Você ama a vida? Conheça o Ecodarma

 Novo livro de David Loy posiciona a urgência ecológica como contexto inescapável para a prática budista



Atenção leitoras e leitores que transitam pelo Caminho de Buda: o livro do momento entre pessoas budistas socialmente engajadas, e não apenas elas, chama-se Ecodarma e acaba de sair no Brasil pela editora Bambual. Seu apelo dramático começa pela capa, onde um Buda envolto em chamas empunha seu megafone para nos dizer: “Despertem!”

Sensei David Loy

Essa obra inquietante de David Loy, cuja versão original em inglês, Ecodharma, foi publicada em 2019, é tão atual quanto o prefácio do autor à edição brasileira, ao mostrar como a pandemia de Covid-19 expôs governos incompetentes em todo o mundo e lembrar, já então, que “no Brasil […] mais de 610.000 pessoas morreram  de Covid-19. […] No ano passado [2020], a taxa de desmatamento da Amazônia foi 57% maior do que no ano anterior – a pior dos últimos dez anos […]”, e muito mais.

Nenhuma resenha fará justiça a esse livro, mas leitores despertos ajudam a colocar sua dimensão em perspectiva: “Este livro é um clamor de esperança”, disse Monja Coen. “Podemos ouvir, ver e agir através do Darma – a lei verdadeira, para que o Ecosistema seja o Ecodarma e se torne o centro de nossas vidas”. Lama Padma Samten, agradece sua publicação, “aspirando que possamos reconhecer esse tempo não como um precipício distópico generalizado de morte e dor, mas como um período luminoso de renascimento”. 

Não havia crise ecológica 2587 anos atrás, quando Sidarta Gautama, tornando-se Buda o Iluminado, ao ver a estrela da manhã declarou: “Eu, a grande terra e todos os seres, juntos e simultaneamente nos tornamos o Caminho”. 

O Ecodarma nos diz: “Quando começamos a acordar e entender que não estamos separados uns dos outros, nem desta terra maravilhosa, percebemos que as maneiras como vivemos juntos e nos relacionamos com a terra também precisam ser reconstruídas. Isso significa não apenas engajarmo-nos socialmente, como indivíduos ajudando outros indivíduos, mas encontrar meios de abordar as problemáticas estruturas econômicas e políticas que estão profundamente implicadas na eco-crise e nas questões de justiça social que enfrentamos hoje. Em última análise, os caminhos de transformação pessoal e social não são realmente separados um do outro. O engajamento no mundo é como nosso despertar individual floresce, e práticas contemplativas como a meditação fundamentam nosso ativismo, transformando-o em um caminho espiritual”.

O que o Buda ensinou foi duka – termo sânscrito que abrange todo tipo de sofrimento – e como acabar com duka. Loy, no entanto, lembra que Buda jamais abordou o duka causado por uma crise ecológica porque o problema nunca havia surgido. Agora, diante da maior crise da humanidade em todos os tempos, no momento da maior crise histórica do budismo e à luz da necessidade imperiosa de agir, surge a noção de Ecodarma. 

Mas afinal, o que é Ecodarma? 

Ecodarma, esse termo novo para a fase de desenvolvimento da tradição budista que atravessamos, combina os ensinamentos do budismo com o desassossego ante a catástrofe ecológica autoimposta pela humanidade. Ameaçadas, a civilização como a conhecemos e nossa própria espécie (que mal conhecemos) começam a despertar. Na mente de compaixão, o Darma, incomparavelmente profundo e infinitamente sutil, e os conhecimentos da Ecologia se mesclam e retroalimentam. 

No budismo tradicional, a pessoa que trilha o caminho da iluminação é um bodisatva – o ser senciente (satva) que desperta (bodi) e gera na mente de compaixão o desejo espontâneo de se iluminar em benefício de todos os seres. Nesse sentido, começa-se a cunhar um novo termo para a pessoa comprometida com as práticas interna e externa fundamentais, a meditação e o engajamento social que nos conduzem muito além da concentração em nossa paz de espírito individual: ecosatva

Para o/a ecosatva, o problema básico não são pessoas más, ricas ou poderosas, mas estruturas institucionalizadas de ganância, agressão e delusão coletivas que precisam ser transformadas na prática.

Será possível meditar no mundo natural e explorar as implicações ecológicas dos ensinamentos budistas, incorporando esse entendimento no ativismo ecológico tão necessário hoje? Como responder às coisas horrendas que estamos fazendo à terra e a nós mesmos? Para resolver este grande koan coletivo de nosso tempo precisamos sentir, ser transformados mais profundamente. Isso significa abrir-nos à dor reprimida e ao desespero que tantas vezes nos paralisam, para que assim eles possam se transformar em ação compassiva. Não basta aceitar a evidência científica ou entender como a linguagem organiza nossas percepções. Assim como o monge Zen vietnamita Thich Nhat Hanh, Loy vê o desespero e a tristeza não como obstáculos para nosso compromisso sincero com a vida, mas como parte essencial do caminho do Ecodarma. 

