Profundas Instruções sobre Shamata

por Jamgön Mipham Rinpoche


Por
Revisão: João Bertolini
Tradução: Guilherme Ehardt

Jamgön Ju Mipham Gyatso ou simplesmente Mipham Rinpoche (1846-1912), além de um grande mestre, foi um pensador muito influente. Seus comentários aos textos indianos tradicionais reformularam o escolasticismo dentro da linhagem Nyingma. Ele escreveu sobre os mais diferentes tópicos: pintura, poética, escultura, alquimia, medicina, lógica, filosofia e tantra. Apesar disso, passou grande parte da sua vida em retiro. No texto abaixo, ele oferece instruções de shamata no contexto da Grande Perfeição. Dessa forma, ele conecta essa forma de meditação silenciosa ao tema da visão; tornando esse texto uma abordagem muito direta sobre a prática meditativa. 


Prostro-me a Mañjuśrī!

Um resumo dos benefícios da prática 

Se você concentrar a mente [sobre ela mesma] atingirá shamata, e gradualmente surgirá a visão (vipassana) sobre a natureza das coisas.

As instruções

Conduza sua consciência comum — aquela que é vividamente clara, aberta e brilhante — para o centro vazio do seu coração e permita que repouse; esse é o significado da mente estar voltada para si mesma, e dentro desta experiência não há nada sobre o que se concentrar.

Se a mente existe, ela deveria ser encontrada dentro do corpo; mas não pode ser encontrada, nem no coração e nem em nenhum outro lugar.

Quando os pensamentos disparam, olhe para sua fonte e permaneça nisso com uma quietude serena. 

Não há necessidade de procurar a mente; simplesmente relaxe, e fique onde você estiver. Também não há necessidade de investigar se existe um “lugar” de permanência — simplesmente permaneça dentro da mente.

Está perfeitamente correto simplesmente relaxar, como se estivéssemos nos preparando para dormir. Este é o modo de repouso; qualquer outra coisa é desnecessária.

Assim como o brilho da luz do sol aumenta quando ela se reflete sobre águas turbulentas, as emoções e pensamentos proliferam em uma mente agitada; tentar interromper os pensamentos simplesmente não funcionará. Entretanto, quando as águas não estão mais agitadas, mas acomodadas e calmas, o reflexo dos raios luminosos diminuirá. Do mesmo modo, permita que a mente, que é a fonte, repouse calmamente sem agitação.

Não esqueça esta experiência, mas use um fluxo ininterrupto de atenção e vigilância para permanecer dentro da quietude natural [vazia e clara] da mente — concentrada e fresca.

Se houver uma experiência de obscuridade, relaxe dentro da sua quietude natural.

Se houver uma experiência de clareza intensa, relaxe dentro da sua quietude natural.

Se houver uma experiência da mente gerando muitos pensamentos de forma descontrolada, relaxe dentro da sua quietude natural.

Na experiência direta e despida de qualquer coisa que ocorra no momento, simplesmente relaxe, não importa o que aconteça.

Quando as experiências de obscuridade, clareza e pensamentos surgirem, reconheça-as, mas não siga ou vá atrás delas. Simplesmente repouse dentro do espaço que é o reconhecimento de sua natureza.

Com familiaridade, este [reconhecimento] permanecerá por mais e mais tempo. Permita que qualquer análise ou raciocínio grosseiro diminua por si mesmo.

Ocasionalmente, a mente pode parecer maçante e desprovida de qualquer movimento [de pensamentos]. Elimine esta sonolência e simplesmente repouse.

Em outros momentos, a mente pode aparentar estar repleta de movimento — produzindo diversos tipos de pensamentos. Nessas ocasiões, já que os movimentos não são outra coisa senão a mente, olhe para sua natureza e relaxe.

Não tente prolongar a experiência que acompanha o movimento, mas mantenha sua posição. O pensamento naturalmente diminuirá, e você verá como a agitação, a quietude, ou mesmo as sensações e emoções fortes estão na superfície da mente — relaxe profundamente.

Ao focar a mente dentro do seu coração ou simplesmente deixar a mente ser o que ela é, essencialmente é a mesma coisa. O ponto-chave é relaxá-la. Ao estar atento, os nós do pensamento soltam-se por si mesmos. [Assim como uma cobra pode soltar os nós em seu corpo sem depender de algo, a mente, quando é permitida repousar genuinamente, libera a si mesma].

