanello Maciel disse:

    Estimado professor Lama Padma Samten, esse texto me ajudou a fortalecer a minha paz interior, e a focar na campanha pelo benefício de todos os seres.
    Gratidão!!!!

  2. Maria disse:

    Verdade, Não temos garantia nenhuma.

  3. Ronaldo Weisheimer disse:

    Oi, excelente, profundo e incentivador texto.

  4. Giséle C.C.Q. Guimarães disse:

    Agradecida, Lama.

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