Foto: Manja Benic

Surangama Sutra

Num dos sutras mais relevantes do budismo Mahayana, o Buda ensina sobre a verdadeira natureza da mente


Por
Revisão: Danilo Martelli
Transcrição: Ormando M. N.
Tradução: Lama Padma Samten

Um dos sutras mais relevantes do budismo Mahayana, especialmente para as escolas chinesas, o Surangama Sutra consiste no ensinamento do Buda sobre a verdadeira natureza da mente, transmitido ao seu discípulo Ananda. Segundo o venerável mestre Hsuan Hua, trata-se de um dos mais importantes discursos do Buda, e seu desaparecimento, quando acontecer, será um sinal do declínio do Darma em nosso mundo. O texto a seguir é um dos ensinamentos contidos no Surangama Sutra e foi traduzido livremente pelo Lama Padma Samten.


Surangama Sutra

O senhor Buda disse:

Ananda, apesar de teres aprendido muitas coisas pelo teu cérebro maravilhoso, ainda não atingiste o perfeito domínio da mente. A tua mente entende teus pensamentos confusos, mas quando este verdadeiro pensamento “confuso” é apresentado, tu falhas em compreendê-lo. Tenho receio que a tua fé em meu ensinamento não esteja bem fundamentada. Para ajudá-lo a esclarecer estas incertezas, farei algumas questões simples.

Então, o Senhor Buda bateu em seu gongo e perguntou a Ananda se ele havia ouvido o som.

Ananda respondeu que sim. Após a vibração do som ter cessado, o Senhor Buda indagou:

—Podes ainda ouvir?

Ananda respondeu que não mais ouvia.

O Senhor Buda soou novamente o gongo e perguntou:

— Ouviste a batida do gongo?

— Sim, Abençoado Senhor.

Então o Senhor Buda disse a Ananda:

— Por que respondes uma vez que ouves e na outra vez que não ouves?

— Abençoado Senhor, quando o gongo foi batido, eu ouvi o som, mas quando as vibrações amorteceram, o som cessou. Isso é o que quero expressar quando digo que em um momento eu ouvi e no outro não ouvi.

Novamente o Senhor Buda bateu o gongo e perguntou a Ananda se ele podia ainda ouvir. Ananda afirmou que podia.

Após um intervalo, quando o som cessou, o Senhor Buda inquiriu novamente:

— Ainda ouves?

Ananda replicou, já um pouco impaciente:

— Não, Senhor Abençoado, o som cessou, como poderia ouvir?

Então o Senhor Buda disse:

— Ananda, qual é o sentido de tudo isso? Em um momento tu ouves, e em outro não podes ouvir?

— Abençoado Senhor, quando o gongo é acionado, há som. Após um tempo o som cessa, então não há som.

O Senhor Buda o interrompeu, dizendo:

— Ananda, por que fazes essas afirmações confusas?

— Abençoado, por que o senhor me acusa de fazer afirmações confusas, se apenas falo de fatos?

— Ainda perguntas por quê, Ananda? Quando eu perguntei se tinhas ouvido o som do gongo, disseste que sim, mas quando perguntei se ainda podias ouvi-lo, respondeste uma vez que podias e outra que não mais podias. Tu não pareces compreender que o som do gongo, a audição do som e a percepção da audição são três coisas diferentes, pois respondes sem qualquer reconhecimento dessa diferença. Esta é a razão pela qual eu disse que estás fazendo afirmações confusas. Esta é a diferença entre som e não som e entre audição e não audição. Som e não som são momentâneos, enquanto que audição e não audição são permanentes. Som e não som são imaginários, enquanto que a audição pertence à pura essência da mente. Ananda, dizes coisas erradas quando afirmas que não há mais audição, apenas porque cessa o som. Se fosse verdade que a audição termina quando o ruído cessa, isso significaria que o órgão do ouvido seria destruído. Quando o gongo fosse novamente acionado, ele não seria mais ouvido, mas tu o ouviste, isto significa que poderias ouvir durante todo o tempo. Dessa forma, tu deverias reconhecer que tua audição do som e tua não-audição do som estão relacionadas à existência e não existência do som e não à percepção do ouvido. Se relembrares isto, tua natureza auditiva não te parecerá tornar-se alternadamente existente e não existente.