O livro retrata em detalhes a realidade avassaladora da mudança climática, que ainda assim não é a questão fundamental, mas apenas parte dela. Isso nos obriga a refletir. Por que continuamos a abusar da terra e da natureza, sem entender o que o mundo é e quem somos, e a alimentar obsessões com crescimento econômico e consumo? Sem conseguir largar essa visão de mundo mecanicista e predatória do mundo natural, que não atribui valor inerente à natureza, nem aos humanos, somos meras máquinas complexas. Mais do que perdidos em problemas tecnológicos, econômicos e políticos, estamos mergulhados numa crise espiritual coletiva. Se assim é, e se os desafios ambientais e sociais enfrentados agora ultrapassam o sofrimento individual que há séculos preocupa o budismo, cabe a grande pergunta que dá título a um dos capítulos: “A crise ecológica é também uma crise budista?”

 

Retiro Sesshin Ecodarma e a prática de meditar na natureza

Antes mesmo de seu lançamento em Porto Alegre na tarde de 8 de janeiro de 2022 na livraria Via Sapiens, as repercussões do Ecodarma se fizeram sentir. Uma delas foi o Sesshin Ecodarma, retiro de sete dias na primeira semana do ano, organizado pela Associação de Prática Zen Budista Via Zen na Montanha Grande Buda, sua sede rural em Viamão, RS. Nesse primeiro retiro presencial desde o início da pandemia de coronavirus, seguindo todos os protocolos sanitários, 25 praticantes se propuseram a meditar na natureza. Entre eles, dispostos a nada negligenciar, o autor do prefácio à edição brasileira, Monge Koho Mello e eu, que fui um dos tradutores do livro, demos testemunho vivo do incalculável alcance dessa obra, enquanto em Campinas, a outra tradutora, Monja Tchoren, deslocou seu “zendo” (sala de meditação) para parques e fragmentos de mata. 

O que estamos negligenciando? Esta pergunta também é o título de um dos capítulos. De forma indireta, a resposta que lhe é dada desconstrói a ideia de que possa existir um lugar e um modo específico de praticar a meditação. Ao contrário do próprio Buda Shakyamuni, hoje costumamos meditar dentro de edifícios fechados e protegidos das intempéries, interrompendo aos poucos nossa conexão primordial com a natureza. Sidarta Gautama nasceu entre as árvores do Bosque de Lumbini quando sua mãe entrou em trabalho de parto prematuro. Ele iniciou sua busca espiritual com práticas ascéticas na floresta, tornou-se Buda ao meditar sob uma árvore, ensinou ao ar livre e morreu entre duas árvores. Outros grandes mestres também sofreram transformações espirituais imersos na natureza. Tanto Jesus, ao jejuar por quarenta dias no deserto, quanto Maomé, visitado em sua caverna pelo arcanjo Gabriel, praticaram no mundo natural. O mundo natural é uma comunidade interdependente de seres vivos onde podemos sempre, como indivíduos e como espécie, aprofundar o autoconhecimento.

O Ecodarma é apenas uma pequena porção do budismo socialmente engajado, assim como a mudança climática é apenas parte de uma crise ecológica muito maior. Segundo Loy, a indiferença ou resistência ao Ecodarma também é parte de um problema maior para o budismo socialmente engajado. Nos EUA, ele nos mostra organizações budistas engajadas em promover o lado social e ecológico dos ensinamentos budistas quase em colapso financeiro, enquanto centros de meditação de alto nível, onde indivíduos podem fazer retiros, nadam em dinheiro. Os budistas são ensinados a responder compassivamente ao sofrimento dos indivíduos, mas como responder com compaixão a um sistema social que cria cada vez mais desigualdades terríveis? Analisar instituições e avaliar políticas, conclui Loy, envolve modalidades conceituais cujo uso as práticas budistas tradicionais não propiciam.

Existe alguma coisa essencial nas tradições budistas que possa nos ajudar a entender a aparente indiferença de muitos budistas com a crise ecológica? Precisamos examinar essa e outras questões de fundo, para que o caminho budista realize seu potencial no mundo moderno e se torne tão libertador quanto precisamos que seja. É esse exame que o livro faz com maestria. Revelar seus resultados seria um spoiler para quem pode fazer a leitura direta dos sinais que iluminam e levam ao Caminho.

 


José Fonseca é jornalista, vive em Porto Alegre e é um dos tradutores do Ecodarma. É também fundador, ao lado do Lama Padma Samten, da Revisa Bodisatva. 

Ecodarma – ensinamentos budistas para a urgência ecológica de David Loy está à venda aqui, no site da Editora Bambual.  

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