Em homenagem ao Losar, Ano Novo tibetano, começamos uma série de ensinamentos que Lama Padma Samten ofereceu durante a virada do ano ocidental no 108 Horas de Paz.
Em homenagem ao Losar, o Ano Novo tibetano, que iniciou no dia 5 de fevereiro, começamos hoje uma série de ensinamentos que Lama Padma Samten ofereceu à Sanga durante a virada do ano ocidental no 108 Horas de Paz, no templo do CEBB Caminho do Meio.
Diferentes comunidades tibetanas e centros budistas ao redor do mundo estão celebrando este período tradicional e auspicioso, que se estende pelos 15 dias posteriores. De acordo com o calendário lunar e a astrologia tibetanas, o ano de 2146 é o ano da Porca da Terra.
Neste trecho, o Lama fala de nosso aspecto mais profundo: a liberdade natural e primordial incessantemente presente, mesmo quando operamos pelos doze elos da originação dependente, sofrendo por insatisfatoriedade e não reconhecimento da impermanência.
Nas próximas semanas, a Bodisatva vai compartilhar a continuação deste ensinamento. Acompanhem em nossas redes sociais! O Losar é um momento único para agradecer, refazer os votos e amadurecer nossa aspiração de beneficiar todos os seres!
Nós observamos que, em nossa vida, vamos trocando de estados. Podemos considerar: “Que coisa terrível, queria encontrar um estado final que, aliás, fosse feliz e no qual estivesse tudo bem”. Por vezes, dentro dos doze elos da originação dependente, que desvenda o jeito como a mente opera, encontramos estados de felicidade que parecem totalmente verdadeiros, mas que, na verdade, estão na dependência de circunstâncias.
O Buda vai descrever isso assim: operando a partir de olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente, fazemos contato. Quando fazemos contato, filtramos: gosto ou não gosto. Se nós gostamos, aparentemente está resolvido. Mas isso é a essência do samsara. Estamos na dependência de algo. Mesmo que aquilo continue igual, com o tempo somos nós que mudamos internamente e aquilo não satisfaz mais. É muito comum também ocorrer o contrário: continuamos iguais, mas as coisas mudam e aquilo também não satisfaz mais.
Lembro de uma senhora me dizendo: “Não o aguento mais, ele está sempre igual. Ele é uma boa pessoa, mas ficou meio igual demais!“. Depois de um tempo, encontrei outra senhora que dizia: “Eu não o aguento mais, ele está sempre mudando!“. Essencialmente, essa é a nossa dificuldade. Podemos ter dificuldades porque as coisas mudam, e podemos ter dificuldades porque as coisas não mudam.
Quem viveu em uma cidade do interior longínqua sabe o que é as coisas não mudarem, tudo sempre igual. Levantamos de manhã, vemos o outro abrindo a janela e dizendo: “Bom dia!”, da mesma forma que no dia anterior, e no outro, e no outro… Saímos na rua e cumprimentamos sempre as mesmas pessoas. A vida é aquilo. Por outro lado, se vivemos em uma grande cidade, talvez não tenhamos vínculo algum, todo mundo andando apressado, não há proximidade. Então, podemos sofrer por várias razões.
Na visão budista, o sofrimento está ligado a esse software. Os doze elos da originação dependente não são nossa existência; eles são um software que geramos. Isso é espantoso! Mas quando percebemos que somos nós que construímos as realidades, elas se dissolvem. Lá pelas tantas pode surgir uma pergunta: “Bom, se eu crio essas realidades e elas se dissolvem, o que é que cria isso? E, quando se dissolve, se dissolve onde?“. Daí surge o óbvio, que é o fato de que há uma natureza produzindo essa criação.
Quando as coisas se dissolvem, essa natureza não se dissolve, tanto que ela cria outra coisa. Temos algo misterioso que, na perspectiva budista, é chamado de aspecto secreto. O aspecto secreto está presente, totalmente presente, visivelmente presente, só que não o percebemos. Estamos operando com o software de gostar ou não gostar, que é o software dos doze elos.
Portanto, o fato de que tem alguma coisa mais profunda não vem muito ao caso. Vamos dizer: “Bom, mas eu estou em sofrimento. Se isso vem não sei de onde, não me importa! O que me importa é que agora quero ultrapassar o sofrimento, quero ter controle sobre as coisas, obter um resultado positivo e escapar de coisas negativas“.
