The Rocky Mountain Ecodharma Retreat Center , em Boulder, Colorado. Créditos: Tricycle

Tornando-se um ecosatva

Praticantes buscam enraizar sua prática espiritual na natureza em retiros intensivos de ecodarma.


Por
Revisão: Cristiane Schardosim Martins
Tradução: Álvaro Rodolfo Rodrigues Reishtatter

Quando o assunto é ecodarma, David Loy escreveu o livro. (Chama-se Ecodarma.) Professor de filosofia budista e professor budista na tradição Sanbo Zen, Loy vem escrevendo e falando sobre questões ecológicas e sobre budismo socialmente engajado por mais de três décadas.

Em 2017, Loy, juntamente com o professor de Insight Johann Robbins e outros, co-fundou o Centro de Retiros Ecodarma das Montanhas Rochosas (RMERC) no Condado de Boulder, Colorado. Desde então, eles têm feito retiros de ecodarma, visando reconectar os budistas com a natureza, e fundamentar a ação ecológica na prática espiritual. Nos últimos anos, a crise ecológica piorou significativamente — com incêndios florestais, secas, furacões, inundações e outros desastres naturais ocorrendo com frequência e severidade cada vez maiores. Como resultado, questões ecológicas receberam mais atenção da grande mídia e, segundo Loy, o interesse em ecodarma também cresceu.

A Tricycle recentemente conversou com Loy sobre a relação do budismo e ambientalismo e o que compõe um retiro de ecodarma.


Qual papel os budistas desempenharam no movimento ambientalista ao longo dos anos? 

O budismo em geral, e talvez o Zen em particular, tem uma sensibilidade inata à natureza. Mas o budismo foi relativamente lento em responder à crise ecológica, apesar das preocupações de pioneiros budistas ocidentais como Gary Snyder e Joanna Macy. Eu acho que o Buda, de várias maneiras, foi mais progressista do que a instituição que se desenvolveu após sua morte. O budismo sobreviveu e prosperou, porque se concentrou na transformação pessoal, no despertar individual. O budismo asiático não se envolveu muito em questões políticas ou sociais, pelo menos em comparação com as religiões Abraâmicas, detentoras de  uma dimensão profética que introduziu a preocupação pela justiça social muito cedo. Claro, lá por meados dos anos setenta, a Buddhist Peace Fellowship [uma rede não sectária de ativistas budistas] foi formada. Mas esse grupo tem se preocupado com muitas questões, e o ambientalismo é apenas uma delas.

O que você acha que é diferente agora? Percebo que os incêndios florestais mais frequentes, furacões e outros desastres naturais parecem estar tornando a ameaça mais imediata. 

Sim, eventos como os incêndios e os furacões estão finalmente começando a trazer tudo para mais perto, e claro, as coisas só vão piorar. Não consigo ver um futuro no qual o ecodarma não se torne mais importante. E, mesmo que a crise ecológica seja o maior desafio que a humanidade já enfrentou, também é o maior desafio que o budismo já enfrentou. O budismo se desenvolveu, evoluiu e se espalhou interagindo com novas culturas, e assim como o budismo na China interagiu com o taoismo para criar o Chan, pode ser que o budismo em nosso mundo globalizado, secular e consumista vá interagir com a Extinction Rebellion (XR)¹ ou com movimentos similares para criar algo novo. O bodisatva se tornará o ecosatva? É um momento muito empolgante para ser Budista.

Eu conversei com membros budistas da XR, e eles parecem ter um otimismo sóbrio que reconhece que o desafio pela frente é incrivelmente difícil, mas que somos capazes de enfrentá-lo. 

Francamente, eu não me descreveria como um otimista sóbrio, nem como um pessimista sóbrio. Para os praticantes budistas, há algo mais profundo do que essa dualidade. Mais importante para mim é a mente do não-saber. Realmente não sabemos como o futuro vai se desenrolar, mas isso certamente não reduz nossa responsabilidade. Pelo contrário, temos que continuar fazendo o melhor que podemos. Um mestre Zen disse: “Medite como se seu cabelo estivesse pegando fogo.” Talvez precisemos adaptar isso: “Pratique como se o mundo estivesse pegando fogo.” Porque está! É esse nível de urgência.

Tanto o pessimismo quanto o otimismo podem ser formas de evasão da responsabilidade. Com otimismo, tendemos a pensar que alguém vai descobrir uma solução, talvez inventar novas tecnologias que resolverão o problema, então não precisamos nos preocupar demais com o que vai acontecer. Com pessimismo, pensamos, por que perder nosso tempo? É tarde demais. Já passamos do ponto de virada. É por isso que a mente do não-saber é tão importante. Ela nos encoraja a fazer o melhor que podemos.