Pudesse a natureza da audição realmente desaparecer, então, através de quem seria o desaparecimento precedido? Portanto, Ananda, o objeto-som, no escopo da natureza auditiva, tem sua própria morte e renascimento. Não é porque notas a existência de som ou a não existência de som que deves pensar que a tua natureza auditiva está existindo ou não existindo.

Como tua mente está ainda em um estado de confusão, quando ela confunde o som com a natureza auditiva, não é de admirar que ela se torne incontrolável nos envolvimentos causados pelo erro de tomar a natureza da permanência como sendo a mesma da destrutibilidade. Portanto, não é correto tu afirmares que, tão logo a audição é separada das condições de movimento e ausência de movimento, penetrabilidade e impenetrabilidade, que a percepção da audição não tem natureza essencial por si própria. A faculdade da audição pode ser ligada a uma pessoa sonolenta deste mundo, dormindo profundamente em sua cama. Durante seu sono, alguém de sua família está batendo suas roupas, enquanto elas são lavadas, e alguém mais está pilando arroz. O som da pilagem em seus sonhos mescla-se com as batidas da roupa e torna-se como o ‘rat-a-pan’ e o ‘dum-dum’ de um tambor. Em seu sonho, ele se admira porque o ‘ding-dong’ algumas vezes soa como se viesse de uma madeira e, outras vezes, como se viesse de uma pedra. Quando ele se levantou, imediatamente compreendeu que o som veio das roupas sendo batidas na tábua e da pedra onde o arroz era pilado. Ele falou a sua família sobre o sonho e de como tinha ficado confuso com o som, pensando tratar-se de um tambor.

Ananda, em seu sonho o homem fica confundido nos conceitos de movimento e ausência de movimento com relação aos sons ou de penetrabilidade e impenetrabilidade, com relação ao órgão de audição, mas ainda que seu corpo estivesse dormindo, ainda assim, a parte essencial da audição estava clara como sempre. Por meio desta ilustração, tu deves ver que apesar da destruição do teu corpo e gradual exaustão da vitalidade de tua vida, a natureza essencial da concepção da audição não é destruída nem levada ao desaparecimento.

Portanto, como todos os seres sensoriais têm tido desejos ardentes desde tempo sem início – após visões belas e sons musicais preenchendo suas mentes com pensamento após pensamento, fazendo-a sempre ativa, e nunca compreendendo que, por natureza, ela é perfeita, pura, misteriosa, permanente e essencial – eles são levados a seguir a corrente das mortes e renascimentos transitórios em vez de seguir o caminho da permanência. Isto tem acontecido sucessivamente, vida após vida, de um modo carregado de contaminações, impermanência e sofrimentos.

Ananda, se pudesses apenas aprender a ficar livre desta ligação a mortes e renascimentos e deste medo da impermanência, aprender a concentrar tua mente em tua verdadeira e permanente natureza de permanência, então o eterno brilho iria iluminá-lo e todas as percepções individualizadas e discriminadas dos fenômenos objetivos, dos órgãos dos sentidos, das falsas imaginações, do eu e não eu desapareceriam, pois os fenômenos da mente pensante são apenas coisas transitórias e vazias. As emoções diferenciadas de nossa consciência mortal são apenas fenômenos passageiros. Se tu pudesses aprender a ignorar estas duas ilusões fundamentais – mortes e renascimentos e o medo da impermanência – e manter-te fortemente ligado à permanência que o olho do Darma percebe, não precisarias ter medo de falhar em atingir a suprema iluminação.


O texto acima, publicado originalmente na Revista Bodisatva nº 17, em 2009. Para adquirir edições anteriores, veja a loja online.


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