Ilustração por Zuzu Galova

Sopa da Ansiedade

Neste texto descontraído, a renomada escritora Alice Walker nos oferece uma receita chamada por ela de “Sopa da Ansiedade” que — ela garante — vai nos ajudar a atravessar os tempos difíceis


Por
Revisão: Daniel dos Santos Leite e Caroline Souza
Tradução: Filippe Ximenes

Você sabe, assim como eu, que nas próximas eleições vamos escolher os líderes mundiais que serão requisitados a estarem junto de nós durante o período, talvez, mais difícil para os seres humanos no planeta Terra. Nossa ansiedade por essa situação é compreensível. Olhando para alguns dos candidatos, já gritamos e gememos muito por aí. Nosso desânimo só se iguala ao nosso alarmismo. No entanto, existem muitos caminhos para lidar com essa falta de confiança, essa instabilidade emocional e esse terror; sem dúvida, utilizaremos todos eles até que o dia final, 4 de novembro, chegue. Alguns de nós beberão mais do que o normal, alguns usarão drogas, muitos entrarão em brigas com os amigos e a família e serão hostis e agressivos com pessoas que não conhecem. Milhões de nós se sentirão desesperançados e deprimidos, acreditando que, não interessa o que fizermos, não poderemos escapar do carma que está surgindo especialmente o que está vindo em direção aos Estados Unidos. Até mesmo uma análise histórica superficial e uma olhada de relance à forma como o nosso governo tratou outros, por séculos, nos fariam jogar a toalha, deitar em nossas camas, puxar o cobertor sobre a cabeça e chorar. 

Eu seria negligente, enquanto uma anciã do planeta, se não me pronunciasse neste momento em relação a formas de lidar com esse período de instabilidade emocional, psicológica, ideológica e financeira. Porque eu já vivi relativamente bastante, comparada com alguns de vocês que são meras crianças, mesmo se já estiverem nos seus vinte ou trinta anos. Encontro-me, definitivamente, em um planalto desde o qual a adolescência me parece manejável e os anos desta fase já não são tão misteriosos. O fim dos vinte e todos os anos até os quarenta são infernais para todo mundo, pelo que sei. Mas pelo menos você foi avisado. Assim, eu gostaria de ofertar uma coisa que eu mesma tomo e que é o único tipo de remédio que costumo oferecer: a Sopa da Ansiedade. 

Primeiramente, a Sopa da Ansiedade está sempre crescendo e se expandindo; ela é eclética, se autoescolhe e já está ao seu alcance. A principal coisa que ela assume é que você está indo até ela em sã consciência: que você já devolveu a garrafa de bebida alcoólica à prateleira, disse não para drogas de qualquer tipo e realizou a viril ou feminina decisão de não arranjar brigas. De fato, ela assume que você se considera livre. Este sendo o caso, você já está pronto para o ingrediente número 1. O ingrediente número 1 é a dança.  Na verdade existe uma disputa entre dança e meditação, mas para mim, durante esse período a dança triunfa sobre a meditação, pelo menos a meditação sentada, porque enquanto estou escutando a retórica dos políticos eu acho extremamente difícil sentar parada. É nessa hora que eu coloco para tocar um dos CDs mais instrutivos, inteligentes, históricos e dançáveis já produzidos, Back on the Block, de Quincy Jones e uma série de outros músicos maravilhosos que nos embalam enquanto contam a história maravilhosa da nossa mais comovente música norte-americana. Eu também uso um CD Medicinal, junto com Twenty-Four Seven, de Tina Turner um álbum surpreendentemente maduro, de alma negra e voltado à sobrevivência para me animar ao longo de cinco ou seis milhas de pedaladas. Também tem Deep Forest, um CD reconfortante que apresenta as vozes dos nossos ancestrais da floresta tropical, e quase tudo de Oliver Mtukudzi. Mas você fará sua própria lista, e muitos de vocês, sentindo a necessidade desse remédio, já o fizeram. Após terem feito a lista, usem-na. O melhor horário para dançar e pedalar, para mim, é pela manhã. Se eu consigo acordar cedo o suficiente para usufruir desse remédio por pelo menos uma hora, consigo escutar a maioria das loucuras políticas com uma mente relativamente desapegada. 

Fonte: Pinterest

O ingrediente número 2, em outros tempos, seria o ingrediente número 1: meditação sentada. Na minha experiência, não há nada melhor que meditação, para tudo. Não interessa qual o problema, minha opinião é: meditação é a solução. Compartilho dessa crença com muitas pessoas, a maioria delas mais disciplinadas do que eu. Comecei a meditar quando era criança ainda me parece o estado humano mais natural e aprendi a meditação formal com cerca de trinta anos. Ela salvou a minha vida. Para praticá-la, qualquer canto privado da sua casa ou carro já serve. Quando eu morava no Mississippi e o Klan ocasionalmente deixava seus cartões na nossa caixa de correio, eu costumava meditar em quartos de hotel. Sente com a pelve inclinada para a frente, respire de modo a conseguir notar sua respiração mais do que qualquer outra coisa que estiver acontecendo, mantenha um relógio por perto se precisar observar o tempo, e por vinte minutos ou uma hora mergulhe no êxtase de passar o fio dental na sua mente. Não interessa o quão irritante, qualquer idiotice política pode ser limpa da sua mente, da mesma forma que o fio dental limpa o queijo entre os seus dentes. Ela irá embora, como a profunda irritação que era, para sempre. Talvez você se recorde dela, depois, quando estiver tranquilo. O que eu mais gosto na meditação é de uma experiência que nós também conseguimos alcançar quando sentamos no chão nos permitimos ficar sob deriva das árvores: o sabor da eternidade. É esse sabor que nos lembra que ainda estaremos aqui para muito além desses quatro anos de confusão e desastre; além ainda de oito anos de completa ruína. Na verdade, quando escorregamos do mero tempo para a eternidade, o medo nos abandona por completo.  Nós nos tornamos conscientes de que sempre existimos, em alguma forma; que nós presumivelmente não vamos a lugar algum, visto que o Universo, apesar de vasto, provavelmente é um sistema fechado, então nós bem que podemos relaxar. É possível que tenhamos bombardeios nucleares e um profundo congelamento global no futuro, mas quem morre no final das contas? Ninguém. É claro que talvez eu e você morramos, e isso seria lamentável, mas depois de milhões de anos de gelo até o plutonium se transformará em fertilizante e eu provavelmente verei você pelos olhos de uma ameba. Qualquer que seja a forma deste olho no futuro. 