Mas às vezes o “não saber” é mal interpretado como niilismo, ou usado para justificar equívocos.

 Eu me lembro de Robert Aitken, um dos meus professores, que disse: “Nosso caminho não é sobre esclarecer o mistério, mas tornar o mistério claro.” Quando deixamos de lado nossas maneiras habituais de pensar, planejar e esperar, nos abrimos para o fato de que o mundo é fundamentalmente misterioso. Mas isso não é uma desculpa para confiar que tudo vai dar certo no final. Há coisas que sabemos, e coisas que precisamos fazer. Para agir, temos que ter uma história, algumas expectativas incorporadas ao nosso entendimento de quem somos, sobre o que o mundo é, e como eles interagem. Mas também temos que estar abertos à realização de que o futuro pode não funcionar como esperamos. Realmente não sabemos o que é possível.

Então, o que isso significa para a forma como vivemos no dia a dia?? Significa fazer o melhor que posso para responder adequadamente à crise ecológica, sem saber o que faço faz alguma diferença. Esse comprometimento profundo, junto com o não apego aos resultados, está no coração do caminho do bodisatva.

No Rocky Mountain Ecodharma Retreat Center, você e o diretor do RMERC, Johann Robbins, têm organizado “retiros ecodharma”. Por que vocês iniciaram esse programa? 

Para responder adequadamente à nossa situação atual, algumas mudanças radicais precisam acontecer, e precisamos de novas práticas para ajudar nesse processo. Basicamente, nós, budistas, temos que conectar,ou reconectar, nossa prática com o que está ocorrendo no mundo maior. Estamos enfrentando um colapso ecológico iminente, juntamente com alguns enormes problemas sociais. O que tudo isso tem a dizer para como entendemos e praticamos os ensinamentos budistas? 

A maioria de nós está bastante desconectada do mundo natural. A imersão na natureza pode levar a mudanças profundas. O Buda e os iogues, como Milarepa, são exemplos óbvios, mas você encontra isso em outras tradições também, como Jesus e Mohammad. Há muitos casos de fundadores espirituais que foram sozinhos para o mundo natural, experimentaram algo poderoso e então trouxeram de volta um ensinamento transformador. Hoje, a crise ecológica apenas adiciona uma nova dimensão. Um retiro ecodarma pode nos ajudar a conectar nossa prática espiritual com esse novo desafio.

O que acontece em um retiro ecodarma?

 Ainda estamos descobrindo o que é um retiro ecodarma, mas achamos que encontramos algo que funciona, embora continuemos a modificá-lo. Uma das nossas principais guias tem sido [a acadêmica, praticante e ativista] Joanna Macy e seu projeto, “Trabalho Que Reconecta”. Além disso, o Centro Ecodarma nos Pirineus espanhóis foi uma grande inspiração para o RMERC, em geral. 

Seguindo a espiral de quatro partes de Joanna Macy [vindo da gratidão, honrando nossa dor pelo mundo, vendo com novos/antigos olhos e indo adiante], primeiro, ajudamos as pessoas a entrarem em contato com o mundo natural e sentirem gratidão por ele. Passamos o máximo de tempo possível ao ar livre — desde de manhã cedo, quando as pessoas podem meditar no terraço ou no prado, até a conversa sobre darma à noite, em volta de uma fogueira com as estrelas acima.

Então, o cerne da questão se torna entrar em contato com nossa tristeza. Todos que estão prestando atenção estão cientes de que o futuro parece muito difícil ecologicamente. Mas não sabemos como isso vai se desdobrar ou o que podemos fazer a respeito, então tendemos a ignorar essa realização, focando em questões mais imediatas e de curto prazo. Precisamos enfrentar o luto que a maioria de nós está reprimindo ou negando. Afinal, o caminho budista não é sobre evitar problemas ou dificuldades! É sobre enfrentá-los e ser transformado por essa experiência. O luto por si só pode nos devastar, por isso Joanna Macy diz que devemos nos ancorar na gratidão primeiro. Podemos nos desesperar e nos tornar niilistas, então a prática da gratidão nos estabiliza para esse segundo passo. Também ajuda fazer o trabalho de luto juntos. Fazer essa prática com outras pessoas nos dá apoio para sentirmos nossa própria dor.

Depois, no  final da semana, as pessoas saem para fazer um retiro solo, que tende a ser muito poderoso. Funciona de maneira distinta com pessoas diferentes, mas estar sozinho no mundo natural pode ajudar a consolidar ou integrar quaisquer mudanças que tenham começado. As pessoas muitas vezes retornam se sentindo bastante empoderadas. Então nos reunimos novamente e compartilhamos nossas experiências como uma forma de reentrada e reforço da comunidade que foi construída ao longo do retiro.