Contudo, essa tentativa de buscarmos coisas positivas e escaparmos de coisas negativas é infinita, não tem solução. Por outro lado, quanto mais nos aproximarmos desse aspecto secreto, primordial, menos oscilaremos. Começaremos a viver de forma mais equilibrada: se as coisas oscilam, temos um refúgio natural em um aspecto que não oscila e começamos a cruzar melhor pelo conjunto de circunstâncias.
Para nós, assim, fica mais fácil pensarmos: “O que está indo bem e como fazer melhor?”. Não perdemos tempo olhando para trás e apontando culpados, apontando estruturas, nem mesmo nos consideramos culpados de coisas que foram feitas. Isso é totalmente inútil, pois nossas identidades são fantasmagóricas.
Por exemplo, se durante os sonhos fazemos coisas equivocadas e temos sofrimentos, não faz sentido pensar depois que a gente acorda: “Por que tomei decisões erradas no meio do meu sonho?”. Não faz sentido, eu não sou aquilo. No caso do sonho, é mais fácil; no caso da vida cotidiana, não é tão fácil percebermos que não somos aquilo.
Esse discurso é completa e absurdamente subversivo, porque, se a pessoa diz isso na frente de um juiz, ele não consegue mais condená-la. E o sistema jurídico como um todo desaba. Nós buscamos caracterizar a pessoa, fotografar, gravar, ter certeza de que ela fez aquilo, para nós punirmos. É uma coisa espantosa, porque o sistema penal aspira a que a pessoa, enfim, se torne uma pessoa melhor – e, de modo geral, não consegue. Mas, se ela vai se tornar uma pessoa melhor, então essa pessoa não é aquilo. Ela é um ser livre que se manifestou daquele modo, e depois vai se manifestar de outro jeito.
Esse é um diálogo interessante, porque também abarca o próprio cristianismo. No filme O Auto da Compadecida acontece algo muito interessante. A pessoa – um malandro – é condenada e se defronta com o demônio, porque não tem outro lugar para ir a não ser os infernos. Na última hora, ele invoca a Compadecida, ou seja, Arya Tara. Ela olha e diz: “Oh, pobrezinho, ele passou por muitas dificuldades, teve muitos problemas… então tá! Ele está fora.”. Aquilo está explicado. O demônio se revolta: “Olha, desse jeito não vai sobrar ninguém para vir para cá!”. Esse é um ponto interessante: um diálogo entre a psicologia e as normas de conduta do mundo, também as religiosas.
No caso do budismo, também é interessante o diálogo do Buda com Ananda, depois de Ananda involuntariamente se envolver em uma circunstância que não sei bem como explicar. Hoje, a manchete seria: “Ananda foi encontrado em tal lugar…”, mas o Ananda apareceu na frente do Buda e disse: “O que falhou no seu ensinamento que, mesmo eu tendo ouvido tudo, não deu certo?”. Eu acho isso uma perfeição, uma maravilha! O Buda falou tudo, mas pode ser que não tenham entendido, então eis aí uma falha.
Poderíamos pensar: quem é Ananda? É o braço direito do Buda, aquele que ajuda e está sempre junto do Buda? Ou é aquele que, tão pronto o Buda se afasta, aparece naquele lugar de luzes vermelhas, cheio de alegrias do mundo, e embarca naquilo direto? Como é possível isso? Ele é o quê? Eu quero saber!
Essa pergunta já tem 2500 anos. Nós temos de resolver isso: o que é o Ananda? O Ananda é a natureza livre. Ananda poderia dizer: “Eu não sou nem isso, nem aquilo, eu sou uma natureza livre”. Mas esse aspecto também não serve. Como surge um balizamento dentro disso? A visão espiritual não é aleatória, como ela surge? Ela surge desse aspecto secreto e livre. Isso é a base de Guru Yoga.
Trecho da tradicional palestra de abertura do ano, oferecida por Lama Padma Samten, que está disponível aqui.
Complemente sua leitura com os outros textos desta série de ensinamentos do Lama Padma Samten clicando aqui.
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1 Comentário
Tashi delek ^.^ gratidão :}
“Nós temos uma natural liberdade de correção, de mudança, de surgir de outro jeito. Mas o ponto principal não é surgir de outro jeito; o aspecto principal é que não somos nenhum dos jeitos que surgem.”