Ingrediente número 3: acabei de ler uma declaração do meu consultor financeiro, que também é um bom escritor pra minha sorte. Enquanto processava as notícias terríveis sobre as perdas financeiras que quase todo mundo sofreu nas últimas semanas do derretimento de Wall Street, ele mencionou que a única ação que não caiu, mas na verdade subiu, foi a da Campbell Soup (marca de sopa dos Estados Unidos). E isso me leva ao ingrediente número 3 da Sopa da Ansiedade, que é, literalmente, sopa. Mas é o tipo de sopa feita por você, desde o zero. Sopa é uma comida maravilhosa porque, assim como saladas (utilizando apenas ingredientes frescos), você pode fazer uma sopa com quase qualquer coisa: talos de aipo mortos ou velhos há muito tempo, tomates ou batatas murchas, cogumelos enrugados, nabo azedo ou feijão seco. Qualquer coisa que tiver ao alcance serve. E sopa, não interessa do que for, sempre terá um gosto bom. Exceto sapatos velhos! Mas esse é o lado mágico da sopa: você só pode errar se não tiver nenhum senso de paladar ou derramar uma xícara de cominho quando deveria adicionar uma pitada. Escolha sua maior panela e se concentre em fazer uma limpa na geladeira. Se não tiver nada lá, saia e vá comprar. Compre muitos vegetais diferentes, inclusive alguns que nunca viu antes. Passe uma hora cortando cabeças e partindo coisas ao meio; isso vai aliviar a tensão que você nem sabia que carregava. Adicione muita cebola e alho, você quer ter um bafo forte; deixe as lágrimas caírem na panela, você está chorando pelo seu país. Coloque música enquanto você pica e mexe a panela ou use o tempo para fazer meditação silenciosa, agradecendo aos vegetais por aparecerem na sua cozinha prontos para se sacrificarem por você. Convide alguém para compartilhar da sopa com você; despeje-a em grandes tigelas rústicas. Adicione arroz integral ou quinoa se tiver, levedura (para os seus nervos) e, se você puder, coma na frente de um fogo caseiro.

E agora vamos para o último ingrediente: aconchego. Eu tenho amigos que dormem com seus cachorros e riram de mim porque eu não entendi por que a banda Three Dog Night se chama assim. Minha cadela era pesada e quente demais para eu me sentir confortável dormindo com ela, mas eu sempre gostei de dormir com minha gata, que é perfeita, exceto pelo fato de que eu me preocupo demais com o conforto dela e evito me mexer, o que me deixa com várias câimbras. O melhor aconchego geralmente é com um humano; isso eu descobri depois de muita tentativa e erro. Portanto, se tiver animais em volta ou um humano, você está bem. E se a pessoa ou o animal não for muito de aconchego e você for, isso é um problema sério. Você quer alguém que ame uma cama grande e fofinha, que goste da luz de um abajur ou de uma vela acesa, que adore o som da chuva e que, quando você diz que acha que vai nevar, vira pra você e sorri. Aconchego é o melhor ingrediente da Sopa da Ansiedade porque é de graça, é divertido, combina com filmes antigos, vai bem com pizza e também combina com duas pessoas lendo bons livros ou escutando boa música. Vai muito bem com preguiça e tirar uma soneca e abraçar e mimar e se enganchar com braços e pernas e com a mistura de respirações deliciosas e com a paz profunda de um ronco feliz!

Portanto, aqui está a receita para a Sopa da Ansiedade! Que possamos continuar a ser pessoas resistentes que sobrevivem aos seus algozes como a minha avó, que sobreviveu a um século de pessoas que achavam que a possuíam. Ela fez isso simplesmente vivendo até os 125 anos. Nós também podemos, apesar de toda a conversa sobre os enganos do nosso país e sua destruição multi-tentacular. Parte da Sopa da Ansiedade dela foi a crença de que nós nunca deveríamos cobrir o pulso de nossas gargantas e, mesmo no inverno mais profundo, ela deixava a sua própria garganta à mostra. Provando, durante um dos períodos mais difíceis da nossa república quando as pessoas eram possuídas por gente comum que elas viam todos os dias (e com as quais muitas vezes tinham parentesco), e não por corporações sem rosto que se escondem por trás de propaganda , que uma boa Sopa da Ansiedade pode ser feita à base de qualquer coisa.


Leia o texto de Alice Walker em inglês clicando aqui.

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