Dalai Lama, líder espiritual tibetano, cumprimentando pessoas em Huy, na Bélgica, em 29 de maio de 2006. (Geert Vanden Wijngaert / Associated Press)

O único antídoto é a sabedoria

Ensinamento do Dalai Lama no Brasil, em 2011, em que ele apresenta a filosofia budista e nos aponta a sabedoria última


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Revisão: Rodrigo Édipo
Edição: Caroline Souza
Transcrição: Isabel Poncio

Na tarde do dia 15 de setembro de 2011, Sua Santidade o Dalai Lama ofereceu ensinamentos em São Paulo, Brasil. Sua fala apresenta um panorama histórico das diferentes tradições filosóficas budistas e nos brinda com o elixir da mais pura sabedoria, o antídoto último de todos os males. Hoje, 9 de abril de 2020, resgatamos esta preciosidade do nosso acervo com a aspiração de que a raiz de todo o sofrimento seja diretamente erradicada.


Todas as grandes religiões do mundo – apesar das várias diferenças filosóficas – veiculam uma mesma mensagem: de amor, compaixão, perdão, autodisciplina, justiça e honestidade. Todas falam sobre esses valores e, mais importante, todas oferecem instrumentos para podermos cultivá-los com o objetivo de criar uma comunidade humana saudável e feliz. Dentro dessas tradições, encontramos dois grandes grupos: de um lado, as religiões teístas e, de outro, as não teístas. Na categoria das não teístas há uma subdivisão: as religiões que acreditam na existência de um eu independente e aquelas que não acreditam na existência de um eu independente

O budismo se insere na categoria das religiões não teístas e é uma religião que não postula a existência de um eu independente. Antes, o budismo fala sobre a lei da causalidade. Essa ausência de crença em um eu independente é um conceito único do budismo

O budismo vai falar naquilo que se costuma chamar de “originação interdependente”, que em sânscrito é pratityasamutpada.

No budismo, encontramos duas tradições: a páli e a sânscrita. A tradição páli constitui a base – ela consegue se manter por si só, é completa; a tradição sânscrita, diferentemente, depende da tradição páli. A tradição páli é o alicerce sobre o qual se assenta a tradição sânscrita. Mas a tradição que vem do sânscrito contém as explicações mais sofisticadas e mais profundas que o budismo tem a oferecer.

De acordo com o conceito budista da interdependência – a lei da causalidade –, todos os fenômenos estão se transformando a cada segundo, todos ocorrem a partir de suas próprias causas e condições; então todo resultado depende inteiramente de suas causas e condições. Essa é a primeira maneira de se entender a interdependência. Dentro da tradição sânscrita, nós encontramos duas escolas de pensamento: a escola Cittamatra e a escola Madhyamika. Os entendimentos da escola Madhyamika, a meu ver, são os mais profundos. Na escola Madhyamika se diz que não apenas o resultado depende da causa, mas a causa também é totalmente dependente do resultado; para que uma causa possa ser causa ela vai depender do resultado. Em Madhyamika, também existe uma outra distinção do conceito de interdependência, que é a ligação entre a parte e o todo, entre o átomo e o todo: a existência de uma pessoa, por exemplo, é totalmente definida a partir dos agregados físicos dela; não existe uma noção de pessoa que se assente no conjunto dos agregados. Este é o postulado da falta de existência intrínseca do eu. Nós encontramos este postulado nas quatro escolas budistas: Vaibhashika, Sautrantika, Cittamatra e Madhyamika.

No budismo, não só as pessoas, mas também os fenômenos são desprovidos de existência intrínseca. Se nós olharmos os cinco agregados que formam a base que designa, por exemplo, uma pessoa – se examinarmos os agregados que a compõem – vamos ver que eles também, por sua vez, dependem de suas partes. Isso vale não só para os agregados físicos que existem no mundo grosseiro observado, mas também para as essências a partir das quais esses cinco agregados físicos provêm. Essas essências também são desprovidas de existência intrínseca. Isso vale tanto para o nível mais grosseiro quanto para o nível mais sutil; se nós olharmos coisas mais etéreas, como o espaço, veremos que elas são desprovidas de existência intrínseca, também são dependentes de seus componentes. Isso é válido não só para o mundo externo que é observado, mas se aplica também à própria mente que observa os fenômenos – ela também não tem existência intrínseca. É dessa maneira que se descreve a falta de existência intrínseca dos fenômenos.

Dentro da tradição sânscrita, encontramos dois tipos de vacuidade quando falamos dos seres sencientes: existe a vacuidade do eu e existe a vacuidade da base do eu. As diferentes escolas budistas, como Cittamatra e Madhyamika, têm conceitos e postulados diferentes sobre a vacuidade, ou shunyata.

Mas para que desenvolvermos todas essas complicações filosóficas? É que a causa última do sofrimento é a ignorância, e quando falamos de ignorância, falamos de dois tipos. O primeiro é o que chamamos de “mera ignorância”: por exemplo, uma criança antes de ir à escola, onde alguém lhe ensina o alfabeto, não conhece o alfabeto; essa ignorância é uma falta de conhecimento. O segundo tipo de ignorância é uma percepção ou uma apreensão errônea da realidade: alguém olhar a letra A e achar que é B, olhar B e achar que é C.

A remoção completa da ignorância só acontece quando se chega ao estado búdico. No budismo, diz-se que a apreensão errônea da realidade é a causa última do sofrimento.

