Letra “A” tibetana

Reiluminação

Tulku Urgyen Rinpoche nos fala sobre como redescobrir nossa natureza de buda


Por
Revisão: Dirlene Ribeiro Martins
Tradução: Marcelo Nick

Este texto do grande mestre Tulku Urgyen Rinpoche, com o curioso título de “Reiluminação”, faz parte de um livro que reúne textos Dzogchen de mestres como Padmasambhava, Milarepa e Jamgon Kongtrul, chamado Dzogchen Primer. Compilados por Marcia Binder Schmidt, os textos foram escolhidos por sua linguagem acessível e terrena, ideal para servir ao estudo e prática de quem está iniciando no caminho Dzogchen. Aqui, Tulku Urgyen fala sobre a natureza de buda e a possibilidade de nós, que somos como uma joia encoberta por lama, a redescobrirmos.


Infelizmente, os seres sencientes não são um só. Eles não se iluminam quando um se ilumina. Carmas individuais e padrões habituais são inumeráveis, e, só porque uma pessoa purificou suas faltas, obscurecimentos e tendências habituais, não significa que todas as outras purificaram os seus. Fundamentalmente, todos precisam seguir o caminho sozinhos e purificar seus próprios obscurecimentos. Os budas do passado não foram capazes de liberar todos os seres sencientes, nem mesmo Avalokiteshvara. Mas, se um alcança a iluminação — por meio do poder de sua compaixão e vastas aspirações —, ele lentamente será capaz de guiar um número incrível de seres sencientes até a iluminação. Particularmente, quando um praticante alcança o corpo de arco-íris, diz-se que três mil seres sencientes obtêm a liberação ao mesmo tempo com a manifestação do corpo de arco-íris.

No passado, houve alguns poucos casos em que muitas pessoas alcançaram a iluminação simultaneamente, porque já tinham a continuidade cármica de práticas anteriores. No país de Oddiyana, cem mil pessoas alcançaram a iluminação simultaneamente. Mas esses casos são muito raros.

Não há outra maneira de se iluminar do que reconhecendo a natureza búdica e gerando a estabilidade nela. Os budas do passado fizeram isso, e os praticantes de hoje em dia — que serão os budas do futuro — farão o mesmo reconhecendo sua própria natureza e gerando a estabilidade nela. Não há outra maneira. Ninguém pode alcançar a iluminação por nós e nos levar à liberação. Depende completamente de nós mesmos.

Por exemplo, se houvesse um grupo em que todos recebessem instruções, reconhecessem a natureza da mente, se empenhassem na prática e se familiarizassem com a natureza búdica, certamente todo o grupo poderia se iluminar nesta mesma vida. Mas as pessoas têm capacidades e disposições cármicas diferentes, por isso não é possível ter certeza de quantas reconhecem a natureza búdica da maneira correta quando esta lhe é apontada. Também não há como ter certeza de quantas se empenharão na prática após terem reconhecido a natureza da mente. Por essa razão, não existe garantia de que todas alcançarão a iluminação em uma vida.

Um número incrível de praticantes do passado obtiveram a realização e a liberação: os grandes bodisatvas e mahasidas da Índia, bem como os tibetanos de diferentes linhagens. Basta ler a história de como muitos praticantes fizeram isso. Eles são como as estrelas que podemos ver à noite. Com certeza é possível, só depende de nós.

Para os seres sencientes como um todo, o samsara é infinito, mas cada pessoa que pratica e desperta para a iluminação chega ao fim da existência samsárica. São duas as possibilidades: o caminho sem fim do samsara, e o caminho com um fim para o samsara. Agora mesmo, podemos escolher entre as duas. Podemos praticar, obter a realização e alcançar a iluminação — cortando todos os laços com a nossa existência samsárica como seres sencientes deludidos. Para aquele completamente sob o poder do pensamento discursivo, o caminho do samsara continua infinitamente. Quando se domina a essência da mente, aperfeiçoando a prática de rigpa, a existência samsárica chega ao fim.

Três palavras-chave resumem todos os ensinamentos do Darma: base, caminho e fruição. A base, a natureza búdica, o darmakaia de todos os budas, é como uma joia que realiza desejos. É o alicerce para budas e seres sencientes; não há diferença alguma. Diz-se que a natureza da mente é como uma joia que realiza desejos. Aqueles que falham em reconhecer isso são chamados de seres sencientes; aqueles que realizam são chamados de budas. Em outras palavras, a joia dos budas não caiu na lama, enquanto a joia dos seres sencientes caiu na lama e está coberta de sujeira.
Primeiro havia uma joia, então ela caiu na lama, sob o poder da delusão. Estar sob o poder da delusão ou confusão é chamado de caminho. Todas as tentativas de limpar a joia para remover a sujeira que a obscurece são exemplos de práticas espirituais que permitem obter a realização.

O termo buda refere-se a alguém que realizou a base antes de tudo. Nesse contexto, buda se refere à iluminação primordial. Os seres sencientes não têm chance de alcançar a iluminação primordial, uma vez que já sujaram sua joia. Mas, ao limpar a joia por meio de práticas de visualização, recitação e meditação, purificam-se os obscurecimentos de corpo, fala e mente e se obtêm as acumulações de mérito e sabedoria. Assim, há a possibilidade de alcançar a “reiluminação”, e isto é chamado de fruição.