As falhas de estar continuamente sob a influência do pensamento discursivo

Não há fim para os pensamentos discursivos; não desaparecem internamente e por si mesmos. Apesar de toda sua diversidade e quantidade, não apresentam resultados ou benefícios efetivos. Eles não conseguem pôr um fim aos estados mentais negativos ou ao sofrimento.

[Se deseja livrar-se do sofrimento, precisa libertar-se de suas respectivas causas].

Para isso, é preciso reconhecer as falhas do pensamento discursivo e das emoções.

Desde tempos imemoriais você permanece controlado pelos pensamentos e, como resultado, não obteve nenhuma qualidade genuína.

Agora, desista do apego a tais pensamentos e faça tudo o que puder para cultivar a quietude da mente.

As qualidades que surgem da superação do pensamento discursivo

Se você puder fazer isso, obterá muitas qualidades, tais como concentração e clarividência [não contaminada]. Você conquistará o poder de permanecer no estado natural e encontrará a bem-aventurança suprema.

Razões para empreender grandes esforços na prática

Com tal compreensão das falhas e benefícios, e havendo obtido um grau de controle sobre a mente, continue a praticar diligentemente até alcançar o calmo permanecer. [Quando você tiver passado pelas experiências meditativas de movimento, realização, familiaridade, estabilidade, experiência derradeira e alcançado o samādhi do ápice do saṃsāra].

Por meio da familiaridade com este método de meditação, o movimento da energia/vento da atividade [que dá origem a tantos pensamentos] vai convergir para o seu coração e entrar no canal central. Os pensamentos descontrolados e obstinados serão gradualmente pacificados e sua mente se tornará cada vez mais funcional e positiva.

[A atividade do vento — o movimento da energia/vento sutil dentro do corpo — naturalmente se dissolverá no canal central. O efeito disso é que, aquele que monta sob a energia, o pensamento discursivo, ficará sem sua montaria e naturalmente se dissolverá num vazio/consciência e não haverá pensamentos. O pensamento discursivo será aquietado e permanecerá na luminosidade aberta dessa ausência].

Mostrando o quão profundo é este método particular de meditação e ainda assim simples de praticar

Mesmo sem outros modos de introdução por parte do guru, estas instruções essenciais da mente repousando sobre si mesma oferecem um método simples para acalmar a mente sem nenhum dos perigos associados com a poderosa manipulação da energia.

Se for capaz de simplesmente repousar a mente sobre si mesma desta maneira, uma atenção funcional será conquistada rapidamente e sem grande dificuldade.

Aqui não há necessidade de meditar sobre os bindus/gotas sutis no coração, nem sobre letras, nem sobre qualquer aspecto e forma para isso. Tampouco há necessidade de manipular a respiração.

O método mais profundo de calmo permanecer é simplesmente ver e repousar na natureza de sua própria mente e sustentar sua continuidade atentamente. Isto é fácil de praticar e rapidamente produz resultados.

Um resumo dos tópicos: como a permanência calma desperta naturalmente a visão

Primeiro, repouse silenciosamente e deixe a mente acomodar-se. Depois, permita que ela olhe para dentro de si mesma. Exatamente como quando você olha para o espaço e não há nada para observar, pensamentos discursivos e negativos serão naturalmente liberados por si mesmos. Então o segredo da mente — dharmata, a união de vacuidade [a visão da Madhyamaka, o objeto do segundo giro da roda do dharma] e a luminosidade [o objeto do terceiro giro da roda do dharma e o objeto do mantra, a natureza búdica] — surgirão naturalmente. E, através das bênçãos da realização de um mestre qualificado perfeito, da linhagem e sua devoção perfeita, surgirá uma experiência de luminosidade vazia a partir do grande Estado Natural — a sabedoria autossurgida espontânea, que é o significado da Grande Perfeição Luminosa.

Escrito por Mipham durante a terceira parte do sexto dia do segundo mês do ano do Cavalo de Fogo.

| Traduzido por Sean Price, 2019. Os títulos foram acrescentados por Khen Yeshe Gyaltsen Rinpoche por uma questão de facilidade.

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