De onde veio a ideia de incluir um solo? 

Originalmente veio dos retiros na natureza que Johann e eu estávamos ensinando anteriormente. Por exemplo, descíamos o Rio Green, em Utah, onde remávamos e meditávamos juntos. E, próximo do final  desses retiros, as pessoas tinham um retiro solo de duas noites, que quase sempre era a parte mais poderosa da viagem. Por várias razões, Johann e eu queríamos mudar o foco para ecodarma, para algo que se engajasse mais diretamente com nossa situação ecológica atual. A maioria das pessoas gosta de sair e meditar na natureza, mas queríamos ir além. Já que já víamos a importância desses solos, nós os incorporamos à prática do ecodarma, como o ápice e a oportunidade de ver como tudo se junta.

Você recomenda alguma prática específica para meditar ao ar livre? 

Na maioria dos dias, nossos retiros ecodarma incluem alguma meditação caminhando, ao longo de uma das trilhas, e então as pessoas encontram seu próprio lugar para sentar-se. No início do retiro, incentivamos as pessoas a fazerem uma prática de consciência sensorial, que envolve deixar ir os pensamentos, sentimentos, intenções e assim por diante, a fim de estar mais conscientes do seu entorno.

Johann Robbins tem sido um estudante de Shinzen Young [um professor americano de meditação que estudou nas tradições Vipassana e Shingon] que ensina uma prática que envolve “sentir por dentro, sentir por fora, ver por dentro, ver por fora, ouvir por dentro, ouvir por fora.” Essa é uma maneira de cultivar a consciência sensorial. O Zen Soto enfatiza o shikantaza, às vezes chamado de iluminação silenciosa, que é a consciência sem focar em nada em particular. Esse tipo de prática aberta também funciona bem ao ar livre.

 O que não funciona tão bem nesse contexto é uma meditação mais internalizada, como apenas contar sua respiração ou trabalhar no Mu [um koan Zen popular]. Incentivamos as pessoas a voltarem sua consciência para fora.

Quando vocês não estão praticando em silêncio, vocês têm palestras darma e algumas discussões. Vocês falam sobre política?

 Não, nós não fazemos isso. Definitivamente, há uma necessidade de planejar e organizar, mas não durante um retiro ecodarma. O que enfatizamos é entrar em contato com o que você está sentindo, o que de outra forma tendemos a fugir, às vezes ficando com raiva, ou pensando “Eu tenho que fazer algo agora mesmo!” E da mesma forma no solo, dizemos às pessoas, “Não planeje. Não elabore estratégias. Abra-se para onde você está e o que está sentindo. Veja o que as árvores e os insetos — ou o que quer que apareça — têm a oferecer.”

É outra oportunidade, mais profunda, de se abrir para a mente do não-saber. Nos solos também não vamos fingir que sabemos o que vai acontecer ou mesmo o que pode acontecer.

As pessoas têm falado sobre o meio ambiente há muito tempo, e muitas vezes as coisas não mudam. A conversa pode parecer repetitiva ou como pregar para convertidos. Como você discute essas questões de uma maneira que mantenha as pessoas engajadas?

Essa é uma grande questão. Uma pergunta para mim pessoalmente é, quanto devo usar a terminologia budista? Em muitos casos, especialmente se as pessoas já são budistas, isso as ajuda a se conectar com o que tenho a dizer. Mas algumas pessoas disseram que seria melhor falar em termos espirituais ou psicológicos de forma geral. Isso parece ser um caso em que uma única abordagem não serve para todos, e tento me ajustar ao meu público ao dar palestras do darma e oficinas. 

Além de tais palestras e oficinas, escrevi um livro que oferece uma perspectiva budista sobre a crise ecológica, e sou um dos fundadores deste novo centro de ecodarma — será que alguma dessas coisas fará alguma diferença? Não sei, e está tudo bem. Na verdade, é divertido! Como eu disse, nossa tarefa é fazer o melhor que podemos. É nosso presente para a terra, e, como todo presente genuíno, não devemos esperar nada em troca. 

David Loy é professor, escritor e professor Zen na tradição Sanbo Kyodan do budismo Zen japonês. Seu livro mais recente é Ecodarma: ensinos budistas para a crise ecológica, publicado no Brasil pela Editora Bambual. Matthew Abrahams é escritor e editor baseado em Astoria, Queens. Ele trabalhou para o New York Post e para a Tricycle como seu ex-editor sênior.

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