Dito de outra maneira, os budas não se desviam para o estado deludido de um caminho. Como sua joia não caiu na lama, ela não precisa ser limpa. O estado dos seres sencientes é como o de uma joia que caiu na lama. A sujeira precisa ser removida para restabelecer a sua pureza. A história da joia que realiza desejos é tal que, uma vez que seja limpa, ela pode ser colocada no topo de um estandarte da vitória. Pode-se fazer oferendas a ela, e ela então realizará todos os desejos — isso é a fruição.

A base é a natureza búdica, que é como uma joia que realiza desejos. Ela está presente em todos os seres, assim como o óleo está presente em qualquer semente de gergelim. Todos os seres têm a natureza de buda, mas isso não basta. A segunda coisa necessária é o suporte de um corpo físico: o corpo humano precioso. Só um humano é capaz de praticar e despertar para a iluminação. Os insetos e animais têm essência iluminada, mas seu corpo não é suporte para realizá-la, porque eles não podem receber ensinamentos ou falar. Eles não participam de palestras do Darma e não recebem ensinamentos. Só humanos fazem isso. O terceiro fator necessário é a circunstância positiva de um professor espiritual. Esses três fatores precisam coincidir: ter a natureza búdica, ser um humano com um corpo humano precioso e se conectar com um professor espiritual. Então é possível receber as instruções corretas de como reconhecer e realizar a natureza que nós já temos. Apesar de não podermos ser primordialmente iluminados, podemos nos tornar reiluminados.

Atualmente temos todos esses três fatores: temos a natureza búdica, somos humanos e estamos conectados com um professor espiritual. Se deixarmos essa oportunidade preciosa escapar, não praticarmos e só assistirmos à vida passar até morrermos, isso seria como retornar de mãos vazias de uma ilha cheia de tesouros.

Os seres sencientes estão perdidos. Perdemos nossa natureza búdica. Um exemplo disso é uma pessoa inepta que se perde em meio à multidão e não sabe quem é até que alguém diga: “Aí está você!”. Se não reconhecermos nossa verdadeira natureza, somos como essa pessoa perdida na multidão, perguntando: “Onde eu estou?”. Nós temos de nos “encontrar”. Mesmo que pareçamos estar perdidos, pela virtude da circunstância positiva de ter um professor espiritual, podemos ser apresentados à nossa natureza “perdida”. O professor espiritual não nos entrega algo que já não temos. Nós temos, mas perdemos, por assim dizer. Não há infortúnio maior do que perder aquilo que já temos: o buda dentro de nós mesmos. As qualidades de um buda iluminado não são as qualidades dele; elas são as qualidade da natureza de buda totalmente manifesta. Nós também temos o mesmo potencial, mas ele está escondido, dormente.

Se a nossa natureza búdica está além da delusão e da liberação, não podemos dizer também que em essência somos primordialmente iluminados? Poderíamos ter sucesso em aceitar tal truque filosófico, mas não é realmente verdade, porque já nos desviamos para o caminho. Se nunca tivéssemos caído em confusão, seria legítimo afirmarmos que somos primordialmente iluminados. Mas, infelizmente, é tarde demais para fazer essa afirmação. Nossa joia que realiza desejos já caiu na lama malcheirosa. Iluminação primordial significa que base e fruição são idênticas, e não há caminho de delusão a ser eliminado. Isso é definitivamente diferente da nossa situação, na qual já nos desviamos para o caminho e, portanto, precisamos eliminar a delusão para chegarmos à fruição. Pegue o exemplo de uma miríade de joias: algumas estão cobertas de lama, algumas estão limpas. Todas são joias, mas cada uma é distintamente individual. As mentes dos seres sencientes percebem individualmente, então precisamos dizer que elas estão separadas.

Esse é um exemplo muito bom: ver todos os seres e budas como joias incontáveis, algumas cobertas de lama, algumas limpas. Elas não são idênticas, apesar de terem as mesmas qualidades. Se as mentes de todos os seres sencientes fossem uma, então, quando um indivíduo alcançasse a iluminação, todos os outros deveriam ser liberados no mesmo momento. Mas, se você alcançar a iluminação, não quer dizer que eu serei iluminado. Entenda assim: apesar de os seres terem qualidades similares, nós não somos um. Temos a mesma essência, que é vazia e consciente, mas nossa forma de manifestação é separada, distinta da de outro ser senciente.

Se eu reconheço a natureza búdica e alcanço a iluminação, não significa que outra pessoa também a reconhece e alcança a iluminação. Sinto muito! Se os seres compartilhassem a mesma essência e manifestação, quando um alcançasse a iluminação, todos alcançariam também. Somos como ouro puro espalhado por diferentes lugares: mesma qualidade, mas pedaços separados. Assim como ocorre com a água: as propriedades da água são idênticas, mas há água em muitos lugares diferentes neste mundo. Ou pense no espaço dentro das nossas diferentes casas — o mesmo espaço, mas com vários formatos. A percepção do vazio é idêntica, mas o “formato” em torno é distintivamente individual. Algumas joias tiveram sorte, outras caíram na lama.


Este texto é parte do livro The Dzogchen Primer: Embracing the spiritual path according to the Great Perfection, compilado e editado por Marcia Binder Schmidt (Shambala, 2002)

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