Sendo assim, qual seria o antídoto que poderia se contrapor a essa causa? Não é a oração, também não é a mera meditação, tampouco bodicita – ela não pode ter essa função, nem a compaixão infinita pode erradicar essa concepção errônea da realidade. A única coisa que pode desempenhar esse papel é a sabedoria.

Através da sabedoria você pode ir se familiarizando mais e mais com a realidade até, por fim, passar a entendê-la. E quando você, de fato, entende plenamente a realidade em sua instância última, isso erradica a ignorância e, por conseguinte, o sofrimento.

De modo geral, nós temos uma apreensão incorreta da realidade: se eu olho para vocês e vocês olham para mim, vocês podem estar me vendo como um ser absoluto, independente de vocês; eu sou o Dalai Lama e você é você. Mas essa é uma compreensão incorreta: não existe nada que seja independente de um modo absoluto; todas as coisas são interdependentes e, a partir dessa concepção errônea da realidade, surge a base do apego, a base de todas as emoções negativas. Quanto às emoções positivas, elas podem ser cultivadas a partir de um treinamento. Se você pratica o amor e a bondade, isso reduz as emoções negativas, como a inveja ou a raiva.

Em termos últimos, o que vai erradicar as emoções negativas é a sabedoria, é você se familiarizar com o que, de fato, é a realidade em sua instância última. Assim você entenderá que as coisas aparecem aos nossos olhos como absolutas e independentes, mas que isso é apenas uma miragem. Quando você verdadeiramente compreende isso, essa é a base a partir da qual as emoções destrutivas podem ser dissipadas.

Na tradição sânscrita se diz que o Buda girou a roda do Darma três vezes: no primeiro giro, ele falou sobre a base do budismo – as quatro nobres verdades. No segundo, o Buda deu explicações adicionais sobre a terceira nobre verdade, que é a possibilidade da cessação, baseada no conceito das duas verdades: a verdade convencional e a verdade última. No terceiro giro, ele ofereceu ensinamentos mais elaborados sobre a quarta nobre verdade, que é a possibilidade da eliminação de todas as emoções destrutivas, e isso é possível porque, no nível mais sutil, a natureza da mente é clara como a luz.

A natureza da água é limpa e pura, mas muitas vezes quando ela se mistura com o barro ou outra substância, ela fica turva. Porém, por mais suja que possa estar, a sua natureza essencial é límpida. Isso vale para a nossa mente: por mais turva que a nossa mente possa estar pelas emoções destrutivas, no nível da realidade última ela é límpida, e por isso essa separação se torna possível. As emoções destrutivas nos divorciam da realidade. A sabedoria pode gerar a compreensão da realidade última, e esse é o antídoto. Por mais potentes que sejam as emoções destrutivas, por mais sobrecarregada de negatividades que esteja uma mente, essas negatividades podem ser limpas absolutamente, pois elas não são a natureza última.

Embora tibetano, tenho uma conexão direta com a tradição da Universidade de Nalanda. Isso porque, no Tibete, o ensino foi introduzido por um grande mestre chamado Shantarakshita, um grande erudito que dava ensinamentos nessa instituição. Ele chegou ao Tibete no século VIII a convite do Imperador. Como era monge, ele introduziu a tradição monástica no Tibete. Mas ele também era um grande filósofo, um grande erudito, então introduziu também ensinamentos de Madhyamika, de lógica, de epistemologia. Shantarakshita deu ensinamentos tão profundos e completos que até os dias de hoje esses textos são estudados.

Também veio ao Tibete um grande mestre tântrico chamado Padmasambava. Assim, podemos dizer que o budismo tibetano é completo: ele inclui a tradição dos sutras que vem do páli, toda a versão que vem do sânscrito e toda a versão tântrica. É importante enfatizar essa raiz do budismo, proveniente da Universidade de Nalanda. Na tradição tibetana, encontramos basicamente 300 volumes de textos, sendo que 100 contêm as palavras do próprio Buda, e os demais são comentários sobre as palavras do Buda. É muito importante que esses textos sejam estudados – não devem ser tomados apenas como objetos de veneração para se colocar sobre o altar e aos quais dirigir orações. Para que possam ser de fato eficazes, precisam ser usados, estudados.

Ao longo da implantação do budismo no Tibete, em diferentes regiões, diferentes ensinamentos foram criados e diferentes nomes foram dados às escolas que cultivavam esses ensinamentos. Foi assim que apareceu a seita dos chapéus vermelhos e dos chapéus amarelos – fico com vontade de criar uma nova seita, a dos chapéus verdes! – mas isso não é importante. O importante é que todas têm uma raiz comum, essa nobre tradição da Universidade de Nalanda. Por vezes, em decorrência dessas diferentes seitas, também se desenvolveu o sectarismo no Tibete – as pessoas se apegavam à sua própria seita.

Mas também no Tibete se desenvolveu um movimento muito importante de não sectarismo, e um grande mestre dessa tradição é Jamyang Khyentse Wangpo. Eu cultivo, estudo e prezo as tradições não sectárias do budismo tibetano.

Os Dalai Lamas pertencem à seita dos chapéus amarelos mas, ao longo da história, muitos Dalai Lamas – inclusive o atual – receberam ensinamentos das diferentes escolas do budismo tibetano: dos Sakyas, dos Nyingmas, dos Kagyus. Isso ajuda muito. Não faz muito sentido ficar apegado apenas à sua tradição, pois isso limita o conhecimento. Por outro lado, se você se coloca aberto para receber os ensinamentos das diferentes tradições, isso o fortalece.


Texto publicado originalmente no site antigo da Revista Bodisatva. Para ler mais textos do acervo clique aqui.


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